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Produtoras rurais criam movimento para corrigir distorções sobre o agronegócio nos materiais didáticos
Representantes da associação “De Olho no Material Escolar” em reunião com a secretária municipal de educação de Sorriso-MT| Foto: André Alexandre/Prefeitura Sorriso-MT

A pandemia trouxe à casa de produtores rurais uma triste realidade: os livros didáticos usados pelos filhos tratam o negócio da família, o agronegócio, de forma distorcida e ideológica. Os materiais trazem não apenas um viés político-ideológico, mas erros crassos sobre o setor, com informações desatualizadas e inverídicas. A constatação levou à criação da associação De Olho no Material Escolar, em junho de 2020, com o objetivo principal de conseguir mudanças nas publicações utilizadas nas escolas públicas e privadas.

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A entidade aponta que, devido às rígidas leis ambientais e trabalhistas, além do constante aprimoramento tecnológico, o setor passou por uma grande transformação nas últimas décadas. No entanto, ainda predomina nos materiais didáticos uma visão negativa do agronegócio, sem mostrar sua importância para a economia e com informações incorretas sobre reforma agrária, trabalho escravo no campo, uso excessivo de agrotóxicos, queimadas, entre outros.

Com associados de 11 estados brasileiros e cerca de três mil apoiadores – dentre professores, diretores de escolas, pesquisadores e cientistas –, o grupo tem feito visitas técnicas a editoras e promovido vivências para professores e alunos em fazendas e empresas do agronegócio. Os produtores também recorreram ao Ministério da Educação (MEC) e esperam que a pasta promova apenas livros didáticos sem visões distorcidas.

O movimento conta com o apoio técnico de entidades como a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa); a Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), que funciona na USP; e a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp).

A Gazeta do Povo conversou com a presidente da associação De Olho no Material Escolar, Leticia Zamperlini Jacintho, que é produtora rural na região de Barretos (SP) e vice-presidente do Núcleo Feminino do Agronegócio (NFA).

Como nasceu esse trabalho de apuração de conteúdos considerados equivocados nos livros didáticos?

Leticia Jacintho: Já tínhamos percebido que, em vários cantos do país, os materiais didáticos estavam muito distantes da realidade do agronegócio e precisavam de uma atualização. O agro está presente no nosso passado e presente, e sabemos que o futuro do Brasil é garantir a segurança alimentar mundial. E, com muito orgulho, fazemos isso muito bem.

Percebendo essa desconexão, começamos a nos juntar. Aqui em Barretos já tínhamos começado um programa desse, de levar estudantes para fazer visitas não só nas fazendas, mas também nas empresas voltadas ao agronegócio da região. E isso foi muito positivo, mas mais do que as crianças, os próprios professores ficavam encantados.

Eles falavam: “Na apostila fala que puxam o burro com arado. Estou vendo que tem tecnologias, tem muito respeito ao ser humano e à parte ambiental, a todas as áreas de preservação”. Disso começou a surgir uma luz na nossa cabeça, e pensamos: “Isso tem que ser replicável para todo o Brasil”.

Passamos a juntar mães de vários estados e começamos a receber praticamente todos os dias imagens e prints de materiais com informações erradas ou muito antigas. A partir daí, começamos a formar um dossiê.

Percebemos que essas informações não estavam baseados em dados científicos. Não vemos citações da Emprapa, do Ibama, ou dos próprios ministérios de governo. Quando se fala que há trabalho escravo, você não vê dados oficiais, do próprio Ministério do Trabalho, por exemplo.

A ideia não é romantizar o setor – o agro tem grandes desafios, sim – nem mudar a história. A história existiu, mas ela tem que ser contextualizada no tempo correto, para que fique claro aos alunos que isso existiu há anos, mas que o setor evoluiu e que há novos desafios para o futuro.

E tudo isso precisa ser mostrado com dados oficiais, dados públicos. Não pode ser replicada qualquer informação sem base científica para atingir 30 milhões de alunos.

  Produtora rural Leticia Jacintho, presidente da associação <em>De Olho no Material Escolar (Divulgação) </em>
Produtora rural Leticia Jacintho, presidente da associação De Olho no Material Escolar (Divulgação)

Como tem sido o retorno dos professores?

Leticia Jacintho: Foi uma boa surpresa. A maioria desses professores trabalha muito, tem jornadas muito longas. Eles têm o material na mão e não têm tanto tempo para pesquisar e contestar um determinado material. Mas é perceptível a vontade legítima de dar uma boa aula, de fazer a diferença.

Na hora em que você mostra uma alternativa e passa a trazer informações (não é o que o De olho no Material Escolar acha, são fatos e dados públicos), a gente ajuda a contrapor. E a gente percebeu muita gente boa nessa caminhada. Temos professores que fazem parte da associação e têm muitos que apoiam esse trabalho.

Existem muitos professores que estão, digamos, catequizados [sobre uma determinada visão relacionada ao agronegócio], mas até esses sabem que é injusto você tirar a oportunidade de os alunos verem algo que aqui no Brasil a gente faz tão bonito e tão bem e que é tão importante para a nossa economia.

Quais são os principais pontos, digamos, “problemáticos”, que acabam sendo repetidos nesses materiais?

Leticia Jacintho: São inúmeros. As queimadas são um deles. Atualmente, há leis que impedem esse tipo de atividade, mas alguns desses materiais sugerem que as queimadas são “obrigatórias”, que o setor faz isso de propósito. É só fazer uma pesquisa sobre essas leis e sobre como o setor evoluiu. Até porque não é interessante para ninguém matar essa matéria orgânica que está lá.

