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Frei Chico: placas de inspiração religiosa espalhadas pela mata | Ivonaldo Alexandre/Gazeta do Povo
Frei Chico: placas de inspiração religiosa espalhadas pela mata| Foto: Ivonaldo Alexandre/Gazeta do Povo

Triagem

Para entrar no programa da Casa do Servo Sofredor paciente precisa ter poder de decisão. Tem de dizer "eu quero." Veja quais são as etapas:

1 – A primeira etapa de tratamento pode durar 9, 12 ou 24 meses, a depender do grau de comprometimento. Para cada etapa há uma metáfora.

2 – Nove meses é o tempo de uma gestação – "a natureza se encarrega de gerar um novo ser", diz frei Chico.

3 – Doze é a gestação de um burro – costuma ser o tempo necessário para aqueles que as drogas levaram ao desemprego e aos pequenos furtos.

4 – Vinte e quatro é o tempo de gestação de uma baleia: geralmente são homens e mulheres que a drogadição já levou ao delito grave.

Método

1.º passo: É a acolhida, com médico, psiquiatra, atendimento psicológico semanal. Morador segue um regimento interno, com oração, trabalho e disciplina. Freqüenta oficinas de artesanato e ateliês de arte.

2.º passo: Em seis casas, fora do mosteiro, pacientes retomam aos poucos a vida comum. Como estão em condições de trabalho, dividem despesas e retomam de forma mais incisiva o contato com a família.

  • Frei Rafael Rodrigues dedica suas quartas-feiras ao pessoal do mosteiro

O Natal de 2003 foi uma festa às avessas para o toledense WM. Ele tinha 24 anos, sofria de dependência química e acabara de desembarcar sua mala numa cidade que não era a sua – Curitiba. Mais precisamente numa chácara de seis hectares, plantada entre os bairros Pinheirinho e Sítio Cercado, na Zona Sul da capital. Procurava tratamento, e o Mosteiro Monte Carmelo, onde funciona a Casa do Servo Sofredor, podia ser sua última chance de colocar a vida nos trilhos.

Cinco anos depois, WM permanece na mesma casa de madeira com varanda, de frente para um grande bosque de copaíbas e pinheiros e jardins em roda. Foi ali que passou o Natal de 2008. E continua, igualmente, na condição de "servo", palavra usada para designar os moradores do mosteiro, invariavelmente castigados pelo álcool e pelas drogas.

A diferença é que entre 2003 e 2008, ele passou da condição de paciente para agente. Está prestes a concluir um curso superior e se tornou uma espécie de braço-direito do paraibano Francisco Manoel de Oliveira, 55 anos, o frei Chico, padre carmelita que idealizou a obra. Não só. WM – um jovem miúdo, de voz pequena e gestos comedidos – cuida da ala mais complicada do mosteiro – justo aquela onde estão os que chegam em estado de comprometimento mais grave. São 20 sobreviventes do inferno. É ali que aprendem as regras, reorganizam suas vidas, e são motivados a conviver com outras pessoas – já que terão longa jornada noite adentro.

Saga

A história do Monteiro Monte Carmelo é uma verdadeira saga. Em meados da década de 90, o frei Chico trabalhava na comunidade Imaculada Conceição, na Vila Fanny, onde se ocupava da população sem-teto. Não raro, se deparava com até 15 pessoas dormindo na porta da casa paroquial – várias delas assoladas pela drogadição, oriundas do Parolin e do finado Valetão da Vila Guaíra. Foi seu encontro marcado. "O problema era cem vezes maior do que conseguíamos ver. Estávamos diante do imprevisível", conta.

O mundo dos entorpecentes era não só desconhecido para o religioso como parecia ser um problema de saúde pública, e não pastoral. Mesmo assim, continuou. "Houve muita reflexão na ordem carmelita se deveríamos seguir adiante. Mas nunca tive dúvidas de que a Igreja deveria desenvolver sua gratuidade nesse campo também. Hoje, atender essas pessoas é um campo do Evangelho como outros", explica.

