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Ministério Público Federal se posicionou a favor da prática do aborto em casa.| Foto: The Gentle/ flickr.com/photos/agentlebossanova/164042374/

O Ministério Público Federal (MPF) está agindo contra a legislação brasileira, as evidências científicas e as recomendações do Ministério da Saúde e da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) para facilitar no Brasil a prática do aborto em casa – o chamado “teleaborto”, assistido por médicos por meios virtuais.

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No começo do ano, um hospital de Uberlândia (MG) publicou, com o apoio do Instituto Anis, uma cartilha ensinando mulheres a realizarem em casa o aborto não penalizado – como nos casos de estupro, anencefalia do bebê e risco de morte para a mulher – durante a pandemia.

Depois de meses de um conflito envolvendo procuradores e defensores públicos nos âmbitos municipal, estadual e nacional, o MPF assumiu a posição oficial de apoiar a cartilha, como mostrou reportagem recente da Gazeta do Povo.

Em maio, a Procuradoria da República em Minas Gerais e a Defensoria Nacional dos Direitos Humanos (DNDH) haviam pedido providências contra a cartilha. Em junho, o Ministério da Saúde emitiu uma nota informativa indicando que o aborto não faz parte dos procedimentos para os quais, em caráter de exceção, a prática da telemedicina estaria liberada durante a pandemia.

Em julho, mesmo diante das recomendações das autoridades e do laboratório que produz o medicamento, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) – órgão do Ministério Público Federal (MPF) – emitiu uma nota técnica contrária ao pedido da Procuradoria de Minas e da DNDH, e a recomendação contra a cartilha foi anulada.

Segundo especialistas consultados pelo jornal, o aval dado pelo MPF ao teleaborto passa por cima não só das recomendações do Ministério da Saúde, da Anvisa e da bula do medicamento, mas também do Código Civil, da Lei 13.989/2020 – que trata da telemedicina durante a pandemia – e de evidências científicas em campos como a obstetrícia e a psicologia.

Como o posicionamento do MPF sobre o aborto em casa contraria a legislação brasileira

O jurista Afonso Celso de Oliveira, especialista em Direito Civil e membro do Instituto Brasileiro de Direito e Religião (IBDR), diz que compete somente à “autoridade médica, com exames clínicos e laboratoriais”, atestar a possibilidade de um aborto.

Segundo ele, a prática do teleaborto “fere o direito do nascituro, amparado no artigo 2º do Código Civil”, que afirma que “a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”. “Até que se confirme, por um profissional médico, que houve um estupro, um crime que fundamenta o direito legal de se abortar, quem vai defender os direitos do nascituro, se nós banalizarmos o aborto a ponto de ele ser feito, agora, por telefone?”, indaga Oliveira.

Para ele, a cartilha do teleaborto faz uma interpretação equivocada da Lei 13.989. “A lei não ampara o aborto após estupro. Os procedimentos que ela ampara são limitados”, diz. "Não estamos tratando de enxaqueca, de dor de cabeça, de procedimentos comuns que, por causa da pandemia, podem ser feitos por telemedicina para se evitar o deslocamento a hospitais ou clínicas. O espírito da lei foi para este tipo de procedimento. Agora, um aborto é um procedimento complexo, mesmo que seja através de um comprimido”, observa o jurista.

Outro ponto que Oliveira ressalta é a alta possibilidade de fraude, o que pode aumentar a chance de responsabilização do médico por eventuais irregularidades. “No caso do estupro, como não é necessário fazer um boletim policial, bastando a declaração da suposta vítima, uma pessoa pode dizer que foi estuprada sem fazer nenhum exame clínico, nenhum exame de corpo de delito e nenhum exame médico que possa atestar isso. Mas, mesmo que a mulher não seja obrigada a fazer o boletim policial, o profissional médico que atende ela é obrigado a informar às autoridades policiais sobre a ocorrência e também deve preservar possíveis evidências materiais do crime do estupro, a serem entregues imediatamente à autoridade policial. Há uma responsabilidade muito grande sobre o médico que vai assinar a prescrição desse aborto. Como que se daria isso por teleconferência?”, questiona.

A chance de desvio da finalidade do medicamento também aumenta. Nada garante, além disso, que, já com o medicamento em mãos, a paciente manterá o contato virtual com o médico. “No hospital ou na clínica, a pessoa vai tomar o medicamento diante do profissional, que vai poder acompanhá-la”, diz Oliveira.

