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Ideologia de gênero: entenda a discussão sobre o termo
Ideologia de gênero: entenda a discussão sobre o termo| Foto: Bigstock

Um dos sentidos atribuídos pelo dicionário Michaelis ao vocábulo “ideologia” é este: “Maneira de pensar que caracteriza um indivíduo ou um grupo de pessoas, um governo, um partido etc”. Não necessariamente, portanto, a palavra tem conotação pejorativa. Mas, nos círculos de "progressistas" (permissivos nos costumes), o termo ideologia de gênero – usado para se referir às teorias que envolvem a chamada “identidade de gênero” – é recebido como um ataque. A expressão não deve ser usada, eles dizem, porque é “não-científica” e preconceituosa.

Um exemplo de muitos: Rogério Diniz Junqueira, doutor em Sociologia e pesquisador do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), diz que a expressão “ideologia de gênero” é “uma invenção vaticana, urdida para acender uma controvérsia antifeminista e, assim, animar e orientar em termos discursivos e político-ideológicos uma reação ultraconservadora e antidemocrática, antagônica aos direitos humanos e, sobretudo, adversa aos direitos sexuais.”

Junqueira não está sozinho. Muitos militantes atribuem ao Vaticano, mais especificamente ao então bispo Joseph Ratzinger (depois papa Bento XVI e atualmente papa emérito), a popularização do termo. De fato, Ratzinger parece ter exercido um papel importante na difusão dessa expressão. Mas, antes mesmo do termo ter sido cunhado, ainda nos anos 1980, ele já alertava para os riscos da separação entre sexo e gênero como dois entes independentes um do outro.

Para Lucetta Scaraffia, pesquisadora italiana que defende o uso do termo, “a teoria de gênero é a ideologia utópica baseada na ideia, própria das ideologias social-comunistas e miseravelmente falida, de que a igualdade constitua a via principal para a realização da felicidade. Negar que a humanidade está dividida entre homens e mulheres parece uma forma de garantir a igualdade mais completa e absoluta - e, portanto, a possibilidade de felicidade - para todos os seres humanos”.

Ratzinger e Lucetta, entretanto, não inventaram as teorias de gênero. As críticas do futuro papa eram uma reação a ideias engendradas décadas antes pela francesa Simone de Beauvoir, que publicou em 1949 o livro “O Segundo Sexo”. Na obra, ela traça uma distinção entre “fêmea” e “mulher”. Fêmea é o sexo; mulher, o gênero. A ideia mais famosa de Simone é a de que “Ninguém nasce mulher; torna-se mulher”.

Judith Butler, outra figura de grande influência entre os defensores das teorias de gênero, deixou essa distinção mais clara ao analisar as palavras da escritora francesa: “O sexo é compreendido como os aspectos invariáveis, anatomicamente distintos e fáticos do corpo feminino, enquanto o gênero é o significado e forma cultural que o corpo adquire, os modos variáveis da aculturação daquele corpo.” Daí ela conclui: “Todo gênero é, por definição, não-natural. Além disso, se a distinção é aplicada consistente, deixa de ser claro se pertencer a um sexo específico tem qualquer consequência necessária sobre pertencer a um gênero específico”. Nessa concepção, portanto, é uma construção social com pouca ou nenhuma relação com o sexo biológico.

Mas “O Segundo Sexo” está longe de ser um tratado científico: é um conjunto de reflexões de natureza antropológica e sociológica. Simone cita aspectos biológicos apenas para descartá-los logo adiante. Ela afirma, por exemplo, que não se pode depreender diferenças essenciais entre homens e mulheres a partir da biologia. “É muito difícil dar uma descrição geralmente válida da noção de fêmea; defini-la como condutora de óvulos e o macho como condutor de espermatozoides é muito insuficiente, porquanto a relação do organismo com as gônadas é extremamente variável”, escreveu a autora, ignorando outros tipos de diferenças biológicas essenciais entre homens e mulheres.

Para Simone, a biologia não tem muito a ensinar. “Quando aceitamos uma perspectiva humana, definindo o corpo a partir da existência, a biologia torna-se uma ciência abstrata", escreveu ela. Dificilmente essa abordagem pode ser chamada de científica. A gênese das teorias de gênero é a própria negação das ciências naturais, ou pelo menos a subordinação delas às ciências humanas - como a sociologia.

Para eliminar qualquer dúvida, Simone ainda escreve que o torna alguém mulher não é a natureza (ou seja: o que ela é biologicamente), mas os sentimentos. “A mulher é uma fêmea na medida em que ela se sente como tal. Não é a natureza que define a mulher; é ela que define a si mesma ao lidar com a natureza nos seus próprios termos, em sua vida emocional”. É precisamente desse princípio que as teorias de gênero (como a de que pessoas podem passar por uma transição do gênero masculino para o feminino) seria construída.

Simone de Beauvoir publicou seu livro mais famoso há 81 anos, antes de tantas descobertas científicas a respeito dos sexos. A principal delas talvez tenha sido o mapeamento do DNA humano, que revelou diferenças significativas entre os dois sexos. Um estudo publicado em 2017 por pesquisadores israelenses identificou 6.500 pontos de divergência. As tecnologias de mapeamento da atividade cerebral também tiveram um papel importante, ao mostrar que o cérebro masculino funciona de forma diferente do feminino. Os defensores atuais das teorias de gênero têm, entretanto, menos justificativas para continuar defendendo a existência de um “gênero” totalmente independente do sexo.

Hoje, é possível dizer que grande parte das diferenças intelectuais, emocionais e de desenvolvimento são inatas, e não apenas fruto de condicionamento social. Qualquer estudo psicológico sério, por exemplo, distingue os participantes por sexo, porque reconhece diferenças fundamentais entre eles. “Tirando a hipótese de uma das raras desordens de desenvolvimento sexual (DDSs), os meninos não nascem com cérebro feminizado e as meninas não nascem com cérebro masculinizado”, escreve a professora de Medicina Michelle Cretella, do American College of Pediatricians, em um dos principais estudos a respeito do tema.

Atualmente, mesmo feministas radicais criticam a teoria de gênero, já que a consequência prática dessa corrente de pensamento é o surgimento de homens tomando o espaço das mulheres nos esportes e na música - e até nos concursos de beleza. Uma dessas feministas é a escritora J.K. Rowling, autora da série Harry Potter, que fez críticas públicas aos militantes da “causa transgênero” por colocar em risco a segurança das mulheres. “Quando você abre a porta dos banheiros e vestiários para qualquer homem que acredita ou sente ser uma mulher (…), então você abre a porta para qualquer homem que quiser entrar. Esta é a simples verdade”, ela afirmou.

Uma mulher não se torna mulher; ela nasce mulher. Um transexual que resolve alterar seu corpo por meio de cirurgias continua com a genética masculina e produzindo hormônios masculinos - justamente por isso é que a chamada transição de gênero envolve tratamentos hormonais pesados. “O gênero não é e nunca foi uma realidade biológica ou científica. Em vez disso, o gênero é um conceito social e politicamente construído”, escreve Michelle Cretella.

Portanto, a reação intensa ao uso do termo “ideologia de gênero” acaba por revelar, ironicamente, uma motivação ideológica.

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