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O haitiano Maurice tenta superar o trauma de ter sido espancado e humilhado no antigo trabalho | Brunno Covello/Gazeta do Povo
O haitiano Maurice tenta superar o trauma de ter sido espancado e humilhado no antigo trabalho| Foto: Brunno Covello/Gazeta do Povo

As cicatrizes de Maurice

O sorriso de Maurice* só dá lugar a uma expressão sisuda quando se lembra das injúrias que ainda lhe doem. Há pouco mais de três meses, o imigrante do Haiti foi espancado por dois colegas de trabalho, que também chamavam-no de macaco e lhe atiravam bananas. Após a humilhação, foi demitido. "Eu não gosto de lembrar, porque sempre tratei eles como irmãos e eles me humilharam e me bateram", diz o rapaz de 26 anos.

Na luta para superar o trauma, o novo emprego, como carregador da Ceasa, tem sido um alento a Maurice, que comemora a volta por cima. Todo dia, às 3 horas da madrugada, pedala a bicicleta recém-comprada até o novo local de trabalho. No início do ano que vem, vai cursar filosofia e sociologia no Ceebeja/CIC. Planeja trazer ao Brasil o irmão mais velho e a namorada, que não vê a um ano e três meses, mas com quem conversa diariamente pelo WhatsApp. "Ela chega num dia e a gente se casa no outro", garante. "Ela fica brava com a distância, acha que tenho outra. Mas eu amo ela."

No apartamento espremido de dois cômodos que divide com outro haitiano, no Tatuquara, duas Bíblias e uma biografia de Hugo Chávez dividem espaço com produtos de higiene sobre a cômoda – único móvel da casa. Maurice não vê sentido no preconceito. "Todo mundo foi criado por um só Deus. Eu fico triste com tudo isso. O haitiano que vem quer ajudar o Brasil", finaliza.

*nome fictício

Os preconceitos racial e de origem saíram do limbo em 2014. Das manifestações em estádios de futebol às agressões contra imigrantes haitianos, os casos passaram – vergonhosamente – a se repetir. Apesar das cicatrizes que deixaram nas vítimas, os incidentes parecem ter provocado um debate sobre o tema, a ponto de o Paraná reconhecer o problema. Pesquisa inédita realizada pelo instituto Paraná Pesquisas a pedido da Gazeta do Povo mostra que 96% dos paranaenses assumem haver preconceito racial no Brasil e que 57% concordam que imigrantes sofrem preconceito.

INFOGRÁFICO: Levantamento mostra as impressões do paranaense em relação ao preconceito racial e à condição dos imigrantes

"A pesquisa deixa claro que, apesar de as pessoas terem vergonha de se assumirem como preconceituosas, o Brasil, sem sombra de dúvidas, é um país preconceituoso", resume Murilo Hidalgo, do Paraná Pesquisas.

Quem luta pelo direito das vítimas considera que o reconhecimento do preconceito é um estágio importante para superá-lo. No entanto, é preciso avançar. Para o presidente da comissão de igualdade racial da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Mesael Caetano dos Santos, o país precisa apostar em dois elementos básicos: educação e punição de quem comete atos de racismo ou injúria.

"O Brasil enfrenta um racismo velado e silencioso, que maltrata e corrói. O preconceito está no cotidiano. Não se vê negros ocupando cargos de alto escalão em instituições e empresas. Na indústria, um negro chega a ganhar a metade que um branco. Tudo isso é revelador", exemplifica Santos.

Imigração

Em relação aos estrangeiros, além do fator racial (o principal fluxo migratório recente é o de haitianos), a rejeição está atrelada à questão trabalhista. Mais de 31% dos paranaenses acreditam que os imigrantes "tiram empregos" dos brasileiros. Mas a realidade é mais dura. A maioria dos que vêm de outros países acaba ocupando postos que exigem pouca qualificação – como construção civil e frigoríficos. Sem uma rede de proteção, ficam suscetíveis a golpes ou sofrem violação de direitos trabalhistas.

Quase que diariamente, o Ministério Público do Trabalho (MPT) identifica vítimas e desencadeia ações, como vistoria a locais de trabalho. "Os casos que temos apurado envolvem discriminação, falta de pagamento de salário, falta de registro, retenção de documentos e uma série de abusos contratuais. Os migrantes enfrentam, ainda, segregação dentro das próprias empresas. É uma conjuntura que só vamos superar com educação e trabalho", assinalou a procuradora do Trabalho Cristiane Maria Sbalqueiro Lopes.

A pesquisa aponta ainda que 47,4% querem que o Brasil feche às portas aos estrangeiros e deixe de conceder vistos a refugiados. "Tudo isso preocupa, porque a injúria racial passou a vir acompanhada da violência física. O problema é ainda pior. Tem outros níveis de preconceitos, que devem ter ficado ocultos na pesquisa", disse a advogada Nádia Floriani, presidente da comissão de direitos dos migrantes da OAB.

Professora é chamada de "macaca" e de "preta carioca"

A professora Isadora* abriu com curiosidade o envelope anônimo, deixado na sala de professores da faculdade onde leciona para turmas de engenharia. O conteúdo a chocou: tratava-se de um e-mail enviado por um aluno a mais de 60 colegas de classe, com a grade curricular do semestre. Nas aulas atribuídas a Isadora não constava o nome dela, mas a palavra "macaca". Abaixo, outra injúria: "Notícia ruim: preta carioca dando aula", dizia a mensagem.

"Eu chorei por isso. Chorei pela pequenez do pensamento das pessoas. Pensei no meu pai, na minha família, nas pessoas que são mais morenas que eu e que devem passar por isso o tempo todo. Várias rejeições que sofri no passado vieram à tona", contou a professora.

Acompanhado pela comissão de igualdade racial da OAB, o caso ocorreu em agosto deste ano, mas só veio à tona agora, depois que Isadora resolveu romper o silêncio. Ela moveu uma ação criminal por injúria racial, ainda em tramitação, contra o aluno que enviou o e-mail. Na esfera cível, o rapaz já foi condenado a pagar R$ 10 mil como indenização por danos morais. "Não era o valor que me interessava, mas o fato de ele sentir peso da atitude dele", afirma Isadora.

Casada e em vias de ingressar no doutorado, a professora resistiu. Continuou lecionando na Faculdade Educacional Araucária (Facear), onde o caso ocorreu. "A instituição foi leniente. O aluno apenas foi suspenso e mudaram ele de turma. Era um caso para expulsão", diz a professora.

O diretor-geral da Facear, Murilo Andrade, ressaltou que a instituição prestou apoio e orientação à professora e que instaurou um processo administrativo, no qual o aluno foi suspenso por 30 dias. O estudante está em vias de concluir o curso de engenharia de produção. "A nossa esfera é administrativa. Ou seja, não temos poder de investigação. Foi a pena mais grave já aplicada na instituição. É claro que não suprime o que a professora sofreu, mas é o que estava previsto na nossa esfera", disse.

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