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Um estupro a cada 11 minutos acontece no país. | Jonathan Campos/Gazeta do Povo
Um estupro a cada 11 minutos acontece no país.| Foto: Jonathan Campos/Gazeta do Povo

Um estupro a cada 11 minutos. Segundo o 9º Anuário Brasileiro de Segurança, essa é a frequência com que esse tipo de crime acontece no Brasil. A estimativa é baseada nos mais de 47 mil casos denunciados por ano à polícia. No entanto, dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) apontam que esse número corresponde a apenas 10% do total de casos – contabilizados a partir da base de dados do Ministério da Saúde.

Sobrecarga de ações desafia vítimas e agentes públicos

Especialistas consultados pela reportagem apontam uma conjugação de fatores que leva mulheres a silenciarem a violência que sofrem: seja porque elas não reconhecem certas atitudes como violadoras; porque têm medo de serem culpabilizadas ou porque a estrutura das delegacias é burocrática e sobrecarregada e, às vezes, o resultado prático da denúncia demora a aparecer – isso quando o registro de Boletim de Ocorrência não é rejeitado.

“Há uma naturalização dos atos de violência contra a mulher. É cultural e não se transforma um comportamento pela simples criação de uma lei. Embora haja um esforço para que o atendimento seja humanizado, nem sempre isso ocorre”, observa a defensora pública Camille da Costa. Ela avalia que a presença predominante de homens nesses ambientes também pode ser intimidadora.

Capacitação vai além de conhecer a lei

“Tive que contar a mesma história repetidamente para agentes homens. Perguntavam se não era calúnia, se meu agressor tinha mesmo invadido minha casa, se eu tinha provas. A mulher que denuncia também sofre violência institucional. Se ela não conhece a lei, se não conhece as palavras certas, não consegue abrir um BO. E sem um BO ela não tem ajuda do Estado”, diz Lívia, que tem sete medidas protetivas contra um ex-namorado após ser ameaçada de morte.

A falta de sensibilização por parte de policiais e peritos durante o depoimento é mencionada na maioria dos relatos compartilhados com a reportagem. Mas o que seria uma capacitação adequada para quem atende mulheres em situação de violência?

A delegada Sâmia Coser, titular da Delegacia da Mulher de Curitiba, explica que a capacitação dos policiais consiste em uma disciplina sobre violência doméstica e familiar durante a formação na Escola de Polícia, na qual são ensinados os procedimentos da Lei Maria da Penha e da delegacia especializada.

“Mas não existe uma capacitação para atendimento de um determinado setor. Trabalhamos com os funcionários da delegacia: por exemplo, observamos se um investigador registra um número muito menor de Boletins de Ocorrência do que outro, aí queremos entender qual é a dificuldade em relação ao atendimento.”

Para a assistente social Janaine dos Santos, que atua diretamente com mulheres vítimas de violência na Defensoria Pública do Paraná, é necessário preparo para compreender o contexto no qual a vítima está inserida e para não a responsabilizar pela situação em que se encontra. “É trata-la como cidadã de direitos. Vítimas de outros crimes não são questionadas sobre o que fizeram para que aquilo acontecesse com elas, mas a mulher é questionada”, explica Janaine, que recentemente participou de capacitação para atuar na Casa da Mulher Brasileira.

Perguntas invasivas afastam vítimas

São comuns também os relatos de mulheres que se sentiram desrespeitadas e julgadas por conta de perguntas feitas pelos investigadores. “Senti que tinha de provar que era vítima. Na delegacia havia um cartaz alertando que falso testemunho era crime, mas não havia um único banner esclarecendo quais são os direitos das mulheres”, conta Silvana, que conseguiu levar a denúncia contra o ex-companheiro adiante após uma tentativa de estupro.

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De acordo com a delegada Sâmia Coser, titular da Delegacia da Mulher de Curitiba, há uma razão para que certas perguntas sejam feitas, principalmente em casos de crimes sexuais: a coleta de provas.

“Quando perguntamos quando a vítima teve a última relação sexual consentida é porque o exame vai buscar por sêmen e esse material genético pode ser do companheiro dela, e não do agressor. Pode aparecer sêmen de dois homens. Se eu não sei que ela teve uma relação consensual, a investigação pode seguir por um rumo incorreto”, diz.

