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Com lei aprovada há um ano, pagamento a produtores rurais por serviços ambientais não avançou
Na maior parte do país, produtores rurais só podem usar 20% da área das fazendas para atividades agrícolas e pecuárias| Foto: Wenderson Araújo/CNA

Em janeiro de 2021, o presidente Jair Bolsonaro (PL) sancionou uma importante lei que tinha como proposta definir mecanismos para beneficiar produtores rurais que prestam serviços ambientais ao preservar, por força de lei, uma ampla extensão de suas fazendas. As taxas de preservação em grande parte do país chegam a 80% do total da propriedade, restando apenas uma fração do território para uso agropecuário.

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A Lei 14.119/2021, que institui a Política Nacional de Pagamento por Serviços Ambientais, era vista por produtores rurais como resposta a uma demanda bastante antiga do setor, uma vez que ao invés de apenas penalizar ações danosas ao meio ambiente, o poder público passaria a incentivar, inclusive por meio de repasses financeiros diretos, produtores que, a título de proteção ou recuperação das matas nativas, prestam serviços ambientais.

A entrada em vigor da lei, no entanto, não garantiu avanços concretos. Isso porque, a lei em si não é suficiente para estabelecer os pagamentos: há a necessidade da criação de políticas públicas e legislações específicas, que podem ser federais (em especial quanto à regulamentação da lei por parte do governo federal, que ainda não foi feita), estaduais ou municipais.

Poder público prevê altas taxas de preservação, mas não oferece contrapartida

Aproximadamente 59% do território brasileiro está entre as áreas com maiores taxas de preservação, as quais os produtores rurais devem zelar em cumprimento ao Código Florestal. Toda essa extensão corresponde à Amazônia Legal – região de 5 milhões de quilômetros quadrados composta por quase 800 municípios de nove estados: Amazonas, Roraima, Rondônia, Pará, Maranhão (parcialmente), Amapá, Acre, Tocantins e Mato Grosso.

Em toda essa extensão, que equivale a dois terços do território brasileiro, os produtores rurais podem utilizar apenas 20% de suas propriedades para fins produtivos, sendo que todo o restante - o que corresponde a 80% das terras, chamado de área de Reserva Legal (RL), deve ser preservado. O Código Florestal também determina 35% de reserva legal em áreas de Cerrado e 20% para o restante do país.

 <em>Na maior parte do país, produtores rurais só podem usar 20% da área das fazendas para atividades agrícolas e pecuárias.</em>
Na maior parte do país, produtores rurais só podem usar 20% da área das fazendas para atividades agrícolas e pecuárias.

Além da extensão de terra referente à reserva legal, os produtores também devem proteger as chamadas Áreas de Preservação Permanente (APPs), que são principalmente beiras de rios (cuja área sob proteção é variável entre 30 e 600 metros a partir do término do rio, dependendo de sua largura). Também são consideradas APPs topos de morro, serras, montanhas e encostas. Em casos específicos é admitida a soma das APPs no cálculo da área de reserva legal, para que atinja o percentual mínimo exigido por lei. De maneira geral, porém, não é possível computar ambas como reserva legal.

Para o engenheiro agrônomo e pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) Décio Luiz Gazzoni, as altas taxas de proteção e a falta de incentivo financeiro aos produtores rurais por manter essas extensões de mata nativa são “duas faces da mesma moeda” quando se trata de obstáculos ao setor agropecuário. “Se não houvesse a obrigação legal de manter RL e APP, o produtor poderia expandir sua área de produção, portanto teria uma remuneração. Como existe essa obrigatoriedade, a alternativa seria o pagamento por serviço ambiental, isto é, a remuneração por uma parcela da propriedade que não pode ter destinação econômica e que se destina a prestar um serviço à sociedade”.

Questões em aberto na lei sobre remuneração por serviços ambientais

De acordo com a Política Nacional de Pagamento por Serviços Ambientais, seriam beneficiados tanto produtores rurais como comunidades tradicionais e povos indígenas. A norma prevê diversas modalidades de pagamento pela proteção ambiental, como pagamento direto (monetário ou não), prestação de melhorias sociais às comunidades rurais e urbanas, compensação vinculada a certificado de redução de emissões por desmatamento e degradação, títulos verdes (green bonds), comodato e cota de reserva ambiental.

Além da conservação de vegetação nativa, seriam elegíveis para pagamento práticas como recuperação de áreas degradadas, proteção de fontes e mananciais de água, estocagem de carbono e conservação da biodiversidade. Na prática, com a efetivação da lei, o setor agropecuário passaria a ser remunerado por um serviço até então prestado gratuitamente.

