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Exigência de passaporte da vacina obriga trabalhadores a optar entre não se vacinar ou permanecer no emprego.
Exigência de passaporte da vacina obriga trabalhadores a optar entre não se vacinar ou permanecer no emprego.| Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Em todo país, o passaporte da vacina, embora não seja uma diretriz nacional, é exigido por muitos órgãos e administrações públicas, além de empresas privadas, como um pressuposto para o trabalho presencial. Quem se nega a receber a dose acaba penalizado, tem registro de falta no trabalho, perde salário ou pode até ser demitido. Para eles, a única saída é submeter-se a uma vacina com a qual não concordam ou temem os efeitos colaterais, ou tentar na Justiça obter uma decisão favorável. E para esses últimos, os prognósticos não têm sido positivos. Decisões de instâncias superiores, como o Supremo Tribunal Federal (STF) – que acabam orientando as decisões do sistema judicial como um todo – têm se posicionado a favor da exigência.

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Mesmo que possam caracterizar um atentado a direitos fundamentais, as limitações impostas a não vacinados estão avançando. Como já mostrou a Gazeta do Povo, as restrições abusivas a quem não apresenta comprovante de vacina estão presentes em diversas áreas. Em alguns municípios, quem não é vacinado não pode entrar em prédios públicos, andar de ônibus ou ir a um restaurante. Há também universidades que estão impedindo matrículas de alunos que não apresentarem esquema vacinal completo. Mas a restrição ao trabalho é uma das que atinge mais cruelmente quem precisa garantir o próprio sustento.

Esse é o caso da funcionária pública Jaqueline*. Ela é agente de organização escolar, em um colégio estadual de São José dos Campos, interior de São Paulo. A servidora tomou a primeira dose da vacina contra Covid-19, mas teve reações graves, que a fizeram ficar com medo de tomar a segunda dose. Conforme ela relatou à reportagem, foi seu médico que não recomendou que ela recebesse a segunda dose. Ainda assim, a direção da escola foi categórica ao dizer que Jaqueline não poderia entrar mais no colégio sem antes completar o esquema vacinal.

“Não sou uma criminosa, não cometi nenhuma infração dentro da escola. Me sinto desrespeitada. Como se fosse a coisa mais errada do mundo querer trabalhar e querer ter domínio sobre meu corpo”, desabafa Jaqueline, que depende do salário que ganha para se sustentar. Ela mora de aluguel e, além das despesas pessoais, ainda ajuda a manter os pais idosos, já aposentados. “Tomar a vacina agora, no estado atual de saúde em que estou, seria como um estupro, como se alguém violasse meu corpo e eu tivesse de ficar quieta”, ressalta.

Em São Paulo, todas as escolas estaduais exigem a vacinação completa dos funcionários com base em uma resolução da Secretaria de Estado da Educação. Conforme o documento, quem não apresentar o comprovante, não pode entrar na escola em que trabalha, tem registro de falta injustificada, o que pode levar a desconto no salário e ainda procedimento administrativo disciplinar. Jaqueline confirma: “Falaram que eu ia perder meu salário, que iam descontar as faltas, e que era melhor eu tomar a vacina para acabar com o problema. Mas cada um conhece os limites do seu corpo, cada um é dono de seu corpo”, explica. Para ela, os diretores das escolas têm sido pressionados a aplicar com rigor a resolução, o que tem gerado injustiças. "Não é uma questão de saúde, é de política", diz.

O governo federal tentou proibir a demissão por justa causa de funcionários que não apresentarem o comprovante de vacinação contra a Covid-19, por meio de portaria, mas o documento foi suspenso de forma liminar pelo STF, em ação ainda não julgada pelo plenário da Corte.

Atestado médico inválido

Após apresentar um laudo médico comprovando as condições de sua saúde e não recomendando a vacinação, Jaqueline foi autorizada a retornar à escola. Mas apenas provisoriamente. Ela vai ter de se submeter a novos exames para comprovar que não pode realmente receber a vacina.

Outra trabalhadora em situação semelhante é Sônia*, que teve Covid-19 em março de 2021. Ela relata que após a doença, começou a sentir um desconforto abdominal e exames mostraram alterações no fígado e vesícula. Diante disso, o médico recomendou que ela não se vacinasse no momento e fizesse mais exames. Comunicada de que teria de se vacinar para retornar ao trabalho, em uma escola estadual de Cotia, também no interior de São Paulo, ela procurou novamente o médico que emitiu um atestado. Segundo cópia do documento encaminhado por Sônia à reportagem, a vacinação no caso dela não era recomendada devido a problemas relacionados à síndrome pós-viral e ainda possibilidade de alergia aos componentes do imunizante.