Abortistas estão pleiteando um tipo de aborto que condenavam, diz especialista em bioética

Lenise Garcia, professora aposentada do Instituto de Biologia da Universidade de Brasília (​UnB) e presidente do Movimento Nacional da Cidadania pela Vida Brasil Sem Aborto, aponta uma contradição patente no discurso dos defensores da cartilha, já que abortistas costumam usar como um de seus principais argumentos o fato de que, se o aborto fosse legalizado, o procedimento poderia ser feito em hospitais, evitando riscos às mulheres das formas alternativas de aborto.

“Chama a atenção que as pessoas que sempre pediram que o aborto fosse legalizado - dizendo que o aborto feito de outro modo seria inseguro -, agora estejam pleiteando a mesma metodologia com este dito ‘teleaborto’. É uma incoerência muito grande, que mostra que, na verdade, não é a segurança da gestante que está sendo levada em conta”, observa ela.

Para Lenise, não existe aborto seguro, e a presença física de um médico durante o procedimento, mesmo no caso do misoprostol, é imprescindível. “Se esta prática é feita, a gestante tem que ser acompanhada todo o tempo. Não é isento de risco. Pode haver ruptura uterina, consequências posteriores… Não há nenhuma justificativa. E, inclusive, no momento, a maior parte dos hospitais já retomou as cirurgias eletivas. A gente certamente não está no momento da pandemia que justifique uma aplicação do teleaborto, o que mostra que há segundas intenções. Isso está claríssimo. O que se quer é tornar acessível ao público em geral uma orientação sobre como fazer aborto”, opina a especialista.

Outro problema do teleaborto, de acordo com Lenise, é o maior potencial de danos psicológicos em comparação com o aborto realizado diretamente por um médico. “Sem dúvida alguma, o aborto sempre traz efeitos psicológicos para a mulher. Agora, o fato de ela fazer isso isolada, sozinha, tomando esta decisão em relação ao próprio filho, é doloroso. É uma prática que, se a mulher dá início, não tem como interromper. A possibilidade de arrependimento antes mesmo de o aborto se consumar é muito real.”

Argumento das necessidades criadas pelo isolamento social não se sustenta

O principal argumento dos defensores da cartilha é de que a pandemia torna necessária a liberação do aborto feito em casa, já que as medidas de isolamento social poderiam desestimular a ida a um hospital para a realização do procedimento.

No entanto, o próprio laboratório que produz o misoprostol, remédio abortivo indicado pela cartilha, afirma que o medicamento só pode ser usado em ambiente hospitalar, algo que também já foi estabelecido por uma portaria de 1998 do Ministério da Saúde.

Jogando com palavras, a cartilha diz que “a ressalva de ‘uso restrito a hospital’ da referida portaria pode ser entendida como cumprida”, já que o acesso ao medicamento só pode se dar por meio de hospital credenciado, o que é possível mesmo com a telemedicina. Mas os autores da cartilha deixam de citar um trecho da bula do medicamento, segundo o qual “a manipulação do misoprostol deve ser feita por especialista”.

Uma nota técnica de julho da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) – órgão do Ministério Público Federal (MPF) – diz que a restrição de uso no hospital, “muito embora possa ser considerada legítima e razoável em situações ordinárias”, não é compatível com as dificuldades geradas pela pandemia para acesso a hospitais.

No entanto, de acordo com dados do Ministério da Saúde, os procedimentos ambulatoriais e as cirurgias eletivas já apresentam uma tendência de retorno à normalidade no Brasil. A quantidade de procedimentos ambulatoriais eletivos realizados no Brasil em junho de 2020 foi de 5,7 milhões; neste ano, o número de junho já subiu para 8,6 milhões – bem próximo da realidade de junho de 2019, quando foram feitos 9,1 milhões de procedimentos ambulatoriais no país.

No que diz respeito às cirurgias eletivas, a tendência de retorno à normalidade é mais lenta, mas ainda assim é evidente. Em junho de 2020, foram realizadas 371,3 mil cirurgias no país; já em junho de 2021, subiu para 525,3 mil. O número de cirurgias realizadas em junho no ano anterior ao início da pandemia no Brasil foi de 718,2 mil.

Além disso, o Conselho Federal de Medicina (CFM) afirmou no início de setembro que prepara “uma estratégia nacional para estimular a população a buscar atendimento médico para a prevenção, diagnóstico e tratamento de doenças, observando as normas de segurança”. O aval do MPF ao teleaborto chega, portanto, atrasado.

Após a nota técnica da PFDC que anulou a recomendação da Procuradoria da República em Minas Gerais e da Defensoria Nacional dos Direitos Humanos, procuradores pró-vida pediram ao Ministério da Saúde que se posicione em relação ao assunto. Até o fechamento desta reportagem, a pasta não tinha se manifestado contra a nota técnica e não havia respondido a um questionamento da Gazeta do Povo sobre a razão disso.

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