“A propriedade rural tem, por força de lei e também por força voluntária, uma prestação de serviço ambiental ampla. Uma vez que há uma reserva legal a qual o produtor protege, cerca, evita incêndio, impede caça, ele está tendo um custo para a manutenção desse serviço ecossistêmico”, diz Nelson Ananias, coordenador de sustentabilidade da Confederação da Agricultura e Pecuária (CNA). “Apenas com esse custo sendo reconhecido, ele poderia ser elegido como um serviço ambiental prestado”.

Ananias explica que, apesar da aprovação da lei pelo Congresso Nacional, questões importantes como a origem dos recursos a serem pagos, a mensuração do valor dos serviços ambientais e a ordem de priorização de quem irá receber os benefícios não foram definidos pelos parlamentares - e isso resultou em um vácuo quanto à concretização da lei.

“Como isso ficou em aberto na lei, ela está fazendo um ano e ainda não saiu do papel, porque não foram resolvidos devidamente esses gargalos. Agora precisa passar por uma discussão de regulamentação, para que se defina essas questões”, diz o coordenador de sustentabilidade da CNA.

Para ele, devido à eventual lentidão do poder público para remunerar os produtores, um dos principais pontos a serem contemplados nessa regulamentação está relacionado à atração do setor privado para aportar recursos para a preservação. “Não é só o poder público. Acho que o setor privado tem até mais potencial para isso. Mas as empresas têm que ter segurança jurídica de investir para ter retorno, por exemplo em melhora de imagem devido ao investimento em recuperação do meio ambiente. Essa questão é outra que ainda está pendente”, afirma Ananias.

Papéis do governo federal, de estados e municípios

De acordo com fontes ouvidas pela Gazeta do Povo, o governo federal, além da incumbência de regulamentar a Política Nacional de Pagamento por Serviços Ambientais, deve atuar na atração de recursos de fomento à preservação ambiental para que cheguem à ponta.

Há, no entanto, a necessidade de que estados e municípios se envolvam para que a lei saia do papel. A atuação desses entes seria por meio da captação de recursos e destinação de quantias próprias para a remuneração dos produtores e da elaboração de programas específicos para essa finalidade. Atualmente, existem poucos programas regionais em funcionamento que remuneram produtores rurais pela preservação ou recuperação de suas áreas.

Além disso, parte deles condiciona o pagamento a outras práticas conservacionistas, algumas delas responsáveis por limitar ainda mais as áreas disponíveis para produção agropecuária. Esse é o caso, por exemplo, de um programa lançado pelo governo do Mato Grosso, ainda em 2020, chamado Compensação Financeira para Produtores com Excedente de Reserva Legal (Conserv). O projeto remunera produtores que preservam áreas além daquelas determinadas pelo Código Florestal, ou seja, aqueles que reduziram ainda mais suas áreas produtivas.

Projeto de lei sobre licenciamento ambiental destravaria uso das áreas permitidas, diz especialista

Em paralelo ao andamento da Pagamento por Serviços Ambientais, fontes ouvidas pela Gazeta do Povo afirmam que o Senado terá um papel importante neste ano ao apreciar a proposta que estabelece a lei geral do licenciamento ambiental, aprovada na Câmara dos Deputados em maio do ano passado. Pelo texto aprovado, ficam dispensadas do licenciamento ambiental algumas atividades agropecuárias desde que a propriedade esteja regular no Cadastro Ambiental Rural (CAR), ou esteja em processo de regularização, ou ainda se houver firmado termo de compromisso para recompor vegetação suprimida ilegalmente.

Conforme explica o coordenador de sustentabilidade da CNA, mesmo as áreas de dentro da fazenda que são elegíveis para produção agropecuária só podem ser manejadas caso seja emitida a licença para a atividade, o que frequentemente demora um longo período e deixa o  produtor rural impossibilitado de utilizar o terreno que é de sua propriedade. A aprovação da lei do licenciamento ambiental, portanto, destravaria o impedimento ao uso das áreas que não representam a reserva legal das propriedades.

“O produtor tem direito a desmatar 20% da sua propriedade dentro da Amazônia, mas não o é permitido se não tiver licença para trabalhar nessa área - que é de seu direito. Esse licenciamento costuma demorar anos e é burocrático, além de caro. Não é qualquer um que pode arcar com isso”, afirma Ananias. “Isso acaba levando a uma situação de irregularidade, porque o proprietário, apesar de ter o direito de desmatar naquela área, muitas vezes não consegue a licença, apesar de estar há anos aguardando, ou está irregular porque não dispõe de recursos para pagar pela licença”.

O projeto de lei, no entanto, é alvo de críticas de entidades ambientalistas, que defendem que a medida acabaria com o licenciamento ambiental no país. Recentemente, o Green Peace criou uma petição on-line a ser entregue ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD), solicitando que a matéria não entre em pauta. “O texto proposto fragiliza e elimina a necessidade de medidas importantes para a segurança e a saúde da população e para a proteção das riquezas naturais do país”, cita trecho da petição.

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