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A casa de Isabel e Tiago é bem equipada, mas a rua onde moram não tem coleta de esgoto | Albari Rosa/ Gazeta do Povo
A casa de Isabel e Tiago é bem equipada, mas a rua onde moram não tem coleta de esgoto| Foto: Albari Rosa/ Gazeta do Povo

Entrevista

"O Brasil sente as dores do crescimento"

Marcelo Neri, presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

A ampliação dos serviços públicos ficou muito aquém do aumento no nível de renda. Como o senhor avalia isso?

Realmente, os serviços públicos ficaram aquém, e isso falando só em termos de quantidade, sem mencionar a qualidade. Temos um grande desafio pela frente. Mas são as dores do crescimento. Como as pessoas trabalham mais, se deslocam mais e fazem mais coisas, acabam pressionando a rede de serviços, os sistemas de transporte e de saúde, por exemplo.

Como vencer esse desafio?

Acredito que a solução passa pelas concessões e pelas parcerias público-privadas, para aumentar a quantidade e a qualidade da infraestrutura brasileira. Mas é preciso ter a sabedoria de usar aquilo que o setor privado sabe fazer bem, e ter capacidade para gerir e regular os serviços.

É possível fazer isso com a manutenção dos programas que ajudam a combater a pobreza?

É justamente isso que a sociedade quer, um caminho do meio. A sociedade quer o mercado operando, mas quer justiça social. O desenvolvimento da infraestrutura pode inclusive contribuir com o PIB, gerando mais renda e igualdade.

Saída

Poder público precisa ser mais eficiente e buscar parcerias

Para melhorar a oferta de serviços públicos, o poder público não precisa deixar de lado as políticas de redistribuição de renda. Mas precisa fazer uso de parcerias público-privadas e terceirizar algumas atividades, limitando-se ao papel de regulador. "A privatização da telefonia, por si só, foi uma maravilha, mas o governo não fez a regulação necessária. Precisamos de uma gestão mais eficiente, técnica", declara o consultor Sir Carvalho.

De acordo com o presidente da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental (Abes), Dante Ragazzi, as parcerias com a iniciativa privada são fundamentais para a universalização dos serviços de água e esgoto, mas também é preciso melhorar a gestão. "O PAC mostrou que não adianta colocar dinheiro se os municípios não têm estrutura para fazer projetos, porque não tem pessoal técnico."

O economista Demian Castro sugere ações para os cidadãos, como maior participação popular na definição dos orçamentos públicos. "E temos que melhorar a qualidade da nossa escolha política."

A desejar

Veja mais informações sobre serviços públicos no Brasil que precisam melhorar:

Transporte

• Os dados mais recentes divulgados pelo Ipea (referentes a 2009) mostram que o tempo médio necessário para o deslocamento de casa ao trabalho chega a 43 minutos em São Paulo e Rio de Janeiro, acima do registrado nas capitais mundiais Londres, Nova York e Tóquio.

• Na Região Metropolitana de Curitiba, o tempo médio nesse deslocamento é de 32 minutos.

Saúde

• Pesquisa divulgada pela Ouvidoria Geral do Sistema Único de Saúde (SUS) em 2011 mostrou que 40% dos usuários esperaram de duas a mais de quatro horas pelo atendimento. Outros 5% relataram que nem foram atendidos.

• A respeito do serviços prestados pelo SUS, 36,16% dos entrevistados avaliaram o SUS como "bom" ou "muito bom", 34,04% como "regular" e 28,64% como "ruim" ou "muito ruim".

"Era uma casa muito engraçada. Não tinha teto, não tinha nada." Os versos famosos do poeta Vinícius de Moraes já não retratam a realidade da maior parte da população. Hoje, graças à evolução recente no nível de renda, a proporção de brasileiros que conseguiu equipá-la com televisão, fogão, máquina de lavar e geladeira aumentou 320% em relação há 20 anos. Essas conquistas foram fruto principalmente da inserção no mercado de trabalho, que veio acompanhada de um aumento no nível educacional médio da população.

