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Programa criado pelo STF para “combater desinformação” é visto com preocupação por juristas
Na segunda-feira (30), o ministro Luiz Fux, presidente do STF, assinou resolução que instituiu o Programa de Combate à Desinformação| Foto: Fellipe Sampaio/STF

O anúncio, na segunda-feira (30), da criação de um programa conduzido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) com o objetivo de “combater a desinformação” é visto com receio por juristas consultados pela Gazeta do Povo. O programa, instituído pela Resolução 742/2021, tem como proposta combater conteúdos que, na visão do Tribunal, possam ser enquadrados como "desinformação e narrativas odiosas" direcionados à Corte, aos ministros do STF e ao Poder Judiciário. O artigo 1º da norma cita que o Programa de Combate à Desinformação (PCD) tem como objetivo “manter a proteção da Corte acerca das liberdades de comunicação”.

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Conforme previsto na resolução, o PCD será conduzido por um comitê gestor a ser definido em uma portaria própria. Entre as ações, está previsto:

  • monitoramento para “identificação mais célere de práticas de desinformação e discursos de ódio";
  • publicações com contestação de notícias consideradas falsas pelo comitê gestor em uma página denominada “Verdades do STF”;
  • prática denominada “alfabetização midiática”, na qual servidores e funcionários terceirizados da Corte, além de jornalistas e influenciadores digitais, terão formação sobre a identificação de práticas de desinformação e discursos de ódio e as formas de atuação para combatê-las;  
  • ações de comunicação com o objetivo de fortalecer a imagem da Corte, por meio da disseminação de informações verdadeiras e da produção de conteúdo que gere engajamentos positivos sobre o Tribunal;
  • aproximação do comitê gestor com instituições públicas e privadas que atuam no combate à desinformação, incluindo as agências de checagem;
  • realização de eventos e seminários.

Juristas apontam ressalvas quanto ao Programa de Combate à Desinformação

Para Dário Júnior, doutor em Direito Processual, não há problemas em combater a desinformação e promover mecanismos para coibir manifestações de ódio nacional, racial ou religioso ou incitação à discriminação, à hostilidade, ao crime ou à violência, como previstos na Convenção Americana sobre Direitos Humanos. “O problema é: quem vai julgar o que seria desinformação ou discurso de ódio contra a mais alta Corte de justiça do país?”, questiona o jurista. “Se por ventura esse programa concluir que determinado cidadão está difundindo fake news contra o STF, essa pessoa vai ficar absolutamente desamparada, não vai ter para onde recorrer”.

A criação de ferramentas que venham a blindar a Corte contra críticas constitui censura, afirma Milton Gustavo Vasconcelos, mestre e doutor em Ciências Criminais e um dos organizadores da coletânea “Supremos Erros” - que analisa tecnicamente decisões do STF consideradas pelos autores como inconstitucionais e em que há extrapolação de competências por parte da Corte. “Criou-se, na nova cultura do Supremo, a ideia equivocada de que falar contra a instituição do STF é algo criminoso, algo ilícito”, diz. “Na verdade, você pode falar contra qualquer instituição e pregar pacificamente qualquer doutrina. Isso é previsto na Constitucional Federal e até mesmo da Lei de Segurança Nacional”, prossegue.

Na avaliação de João Pedro Favaretto Salvador, pesquisador do Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação da FGV Direito SP, o programa em si não implicaria em mudanças na postura do Supremo quanto ao julgamento de casos específicos. Ele aponta que a instituição do PCD tem relação com o entendimento, por parte do STF, de que para lidar com a desinformação contra a instituição, o Tribunal precisa “entrar nessa arena e usar sua estrutura para disputar a narrativa; dizer o que para ele é verdade, sem necessariamente censurar ou excluir outras posições”.

Salvador aponta, no entanto, que há pontos preocupantes no programa. O primeiro está relacionado a menções, na resolução que institui o PCD, que juntam o aspecto da desinformação contra as instituições públicas com a questão do discurso de ódio contra grupos sociais que, conforme explica o pesquisador, são problemas diferentes.

“O texto cita ‘combate ao discurso de ódio contra instituições públicas’. O discurso de ódio historicamente é usado de tantas maneiras diferentes que pode ser empregado de uma maneira retórica para dizer que o Tribunal é vítima de discurso de ódio. Mas isso não é verdade”, declara. “O discurso de ódio é um fenômeno social relacionado à igualdade entre pessoas e grupos sociais, ao ataque a uma minoria política ou a um grupo que tenha uma ferida histórica. O STF erra em misturar essas duas coisas”.

Adicionalmente, Salvador afirma que o artigo da resolução que traz como uma das ações o “aperfeiçoamento de recursos tecnológicos: desenvolvimento e aquisição de recursos de tecnologia da informação para identificação mais célere de práticas de desinformação e discursos de ódio” gera receio quanto à forma como isso seria feito. “O STF é um tribunal. Ele julga casos, não tem ele mesmo que perseguir e identificar os casos. Então, causa estranhamento o que o Supremo pretende fazer com essas ferramentas”, observa.

“Não é interessante que a Suprema Corte monitore e busque casos para ela mesma julgar. Não posso dizer que essa medida necessariamente é algo ruim por si só, mas que não estão sendo transparentes sobre o que querem fazer com isso, e seria interessante que isso fosse mais claro”, diz o pesquisador da FGV Direito SP.

