No Rio de Janeiro há, segundo a Polícia Civil, 56,6 mil criminosos em liberdade portando armas de fogo de grosso calibre. O número é maior do que todo o efetivo da Polícia Militar do estado (PMERJ), que possui atualmente 44,3 mil policiais, com apenas metade deles atuando nas ruas. Somado a isso, há 51 mil presos ligados a facções no estado e 895 criminosos de altíssima periculosidade com mandados de prisão em aberto.
Há décadas, facções criminosas passaram a dominar o tráfico de drogas com “mão de ferro” em praticamente todas as regiões do estado, ditando as regras aos moradores, criando tribunais informais para execuções e torturas e recorrendo a equipamento bélico utilizado apenas pelas forças armadas para proteger seus territórios de facções rivais e de forças policiais.
“As restrições do STF às operações policiais aumentaram ainda mais a criminalidade. Como consequência dessas restrições, o crime pôde se estruturar com muito mais facilidade. Essa resistência armada absurda que houve no Jacarezinho, está assim em várias outras favelas”, afirmou, sob sigilo, um cabo da PMERJ à Gazeta do Povo.
Crime como ideologia
De acordo com fontes ouvidas pela reportagem, o estopim para chegar à atual situação caótica nas favelas cariocas ocorreu entre o fim da década de 1970 e início da década de 80, quando presos militantes de grupos armados que combatiam a Ditadura Militar foram colocados juntos com presos comuns na Colônia Penal Cândido Mendes, na Ilha Grande. “Os presos políticos começaram a doutrinar os demais a partir de uma espécie de ideologização do crime que deu origem a essas facções organizadas”, explica Luiz Fernando Ramos Aguiar, especialista em segurança pública e major da Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF).
O Comando Vermelho, principal facção criminosa do Rio de Janeiro, foi fundado nessa unidade prisional em 1979, sob o lema: “Paz, Justiça e Liberdade” – que futuramente seria replicado pelo Primeiro Comando da Capital (PCC), no estado de São Paulo. Sob o pretexto de ajudar os oprimidos e menos favorecidos, o grupo rapidamente ganhou a simpatia de um grande número de criminosos dentro e fora dos presídios e passou a se expandir.
Somado a isso, a política de não-intervenção nas favelas, adotada pelo ex-governador do estado Leonel Brizola na década de 80, impediu a realização de operações policiais nas favelas, o que aumentou o abismo entre o Estado e as comunidades e permitiu que o Comando Vermelho assumisse o controle desses locais.
“Brizola iniciou essa política sem nenhum embasamento técnico. Em vez de combater eventuais abusos, ele foi pela política de não-intervenção. As facções, durante muitos anos, foram buscando convencer a população distribuindo cestas básicas, controlando os serviços de fornecimento de gás, água potável e, com isso, acabaram tomando a função do Estado”, cita o major da PMDF. “O problema é que a lei é [supostamente representada por] eles. Os territórios ficaram dominados e a própria a população acabou tornando-se escrava do crime organizado”.
Com o domínio do território e sem a presença da polícia, ali criou-se um espaço para outros tipos de delitos, como roubos de carga, desmanche de veículos e diversos outros crimes. “Essa nova dinâmica se tornou muito mais lucrativa do que só o tráfico de drogas”, cita o cabo da PMERJ.
O policial explica que posteriormente começaram a surgir novas facções, como o Terceiro Comando no final da década de 80, e a Amigos dos Amigos (ADA) na década de 90. Os grupos passaram, então, a se armar cada vez mais para defender os pontos de processamento e venda de drogas de ataques das facções rivais e eventualmente das operações policiais, que aos poucos foram sendo retomadas nos governos seguintes.
Policiamento comunitário contra o narcotráfico
Uma reação mais organizada por parte do poder público só ocorreu em 2008, com a instituição do policiamento comunitário nas favelas por meio das chamadas Unidades de Polícia Pacificadora (UPP). O conceito era simples: haveria operações iniciais de força a fim de desarticular as quadrilhas, apreender equipamento bélico e prender lideranças do narcotráfico e, em seguida, o Estado entraria com políticas e equipamentos públicos, como hospitais, escolas e postos de saúde, além da permanência das UPPs nestes locais.
“Funcionou muito bem por um tempo. Isso provou que se o Estado quiser, sua força é maior do que a do tráfico. O problema é que aquilo fez tanto sucesso que acabou virando uma política de marketing e deixou de ser feito como deveria”, aponta Aguiar. “A replicação do modelo foi feita em várias favelas em ritmo industrial, e o poder público não dava conta de entrar naqueles locais na mesma velocidade em que eram feitas as pacificações pelas forças policiais. Não houve força do Estado para manter os territórios, e estes foram se perdendo”, explica.