INFOGRÁFICO: Renda no país aumenta, mas prestação de serviços públicos ainda é precária

Por outro lado, a proporção de pessoas com acesso a serviços essenciais – como coleta de lixo, rede de esgoto e abastecimento de água – cresceu apenas 45% no mesmo período. Ou seja: o brasileiro passou a estudar, trabalhar, ganhar mais e gastar com bens de consumo, mas não vê a contrapartida do Estado na prestação de serviços públicos.

Os dados foram divulgados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) com base na Pesquisa Nacional de Domicílios (Pnad) de 2012. O Ipea analisou o período de 1992 a 2012 para mostrar a evolução na qualidade de vida do brasileiro – e concluiu que ela se refletiu com mais força no consumo.

Segundo especialistas, municípios, estados e União também falham em outras frentes de serviço – e não apenas os relacionados ao saneamento básico, item medido pela Pnad. "Se fizermos uma fotografia deste momento, veremos que uma grande parte da população ainda vive mal e há um porcentual grande no número de obesos. O Brasil vai ter uma população obesa sem antes ter passado pelo estágio do bem-estar, contrariando o caminho seguido pelas nações desenvolvidas", observa o economista Demian Castro, professor da Universidade Federal do Paraná.

"Tudo que depende da gestão pública está um caos. O governo deixa de fazer aquilo que é importante para fazer o que é politicamente interessante", diz Sir Carvalho, consultor em gestão estratégica. A cientista política Celene Tonella, da Universidade Esta­dual de Maringá (UEM), também vê desordem na prestação de serviços públicos. Segundo ela, os problemas se concentram nos grandes centros urbanos. "A população mora mal, longe e tem que enfrentar o caos causado pelo uso do transporte privado."

Sem saneamento

A dona de casa Isabel Silvério, 33 anos, se enquadra no cenário descrito pelo Ipea. Comprou carro ("a perder de vista", diz) e eletrodomésticos. Mas mora em uma rua de saibro com esgoto a céu aberto em Almirante Tamandaré, na Grande Curitiba. "As casas ali jogam tudo no rio", diz.

A sujeira acumulada provoca enchente quando chove, impedindo o acesso. Ela também se queixa dos serviços de saúde. "Faz pouco tempo que chegou um pediatra no postinho, desde o começo do ano não tinha nenhum", conta ela, ao lado do filho Tiago, de 6 anos.

Renda melhora graças ao trabalho formal

De acordo com o Ipea, a renda per capita média do brasileiro cresceu 80% entre 1992 e 2002, já descontada a inflação do período. O que chama a atenção é que, apesar da ampliação de programas assistenciais, o principal fator que contribuiu para esse aumento foi a inserção das pessoas no mercado de trabalho. A renda gerada pela força de trabalho foi a principal responsável, com contribuição de 71%.

Outro fator positivo é que a escolaridade dos trabalhadores também aumentou. Passou de uma média de 5,7 anos de estudo em 1992 para 8,8 anos. Quem chega ao ensino superior acumula 15 anos em bancos escolares.

Josué Machado, 20 anos, quer ser um deles. Por meio do Programa Universidade para Todos, conseguiu uma bolsa e está cursando Relações Internacionais, em Curitiba. Ele avalia que as condições de vida melhoraram, mas o transporte público ainda deixa a desejar. "Precisamos de mais integração e linhas. Aqui no Pilarzinho só passa o Inter 2, e depender dele é terrível."

Autoestima em alta explica revolta popular

O aumento da renda da população, aliado à ineficiência do setor público, é um dos fatores que ajudam a explicar as manifestações que varreram o Brasil em junho, mas não a única explicação. "O cenário anteriormente era de desesperança total. Mas a renda melhorou, assim como a autoestima da população. Com mais perspectivas, as pessoas cobram melhorias, e isso é positivo", avalia a cientista política Cenele Tonella.

O economista Demian Castro ressalta que esse comportamento faz parte de uma construção histórica, mas que a conjuntura favoreceu a revolta popular. "Se os políticos nos enganam a cada dois anos, é natural que a população, no limite da paciência, vá lavar a rua exatamente quando dói mais, no meio de um evento da Fifa, no qual se gastam milhões com estádios, em vez de usar para a saúde pública."

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