A mesma lógica, segundo a delegada, explica perguntas sobre as roupas que a vítima usava no momento da agressão. “A roupa pode ser importante para entender como o fato se deu. Pode haver vestígios do agressor no tecido, como cabelos, barba, sangue ou sêmen.”

O desafio parece ser chegar a um equilíbrio entre método e tom – se perguntar é necessário, emitir juízos de valor, não. “É um desestímulo à denúncia porque a mulher se vê mais uma vez sendo violada: ela já foi vítima de uma situação delicada de ser contada; já vai enfrentar estigmas; e ainda tem que contar tudo para um desconhecido que conduz o relato de uma forma não acolhedora”, avalia a defensora pública Camille da Costa.

Ela reforça que as perguntas devem ser voltadas para a figura do agressor, e não da vítima. “Se estamos discutindo práticas de crime e se o comportamento da vítima influencia o do agressor, por que não pergunto isso em outras situações? Quando você é vítima de um roubo, é questionado sobre o que fez ou o que estava vestindo?”

Sobrecarga desafia vítimas e agentes públicos

Para levar uma denúncia adiante, a vítima também é desafiada pela sobrecarga enfrentada por delegacias (especializadas ou não), pela Defensoria Pública e até mesmo pelo Judiciário. “Hoje só tramitam com celeridade os inquéritos com réu preso. A maioria dos inquéritos caduca, porque precisa colher depoimento, chamar testemunhas, fazer perícias e não tem equipe para fazer tudo isso dentro do prazo”, conta a advogada Xênia Melo.

Para se ter uma ideia, só em 2016, a delegacia da mulher de Curitiba abriu mais de 2,3 mil inquéritos; a unidade, que conta com cinco delegados e três investigadores, acumula cerca de 18 mil inquéritos em andamento.

Outro problema grave é a demora até que a notificação da medida protetiva chegue ao agressor – em alguns casos, pode levar meses.

“A vítima pede a medida protetiva, em 48 horas tem ela nas mãos e fica confiante de que conseguiu proteção, mas o agressor ainda nem foi informado. Enquanto o agressor não é notificado, a medida não tem validade. Só que os oficiais de justiça não têm condição de cumprir todos os mandados”, explica a defensora pública Iara Stroppa, do Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher. Hoje, tramitam quase 12 mil processos com medidas protetivas na vara.

Delegada da especializada há seis anos, Sâmia Coser reconhece o volume de trabalho, mas aponta avanços: a implementação de um sistema que provê atendimento integral à mulher, de modo que uma ida à delegacia seja o suficiente para que a vítima saia de lá com BO registrado, representação criminal feita, testemunha indicada e, em alguns casos, com medida protetiva solicitada.

“A espera aumentou porque o número de servidores continua o mesmo, mas pelo menos a vítima ganha o atendimento completo. Percebemos que muitas desistiam do processo porque tinham que fazer o BO, depois voltar para fazer a representação criminal e ainda uma terceira vez para ser ouvida.” O novo sistema de atendimento foi inaugurado em abril, mas, segundo Sâmia, o número de desistências já reduziu.

Solução além da esfera penal

A advogada Xênia Melo, que presta auxílio jurídico para mulheres vítimas de violência, a lógica penal de punição, que trata o agressor como um desconhecido – quando na maior parte dos casos ele é o marido, um familiar ou o pai do filho da vítima –, também desestimula a mulher a buscar ajuda.

“Às vezes, a mulher não quer que o companheiro dela vá preso, ela só quer não ser mais agredida. A reincidência em casos de violência doméstica é grande; mas quando o agressor é acolhido em um processo psicopedagógico, esse índice cai. O ciclo de violência só é quebrado quando o agressor também é reeducado.” Por isso, ela defende a implementação de programas de reeducação para agressores, além de mais investimento na rede de assistência à mulher.

A advogada aponta ainda a necessidade de fortalecer espaços coletivos de discussão sobre violência de gênero e de apoio às vítimas, para que o problema seja enfrentado além da esfera penal. “O Estado é burocrático e sobrecarregado, o problema da violência contra a mulher precisa ser enfrentado para além do que ele é capaz de prover.”

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