Dário Júnior reforça a inadequação de relacionar discurso de ódio com instituições públicas. Para ele, a manobra pode gerar cerceamento a críticas democráticas ao Supremo. “A Corte é criticável, até o modelo de Corte Suprema que temos no Brasil é criticável. Se eu começar a escrever artigos científicos mostrando os problemas desse modelo de Corte, isso pode ser interpretado como uma afronta às verdades do STF, uma narrativa odiosa à instituição?”, questiona o doutor em Direito Processual. “Isso pode gerar até uma insegurança para pesquisadores. Pode cercear um pouco a liberdade científica, a liberdade de pesquisa do Direito”.

O jurista aponta, por fim, que a criação de uma página de publicações denominada “Verdades do STF” é questionável, e que o nome remete, inclusive, a algo anticientífico, uma vez que está se referindo a uma verdade absoluta. “O STF quer que se acredite numa versão oficial que venha da Corte quanto aos fatos que ocorrem lá. Quando o Supremo soltar um criminoso, por exemplo, ele pode dizer que aquilo está amparado pela Constituição Federal e não vai aceitar críticas”, diz.

“ Os motivos [de combater discurso de ódio e informações falsas] são muito nobres, mas é preciso ficar atento para que isso não seja um instrumento de perseguição, de obscurantismo, de tentar calar vozes divergentes”, ressalta.

STF vive escalada de ações questionáveis

A preocupação com o desdobramento do programa está relacionada a uma escalada de posicionamentos questionáveis da Suprema Corte. O Inquérito 4.781, chamado “Inquérito das Fake News”, foi aberto em março de 2019 pelo ministro Dias Toffoli, que na época ocupava a presidência do STF, com o objetivo de apurar supostas notícias falsas, ameaças e crimes contra a honra direcionados aos ministros da Corte e a seus familiares.

Desde então, passou a haver bloqueios de perfis nas redes sociais que teriam publicado conteúdos contrários aos membros do Supremo, bem como mandados de busca e apreensão de materiais eletrônicos de investigados. Um mês após a abertura do inquérito, Alexandre de Moraes – indicado para relatar o inquérito – também tentou censurar a revista Crusoé após a publicação de uma reportagem que citava que o ministro Toffoli havia sido citado por Marcelo Odebrecht em uma delação premiada da Operação Lava Jato. Após críticas, até mesmo de outros membros da Corte, Moraes voltou atrás e revogou a decisão.

Em abril de 2020, o ministro publicou uma decisão determinando uma série de diligências contra 17 investigados por suposta publicação de conteúdos ofensivos ou em tom de ameaça aos integrantes do STF. Foi determinado a todos os investigados a busca e apreensão de materiais eletrônicos, como computadores, tablets e celulares; além do bloqueio das redes sociais – os bloqueios permanecem até hoje sob o argumento de serem necessários “para a interrupção dos discursos com conteúdo de ódio e subversão da ordem”.

Passados mais de um ano da abertura do inquérito, o STF ainda não concedeu aos advogados de defesas o acesso à íntegra dos autos, o que fere a Súmula Vinculante 14, do próprio STF, e o inciso XIV do art. 7º da lei 8.906/94, que dispõe sobre o Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

O inquérito é alvo de apontamentos de diversas ilegalidades – dentre elas estão: indefinição do objeto do inquérito, não indicando fato específico a ser investigado; indicação do ministro Alexandre de Moraes na condução das investigações (conforme o Regimento Interno do STF, a distribuição deve ser feita por sorteio); e ausência de atribuição do STF para o caso.

“A principal função do Supremo é de defender a Constituição Federal, mas a função de qualquer juiz é ser, enquanto um árbitro, um terceiro imparcial em qualquer ação. Nesse caso das supostas fake news, o STF é supostamente a parte, o investigador e o juiz”, diz Vasconcelos.

Em se tratando de investigação criminal, o Supremo só possui atribuição para instaurar inquérito em caso de infração cometida dentro da sede ou dependência do STF, de acordo com o art. 43º  do seu Regimento Interno. No caso específico do Inquérito 4.781, o jurista avalia que a Corte criou um “malabarismo retórico” e passou a entender que poderia atuar em supostas infrações contra a instituição cometidas em qualquer lugar, o que seria uma extensão da competência dos ministros.

“Constantemente o STF, sob o pretexto de proteger os integrantes da Corte, viola os limites legais, constitucionais, como por exemplo decretando medidas cautelares de ofício – o que é proibido –, abrindo inquérito de ofício, decretando prisões de ofício e investigando crimes que não são de sua competência”, ressalta.

Para Milton Vasconcelos, a anulação, por parte do Supremo, da delação premiada do ex-governador do Rio Sérgio Cabral (MDB) que poderia resultar na investigação de uma suspeita contra o ministro Dias Toffoli, é outro exemplo dos excessos da Corte.

Na delação, Cabral disse ter conhecimento de pagamentos na ordem de R$ 4 milhões para Toffoli em troca da venda de decisões judiciais. A Polícia Federal solicitou autorização ao STF para abrir inquérito contra Toffoli, mas Fachin negou o pedido monocraticamente. Durante a avaliação do caso pelo Supremo, até mesmo o próprio Toffoli votou contra a abertura do inquérito, apesar de ele ter sido citado na delação em questão.

Além de se manifestar de forma contrária à abertura da investigação contra o colega, o ministro Gilmar Mendes chegou a sugerir que o delegado responsável pelo caso fosse investigado por indícios de abuso de autoridade.

Posicionamento do STF

A Gazeta do Povo encaminhou ao STF questionamentos a respeito de como será mensurado no PCD objetivamente o que seria tipificado como desinformação ou discurso de ódio e quais mecanismos serão implementados para evitar eventuais violações à liberdade de expressão.

A assessoria de comunicação do Supremo informou à reportagem que “a íntegra da criação do programa informa quais tipos de ações serão feitas” e que “na medida em que as ações forem sendo efetivadas, elas serão amplamente divulgadas”.

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