Conforme a resolução da Secretaria de Educação paulista, os funcionários não vacinados podem apresentar um “atestado médico que evidencie contraindicação para a vacinação contra a Covid-19”. Mas, no caso de Sônia, o documento, acompanhado de outros exames laboratoriais, não foi aceito. A justificativa foi a de que no atestado médico não constava “CID [doença constante da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde] referente a qualquer comorbidade da qual ela seja portadora ou alguma afecção pela qual esteja passando que a impeça de receber o imunizante”.

“Estou passando por constrangimentos, abuso de autoridade, ameaças, perseguição. Não posso entrar na escola e estou tendo faltas apontadas como injustificadas”, desabafa. Sônia depende da remuneração de menos de três salários mínimos para garantir o sustento dela e da filha, que tem deficiência intelectual. “Eu até perguntei para meu supervisor quais as garantias que eu tenho do governo. O que vai acontecer caso eu seja vacinada e tenha um efeito colateral grave ou mesmo venha a morrer? Quem é que vai cuidar da minha filha?”, questiona.

Sem previsão legal para o passaporte da vacina

De acordo com a deputada estadual Janaína Paschoal, que apresentou diversos projetos e requerimentos em relação à exigência do passaporte da vacina de servidores no estado de São Paulo, a situação é grave. Ela conta que tem recebido centenas de mensagens de trabalhadores, servidores públicos e também da iniciativa privada, que relatam sanções por não se vacinarem. A maioria opta pelo anonimato com medo de sofrer ainda mais represálias. Durante participação em audiência pública no Senado sobre o passaporte sanitário, a deputada recordou que todas as restrições feitas a trabalhadores são baseadas em decretos ou entendimentos bastante restritos.

No caso do estado de São Paulo, a exigência de vacina e sanções a servidores foi estabelecida por meio de um decreto, assinado pelo governador João Doria (PSDB), em janeiro deste ano. O decreto estabeleceu um prazo para que todos os servidores públicos comprovassem a vacinação completa, e também serviu de base para outros documentos, como a resolução da Secretaria de Educação que atingiu Jaqueline e Sônia.

Na avaliação da parlamentar, esses decretos e resoluções são falhos e não podem ser maiores do que as leis já vigentes. “Não existe em nenhuma lei a previsão de que um funcionário público pode ser obstado de ingressar no seu ambiente de trabalho. Estamos tendo processo e pena sem lei anterior que permita o que está acontecendo. É uma afronta flagrante à Constituição Federal”, defende a deputada.

Para tentar frear possíveis abusos, Janaína Paschoal apresentou à Assembleia de São Paulo um projeto de decreto legislativo para suspender a resolução que dispõe sobre a comprovação de vacinação contra a Covid-19 por parte dos agentes públicos em exercício no âmbito da Secretaria da Educação. O projeto atualmente está em análise na Comissão de Constituição, Justiça e Redação da Assembleia. “Profissionais que nunca faltaram com suas obrigações, que jamais responderam a uma sindicância, ou processo administrativo, estão sendo tratados como infratores, quase como criminosos, sem nenhuma lei a respaldar tal proceder”, ressalta a parlamentar no texto.

Justa causa nas empresas privadas

Conforme a deputada, as restrições aplicadas a trabalhadores do setor privado também não teriam respaldo jurídico. No entender dela, embora a legislação trabalhista permita que um empregado seja demitido, há regras claras quanto a isso, especialmente quando se trata de demissão por justa causa.

Ao ser demitido por justa causa, um trabalhador deixa de receber benefícios, como o seguro-desemprego e o FGTS. “Qualquer iniciante no estudo do direito trabalhista sabe que as situações que permitem a demissão por justa causa são taxativas. Elas têm de estar previstas de maneira clara e objetiva”, argumenta a parlamentar.

Mesmo nos casos em que trabalhadores recorrem à Justiça para tentar reverter casos de demissão por justa causa motivados pela não vacinação, o entendimento tem sido o de que as empresas podem usar esse argumento. Uma sentença recente, proferida pelo Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (TRT-2) em 9 de fevereiro deste ano, ilustra bem essa situação.

