Mesmo diante de evidências de que, apesar de reduzir internações e óbitos, a vacinação contra a Covid-19 não impede a infecção pela variante Ômicron, a chegada da nova cepa motivou uma série de decisões questionáveis – e, em alguns casos, abusivas – por parte de órgãos do poder público. A maioria delas está relacionada à exigência do comprovante vacinal para acesso a serviços públicos e até locais considerados essenciais, que nem nos períodos de lockdown foram fechados.
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A reportagem apurou casos que vão desde a proibição ao acesso a estabelecimentos que comercializam produtos básicos e de higiene, como supermercados e farmácias, até trancamento de matrículas de estudantes de escolas, universidades públicas e perda de cargo de servidores que não apresentarem o passaporte vacinal.
Em alguns casos, após críticas e ameaças de judicialização – como no episódio registrado em Lauro de Freitas (BA), onde a prefeita Moema Gramacho (PT) desistiu de proibir o acesso de não vacinados em supermercados – gestores têm voltado atrás e anulado atos administrativos abusivos. Porém, em vários outros, medidas arbitrárias e apontadas como ilegais se mantêm em pleno funcionamento.
Restrições a itens de alimentação e saúde para não vacinados contra a Covid
Apesar de supermercados e demais estabelecimentos comerciais que fornecem itens de alimentação terem permanecido abertos até mesmo durante decretos austeros de lockdown em 2020 e 2021, em 3 de fevereiro, a prefeitura de Diadema, em São Paulo, publicou um decreto que proíbe não vacinados de entrarem em supermercados, padarias e demais estabelecimentos de alimentação. O acesso a lanchonetes, restaurantes, refeitórios também é vedado, assim como a prédios públicos.
O decreto, assinado pelo prefeito Filippi Júnior, também do Partido dos Trabalhadores (PT), foi publicado num momento em que há altos índices de vacinação contra a Covid-19 no município – 99% da população adulta já recebeu a primeira dose do imunizante, e 93% contam com duas doses de acordo com dados da prefeitura.
“Fui barrado por seguranças no supermercado e na farmácia. No shopping nem tentei entrar, mas vi que estavam pedindo o comprovante vacinal para entrar lá também. Como assim não posso comprar comida ou remédio? Que tipo de ‘incentivo’ é esse?”, diz um morador de Diadema que contatou a reportagem e falou sob anonimato. Ele afirma que precisou se deslocar até uma cidade vizinha para comprar remédios e itens de alimentação.
A prefeitura de Lauro de Freitas, na Bahia, também tentou emplacar um decreto que exigia o passaporte da vacina para acesso a mercados. No mesmo decreto, publicado em 26 de janeiro, a prefeita Moema Gramacho (PT) também condicionou o acesso de todos os alunos das redes pública e privada de ensino, independente da idade, à apresentação do comprovante vacinal.
A medida foi alvo de críticas e, inclusive, tornou-se objeto de um habeas corpus coletivo e uma ação popular. Diante da repercussão negativa, a gestora publicou um novo decreto. Supermercados e outros estabelecimentos comerciais foram retirados do decreto e também foi anulada a exigência do passaporte da vacina para estudantes menores de 18 anos.
Ainda no estado da Bahia, o governador Rui Costa (PT) criou diversas restrições a não vacinados contra a Covid-19, incluindo o impedimento de acesso a todos os prédios públicos e a escolas da rede estadual de ensino. As determinações estão vigentes num momento em que quase 90% da população acima de 12 anos já foi vacinada contra a Covid-19. Como reflexo do decreto estadual, a Polícia Civil da Bahia passou a exigir, desde 21 de janeiro, comprovante de vacinação contra Covid-19 para acesso e atendimentos nas delegacias.
Em Natal, no Rio Grande do Norte, um casal com seu filho, um adolescente de 13 anos com cálculo renal, foi impedido de ser atendido no Hospital Maria Alice Fernandes no fim de janeiro. Funcionários do hospital negaram a entrada da família, uma vez que os três não haviam sido vacinados contra a Covid-19. A Polícia Militar e a Polícia Civil foram acionadas, e o adolescente foi atendido porque o delegado se prontificou a entrar como acompanhante do adolescente.