A implantação das UPPs, entretanto, teve um efeito colateral: com o início das intervenções, as facções passaram a migrar para outros locais e conseguiram implementar, nesses novos ambientes, o mesmo modelo que tinham nos morros. As milícias - grupos criminosos armados que cobram mensalidades dos moradores para fornecer "proteção" em locais até então dominados pelo narcotráfico - também não foram adequadamente enfraquecidas pelas recém-implantadas UPPs.
De acordo com Aguiar, somado a esse cenário que foi sendo construído nas últimas décadas no Rio de Janeiro, também há problemas relacionados ao Poder Judiciário. “A Justiça brasileira solta muita gente. As penas não são leves, mas há diversos mecanismos para atenuá-las, o que mantém criminosos nas ruas e gera a impunidade que alimenta a reincidência de crimes”, salienta.
Confrontos violentos com o narcotráfico
Para o cabo da PMERJ, a geografia de algumas regiões - na maioria das comunidades foi construída sobre os morros - contribui para que criminosos ligados ao narcotráfico constituam redutos de proteção e perpetuação do crime. Para o policial, no entanto, o que sustenta o domínio das facções é o alto poder de fogo em mãos do crime organizado.
Em poder das facções, há uma infinidade de pistolas e fuzis (majoritariamente modelos importados), além de granadas e demais equipamentos que nem a Polícia Militar tem à disposição. “São calibres usados por forças armadas no mundo todo, armas que nem a polícia tem, com poder de fogo automático. A polícia usa armas semiautomáticas”, observa. Para proteger os territórios, os criminosos recorrem também à instalação de barricadas impedindo a entrada de veículos blindados nas operações, o que aumenta a proteção das facções.
O armamento pesado é utilizado por criminosos sem preparação para o manuseio adequado e sem receio de efetuar disparos a esmo para proteger seus domínios. A perigosa combinação expõe um grande número de moradores que não têm ligação com atividades ilícitas ao risco de serem vitimados nos combates. “Se a polícia cometer um erro ou excesso, responderá por isso; o criminoso não. Então ele dispara sem direção, sem pensar nos riscos ou efeitos colaterais que podem acontecer”, explica o membro da Polícia Militar.
Para o cabo, que está há dez anos na PMERJ, sendo seis deles em UPPs, a população que reside nas favelas é bastante oprimida pelo tráfico de drogas, e o apoio às facções é minoritário. “Os criminosos impõem as próprias leis, fazem justiça com as próprias mãos, determinam o que o morador pode ou não falar e fazer”, aponta. Para ele, no entanto, há uma “cultura do tráfico” que foi sendo formada ao longo das décadas de domínio das facções, que fomenta a hostilidade à polícia nesses locais.
O policial conta que, no período em que atuou nas UPPs, percebeu uma aceitação muito maior à polícia por parte dos moradores que trabalham o dia inteiro e buscam licitamente condições melhores para suas famílias. “Muitos deles cumprimentam a polícia, alguns até tentam passar alguma informação sobre as ações criminosas, mas com bastante medo dos traficantes. A maior hostilidade vem da população que é sustentada direta ou indiretamente pelo narcotráfico, como alguns comerciantes beneficiados pelo movimento gerado por essas atividades, além de parentes de criminosos, que também vivem da renda do tráfico. Mas é a menor parte”, observa.
Restrições a operações policiais no Rio de Janeiro em pauta no STF
Além de proibir quase todas as operações policiais em favelas dominadas pelo narcotráfico na capital fluminense durante a pandemia da Covid-19, em agosto de 2020 o STF também estabeleceu restrições às poucas operações permitidas, como o impedimento do uso de helicópteros por parte das forças policiais.
Em 21 de maio, o Supremo deu início ao julgamento, na modalidade virtual, de uma ação ajuizada pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB) que pede uma série de medidas que teriam como objetivo reduzir as mortes decorrentes de operações policiais no Rio de Janeiro. Em seu voto, o relator, ministro Edson Fachin, acatou diversas restrições reivindicadas na ação. Em seguida, o ministro Alexandre de Moraes pediu vista, suspendendo temporariamente o julgamento.
Segundo o cabo da PMERJ, é preciso investir em inteligência policial para combater o narcotráfico, além de aumentar o efetivo das polícias civil e militar, bem como melhorar condições de trabalho. Porém, o policial aponta que mesmo com as melhorias estruturais é impossível evitar o enfrentamento direto ao crime organizado.
“O que existe no Rio são grupos paramilitares que dominam mais de mil favelas – mil partes do território brasileiro – com alto poder bélico e usando táticas de guerrilha. Eles não vão entregar as armas; uma parte da solução passa por esse enfrentamento”.
Para o major da PMDF, restrições às operações policiais no Rio se assemelham à política de não intervenção de Leonel Brizola que resultaram no crescimento exponencial do crime organizado na região.
“Hoje a situação é muito mais grave, não há comparação. Uma medida como essa favorece o crime em detrimento da população e permite que mais cenários como o de Jacarezinho sejam construídos. E no momento em que a polícia tiver que retomar as comunidades, serão batalhas ainda mais sangrentas”, ressalta Aguiar.
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