Tem a parte do trabalho escravo também. Segundo o último Censo Agro do IBGE, há 5,1 milhões de propriedades rurais no Brasil. De acordo com a Secretaria de Inspeção do Trabalho, há 79 propriedades em que foi identificado trabalho análogo à escravidão, o que equivale a 0,001% do total. Então falar um pouco sobre esses 99,99% que produzem dentro da lei é muito importante. É preciso falar também que o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) aumentou nas cidades em que o agronegócio cresceu.

Tem também a questão dos defensivos agrícolas, que é muito falada. É preciso entender um pouco sobre como as leis brasileiras sobre isso são rígidas. Fala-se muito que o Brasil é o país que mais usa defensivos agrícolas. Mas trazer essa informação nua e crua é muito frágil. Se a gente fizer esse cálculo por hectare ou por produção, caímos lá para baixo, dada a quantidade que é produzida aqui.

A parte indígena também é muito falada. Tem um cartaz dentro de um livro didático que diz que a soja do Mato Grosso do Sul tem sangue de crianças indígenas. Isso era para crianças de 8 anos de idade. Isso é muito pesado e não sai nunca da criança [elas ficam impressionadas]. E isso não é a verdade.

Muitos desses materiais trazem coisas desatualizadas. Tem coisas que foram realidade 200 anos atrás, outras que foram realidade há 50 anos. Mas os materiais pararam no tempo. Precisamos evoluir para dar oportunidade às crianças de, ao estudar, ter orgulho do que o país produz.

Há disciplinas ou faixas etárias em que esses conteúdos são mais recorrentes?

Leticia Jacintho: Temos muitos casos em apostilas de História, Geografia e Ciências. Mas percebemos também que o assunto é recorrente também na disciplina de Português, como temas de redação, e até mesmo em problemas de Matemática, que ocasionalmente abordam a questão do agro de forma equivocada. Quanto às faixas etárias, [ocorre] em todos os anos da educação básica.

Como tem sido o dia a dia de trabalho da associação para mudar esse cenário?

Leticia Jacintho: Saímos da observação e inquietação dos pais para uma conversa muito produtiva. Primeiro temos um trabalho com as próprias editoras. Estamos indo com o dossiê de uma em uma para conversar e sempre levamos um agrônomo junto para contar essa evolução do agronegócio.

Várias editoras já fizeram parcerias conosco. Algumas pediram indicação de consultores para contribuir nas redações, e uma delas está gravando capítulos de vídeos para mostrar como é, de fato, o agro. Também ajudamos a revisar todo o material de uma delas – paramos uma equipe, olhamos todas as apostilas e apontamos o que de fato estava desatualizado. Então mandamos para o departamento de Agro da Fiesp e eles fizeram as contraposições.

Materiais das editoras privadas que não participam do Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) [programa do Ministério da Educação que avalia, seleciona e distribui livros didáticos para as escolas públicas] são mais fáceis de serem atualizados. Já os outros é mais difícil, é um processo mais lento de renovação dos livros.

Outra coisa que temos feito é o programa “Vivenciando a Prática”, que busca estimular as empresas a abrirem sua portar para visitas. É um programa que leva tanto as crianças quanto os professores e diretores de escolas, além de representantes do poder público, para conhecer mais sobre o setor. Já fizemos em Cuiabá (MT) e em Itaberá (SP). Acredito que no ano que vem essa vivência vai acontecer em muitos lugares, porque já está num formato que dá pra replicar no Brasil inteiro.

Estamos também criando um site para conter essas publicações oficiais por assunto. Então um professor que - ao entender que há informações problemáticas em uma apostila - queira buscar as informações, ele vai achar. Alguns falam que entram no site da Embrapa, por exemplo, e que o material é muito amplo e muito técnico. Então essa biblioteca virtual vem com uma curadoria da Esalq para colocar tudo isso em movimento por temas, para que esse professor possa ter um material mais fidedigno e científico.

E como está sendo a articulação com o MEC para implementar as mudanças nos livros didáticos?

Leticia Jacintho: Desde o ano passamos estamos nos reunindo com o MEC por intermédio da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA). Já tivemos algumas reuniões com o ministro [Milton Ribeiro] e com a equipe. Inicialmente, a ideia era a sensibilização para o assunto. Depois foi um processo de entendimento nosso com relação aos materiais didáticos (como funcionam prazos, avaliações dos livros, lançamento de editais, licitações, etc.). Fomos entender como isso acontece e se os cientistas da Embrapa, por exemplo, ou professores renomados da Esalq poderiam fazer parte do banco de avaliadores.

Fomos recebidos de uma maneira muito positiva. Eu tenho bastante esperança. A ideia é que o próprio MEC consiga usar a estrutura do governo (com o apoio dos ministérios da Agricultura, do Trabalho e do Meio Ambiente) para ajudá-los nessas parcerias.

Vamos criar cursos técnicos? Então vamos criar cursos que também capacitem para o agronegócio, e isso com apoio do Ministério da Agricultura. Ficou muito claro que essa sinergia entre a própria estrutura governamental pode produzir bons materiais, bons cursos e formar bons profissionais. Muitas coisas positivas saíram dessas reuniões, e daqui para frente é o trabalho do dia a dia e o cumprimento dos prazos.

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