Medidas relacionadas a não vacinação de crianças contra a Covid-19
Apesar de a vacina contra a Covid-19 não estar prevista no Programa Nacional de Imunizações (PNI), que prevê as imunizações obrigatórias a todos os brasileiros, e não haver consenso sobre a obrigatoriedade ou não de pais e responsáveis levarem crianças entre 5 e 11 anos sob sua tutela para serem vacinados, órgãos do poder público têm lançado mão de recursos para obrigar os pais a vacinar crianças.
No fim de janeiro, o prefeito de São Bernardo do Campo (SP), Orlando Morando (PSDB), afirmou que estuda a possibilidade de criar salas de aula específicas para crianças que não forem vacinadas contra a Covid-19 por decisão de seus pais ou responsáveis. Caso aplicada, a medida se traduziria em um ato segregacionista das crianças que frequentam escolas municipais da cidade no ABC paulista. A fala se deu durante uma live na qual o prefeito reconheceu que a vacina pediátrica contra a Covid-19 não é obrigatória.
Também em janeiro, um juiz da Vara da Infância e Juventude de Guarulhos (SP) deu uma entrevista a um jornal da TV Cultura e fez declarações sobre a obrigatoriedade da vacinação de crianças. Ele afirmou que pais que não vacinarem seus filhos contra a Covid-19 poderão ser multados em até 20 salários mínimos e perder a guarda dos filhos. Em sua argumentação, o juiz também estimulou pessoas que tivessem conhecimento de crianças não vacinadas por deliberação dos pais a denunciar os casos ao Conselho Tutelar ou ao Ministério Público. A medida foi alvo de variadas críticas e o magistrado acabou sendo alvo de uma representação no Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Mais recentemente, órgãos do Ministério Público de diferentes estados criaram normativas afirmando a obrigatoriedade da vacinação pediátrica contra a Covid-19 e apresentando orientações aos promotores e membros do Conselho Tutelar para proceder nos casos de pais que se recusarem a vacinar seus filhos.
Em nota técnica, o Conselho Nacional de Procuradores-Gerais do Ministério Público dos Estados e da União (CNPG), que é uma associação civil e não um órgão público, manifestou-se pela obrigatoriedade da medida. Segundo os termos das entidades, a denúncia de pais e responsáveis contrários à vacinação partiria majoritariamente das escolas, que estariam obrigadas a reportar os casos a órgãos como o MP e os conselhos tutelares.
A defesa da obrigatoriedade da vacinação infantil contra a Covid-19 ocorre num momento em que países como Suécia, Noruega e México, apesar de terem aprovado os imunizantes, não os recomendam para crianças de 5 a 11 anos. O entendimento agência de saúde da Suécia é de que os benefícios com uma eventual vacinação não superariam os riscos.
Além desses casos, a Justiça Federal no Rio de Janeiro rejeitou o pedido de uma mãe para que a filha pudesse frequentar as aulas na unidade Realengo do Colégio Pedro II sem estar vacinada contra a Covid-19, como obriga a instituição. Além de extinguir a ação, a juíza Mariana Preturlan, da 26ª Vara Federal do Rio de Janeiro, enviou o caso para o Ministério Público do Rio de Janeiro e ao Conselho Tutelar.
Restrições a estudantes em universidades públicas
No ensino superior público, grande parte das instituições tem determinado a obrigatoriedade do comprovante vacinal para acesso a suas dependências físicas. Em geral, entretanto, não há definições claras para estudantes não vacinados. Na prática, como a partir da volta presencial grande parte das universidades não manterá a oferta a distância do currículo normal dos cursos, os estudantes ficarão impedidos de frequentarem as atividades e acabarão sendo reprovados por acúmulo de faltas.
Em alguns casos, como na Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), já há determinações expressas para que estudantes que não apresentarem comprovante vacinal ou justificativa de impossibilidade médica para receber o imunizante tenham seus cursos trancados. Já na Universidade Federal de Sergipe (UFS), professores, servidores e estudantes que entrarem nos prédios da universidade sem terem concluído o esquema vacinal terão seus nomes denunciados à Polícia Federal e ao Ministério Público Federal (MPF).