Continuar, naquela ocasião, significava ampliar os limites do atendimento paroquial para um espaço em que os dependentes químicos e de álcool realmente pudessem retomar seu leme, com terapias adequadas. Em dezembro de 1999, esse lugar apareceu. As irmãs beneditinas, assustadas com o fenômeno Bairro Novo – que fez a cidade avançar em volta do Mosteiro do Encontro – venderam para os carmelitas, em prestação, sua propriedade, logo transformada no Mosteiro Monte Carmelo, a Casa do Servo Sofredor, o lugar onde jovens como WM descem as malas e onde muitos, como ele, tornam-se servos da causa.

Além da beleza da mata secundária, o lugar impressiona por um detalhe: os portões estão sempre abertos. "Põe aí que aqui ninguém fica preso", dita frei Chico, com a fleuma que lhe é própria. Não faltam placas de inspiração religiosa espalhadas pelos espaços, como a que diz: "Ninguém aprende a amar sem contato com a fraqueza humana". Todos trabalham na manutenção da chácara – seja na jardinagem, seja no artesanato e horta, seja produzindo tijolos, uma das fontes de subsistência do mosteiro. A rotina começa às 6 da manhã e vai até as 21 horas. Um grande sino, à moda monástica, dá conta da marcação das atividades. Mas a atividade principal é terapêutica.

Semanalmente há reuniões da comunidade, chamadas de "correção fraterna". Às quartas-feiras, acontece o ponto alto da terapia. Uma dezena de psicólogos e pessoas devidamente treinadas para o ofício passam o dia no mosteiro fazendo "escuta", um elemento da pedagogia da casa. Sentados nos troncos de árvore com os moradores, voluntários fazem sessões de 30 minutos de conversa, nas quais são precisamente "todo ouvidos".

Durante três anos o frei carmelita Rafael Rodrigues, 25 anos, curitibano do Boqueirão, hoje estudante de Teologia em Porto Alegre, dedicou suas quartas-feiras ao pessoal do mosteiro. A experiência acabou moldando sua vida. Pretende, sim, se tornar um religioso voltado para a pastoral dos dependentes químicos.

No mosteiro há uma farmácia – batizada de São João da Cruz –, pois a maioria dos internos é medicada continuamente para controlar a ansiedade, a angústia e cortar a fissura. Muitos ali chegam em petição de miséria – em especial os que consomem crack, como se pode presenciar em poucos minutos de observação na portaria. Mesmo com atendimento médico e espiritual, a depressão e os surtos são moeda corrente, em especial no início. WM conta que é preciso ter paciência. "Nas horas mais tensas lembro que vivi aquilo. Sou ex-dependente. Convido o morador a dar uma volta, ir à capela. Tenho de ser franco. Mas geralmente não é o fim do mundo. Aprendi apanhando. Hoje sei que preciso encontrar o lado bom de cada uma dessas pessoas."

Frei Chico – também exposto 24 horas à convivência com os dependentes – ri quando lhe é perguntado sobre suas defesas. "Eu rezo, meu filho", dispara, enquanto lista sua maratona de missas, meditação, terços, em meio a aconselhamentos e ao provimento da casa.

Na sua cela – uma das muitas pequenas casas da chácara – tem um verdadeiro santuário instalado no chão, no qual não faltam anjos e santos de Deus, assim como um emblema do São Paulo, o time de futebol. Frei Chico é assim, surpreendente: passa da irritação à generosidade, da falta de paciência ao atendimento dedicado às dezenas de pessoas que o procuram na portaria ou ligam pedindo uma vaga – vaga que nem sempre existe.

A Casa do Servo Sofredor é mantida pelo sistema de "colméia", nome dado aos vários grupos de simpatizantes que se organizam para angariar fundos. O espírito que os rege é o do "silêncio da abelha", como dizem. Não é aconselhado alardear a adesão à obra. O que se sabe, apenas, é que cada interno custa R$ 240 por mês. E que o mosteiro não tem convênios com secretarias de saúde ou de assistência social.

Frei Chico está entre os apoiadores da política do governo – "era preciso desmontar esse sistema que já dura 500 anos no Brasil" –, mas não pode deixar de lamentar a situação difícil a que estão sujeitos os espaços destinados aos que se encontram em estado crítico de drogadição, os impossibilitados de voltar às famílias e os muito pobres. Esses são, não por acaso, seus servos sofredores.

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Serviço:

Casa do Servo Sofredor, Rua La Salle, 850, (41) 3349-1681. casadoservosofredor@bol.com.br.

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