Em outro caso, uma mulher, que trabalhava fazendo a limpeza em uma garagem de ônibus em São Paulo, foi avisada em julho do ano passado de que teria de se vacinar para se manter no emprego. Nos meses seguintes, ela foi advertida novamente sobre a vacina. Mas ela, que tinha "medo de morrer" caso tomasse a vacina, conforme relatou à Justiça, não se vacinou e acabou demitida em setembro, depois de quase 10 anos trabalhando na mesma empresa. Ela então entrou com uma ação na 30ª Vara do Trabalho de São Paulo, mas teve o pedido de reversão da justa causa negado.

Para a juíza Maria Fernanda Zipinotti Duarte, responsável pela sentença, o empregador agiu dentro da lei. Na decisão, a magistrada citou a Consolidação da Leis Trabalhistas (CLT), que determina ser responsabilidade da empresa a “adoção e uso de medidas coletivas e individuais de proteção e segurança da saúde do trabalhador”. Ela equiparou a vacina ao uso de equipamentos de proteção individual (EPI), que é de uso obrigatório e pode levar à demissão do trabalhador que se recusa a utilizá-lo.  Segundo a juíza, trabalhadora a não se vacinou “simplesmente porque não quis, preferindo arcar com as consequências da dispensa motivada, da qual já estava ciente de antemão”.

STF a favor do passaporte da vacina; Nunes Marques diz que entendimento tem de evoluir com a ciência

A última instância da Justiça brasileira, o STF, já proferiu várias decisões favoráveis à adoção do passaporte da vacina e aplicação de sanção a não vacinados, muitas delas questionadas por juristas. No dia 18 de fevereiro, por exemplo, a Corte formou maioria para permitir que as universidades cobrem o passaporte da vacina de servidores e alunos. No ano passado, o STF já havia suspendido em caráter liminar a portaria do Ministério da Educação (MEC) que proibia as instituições federais de ensino de condicionar a volta das aulas presenciais à apresentação do comprovante de vacina. Agora, com a decisão definitiva, as universidades vão poder cobrar e determinar sanções a quem não se vacinar.

Ainda assim, em seu voto, sobre o tema, o ministro Kassio Nunes Marques, apesar de ser a favor da exigência, fez uma ressalva importante. Ele lembrou que mesmo pessoas com o ciclo completo de vacinação têm se contaminado, o que coloca em xeque a ideia de que o passaporte da vacina é uma medida realmente eficaz. Para Nunes Marques, o STF não pode simplesmente fechar os olhos a essa evidência, que se tem se mostrado cada vez mais forte e que a jurisprudência tem de evoluir de acordo com a ciência. “Na medida em que os entendimentos científicos sobre o tema têm se modificado em pouquíssimo tempo, em um cenário de alta volatilidade e mutabilidade, é imperioso que esta Corte também mantenha constante atenção a tais evoluções, evitando-se que a jurisprudência firmada se mantenha imune a tais pontos”, afirmou o ministro do Supremo.

O STF também tem se colocado a favor da vacinação obrigatória de crianças, o que tem deixado pais apreensivos diante da possibilidade de serem alvo de ações do Conselho Tutelar e Ministérios Públicos por não vacinarem seus filhos contra a Covid-19. Já no âmbito trabalhista, uma das decisões mais recentes foi a da ministra Rosa Weber, que, em 14 de fevereiro, suspendeu em caráter liminar uma decisão do Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA) que garantia o direito de um policial militar continuar a trabalhar e receber salário sem se vacinar contra Covid-19. A ministra justificou a decisão dizendo que “restrições a direitos fundamentais inadmissíveis em períodos de normalidade podem vir a ser admitidas, notadamente quando a limitação da liberdade implicar substancial ganho em segurança”.

Sem saber a quem recorrer, Jaqueline espera que, ao menos, não surjam novos decretos estabelecendo ainda mais exigências ou mesmo retirando a possibilidade de apresentação de recomendação médica contra a vacina. “Eu só quero ser respeitada, coisa que eu não sinto que estou sendo. Só quero poder trabalhar, exercer minha profissão de funcionária pública. E não ser perseguida”, ressalta Jaqueline.

A reportagem procurou a assessoria de comunicação do Estado de São Paulo e questionou os critérios para a avaliação de atestados médicos que não recomendam a vacinação contra a Covid-19. Mas não houve retorno até a data de publicação.

*Jaqueline e Sônia são nomes fictícios adotados pela reportagem para evitar eventuais represálias às entrevistadas.

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