Diante das penalidades previstas aos alunos que optarem por não se vacinar na Universidade Estadual de Maringá (UEM), uma estudante que atualmente cursa o 3º ano de História na instituição - e que falou à Gazeta do Povo sob sigilo - pode ter de deixar de estudar na UEM. Ela salienta que considera abusivo o impedimento do acesso de não vacinados. A universitária possui uma doença ocular rara, hereditária e degenerativa que causa deficiência visual grave. A doença não é impeditiva para a imunização contra a Covid, mas a estudante, que tem perdido a visão aos poucos, tem receio de eventuais efeitos colaterais que possam piorar seu caso.
“Estou no terceiro ano, frequento a universidade, não tenho faltas, tenho boas notas. E de repente minha vaga, que foi conquistada, simplesmente está sendo retirada. Ou eu paro a faculdade ou eu tranco a matrícula. Se eu trancar, depois para voltar é complicado. É uma situação bem delicada”, diz a estudante, que passou em segundo lugar em seu curso.
“Hoje o fato de você falar que não tomou a vacina parece que você se torna um leproso no meio da sociedade. É desconcertante, desconfortável. O discurso é que os não vacinados são os responsáveis pelas novas variantes”, prossegue.
Após a entrada em vigor do passaporte vacinal para acessar as dependências físicas da Universidade de Brasília (Unb), no dia 27 de janeiro, a coordenadora do curso de Medicina da instituição pediu desligamento do cargo. Sobre o ocorrido, a docente disse que a imposição do passaporte sanitário é uma incongruência, “desconsiderando os indivíduos que se recuperaram da infecção pela Covid-19 e que possuem imunidade natural, bem como aqueles que não sentem segurança nas vacinas disponíveis e julgam que o risco supera o benefício”.
Penalizações no serviço público por falta de comprovante vacinal
Episódios de restrições a servidores públicos não vacinados contra a Covid-19 também têm sido frequentes. No dia 2 de fevereiro, o presidente da Câmara Municipal de São Paulo, Milton Leite (DEM) anunciou que cortará o ponto dos servidores que não apresentarem comprovante de vacinação contra a Covid-19. Segundo ele, cerca de 50 funcionários não apresentaram o passaporte da vacina e poderão ser demitidos.
No dia seguinte, a prefeitura de Campo Mourão, no Paraná, anunciou que vai exigir vacinação contra Covid-19 de todo o funcionalismo público. Além dos servidores já contratados, aqueles que recentemente foram aprovados em concurso público não serão nomeados caso não apresentem o comprovante vacinal.
Há ainda outras determinações relacionadas a concursos públicos. Em 1º de fevereiro, foi publicado em Diário Oficial que candidatos ao concurso para o cargo de promotor do Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP), um dos concursos do MP mais disputados do país, não poderão fazer a prova caso não apresentem comprovante de imunização. Da mesma forma, candidatos ao concurso do Ministério Público do Estado do Tocantins (MPE-TO) não vacinados foram impedidos de acessar os locais das provas, que foram realizadas nos dias 29 e 30 de janeiro.
Para procurador federal, políticas de estímulo à vacinação não podem afetar o acesso a serviços básicos
Na avaliação de André Borges Uliano, procurador do Ministério Público Federal (MPF) e professor de Direito Constitucional, ainda que haja políticas de estímulo à vacinação, diante das circunstâncias da vacina contra a Covid-19 – em que os fabricantes alegam não dispor de todos os dados e em que há reações adversas graves comprovadas – elas não podem atingir o núcleo essencial de outros direitos, tampouco afetar o acesso a serviços básicos.
“Os riscos da Covid são superiores aos da vacinação, segundo os dados. Mesmo assim, havendo reações graves, inclusive óbitos, comprovadas e havendo reconhecimento do fabricante de que não conhece ainda todos os dados, juridicamente esse tipo de vacinação não pode ser imposto por tais mecanismos”, diz o jurista.
Quanto a políticas mais agressivas de estímulo à vacinação de crianças contra a Covid-19, Uliano explica que não há obrigatoriedade para a inoculação pediátrica, uma vez que não houve a inclusão desta vacina no PNI. “E isso faz sentido ante o risco menor para crianças, ainda que real e considerável, e porque os dados são mais reduzidos. Tanto assim que nações relevantes, como Noruega, Suécia e México optaram por não recomendar a aplicação geral em crianças”, ressalta o procurador federal.
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