“Fica expressamente proibido o uso, o ensino, o fomento e qualquer forma de utilização da denominada linguagem neutra e similares na grade curricular, em materiais didáticos de instituições de educação infantil, ensino fundamental e superior e de cursos livres e assemelhados, públicos ou privados, bem como em editais de concursos públicos e em outros documentos oficiais”.
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Assim estabelece o Projeto de Lei 211/2021, que foi apresentado na Câmara dos Deputados, em fevereiro, pela deputada Chris Tonietto (PSL-RJ). A iniciativa “estabelece medidas protetivas à Língua Portuguesa, idioma oficial da República Federativa do Brasil e patrimônio cultural brasileiro”. E prevê sanções por danos e ameaças ao patrimônio cultural, incluindo a aplicação de multas.
Em entrevista concedida por escrito, a deputada explica: “Não existe qualquer justificativa, do ponto de vista gramatical, para a adoção do chamado ‘gênero neutro’, tão contrário à índole da língua portuguesa. As supostas vantagens sociais dessa mudança – como a ‘inclusão’ e a maior aceitação social dos transexuais e outros grupos – são apenas um pretexto (falso, diga-se de passagem, pois arbitrariedades semelhantes costumam gerar apenas divisão e ódio) para um projeto de natureza ideológica que, se levado adiante, pode ameaçar a alfabetização e a formação intelectual e cognitiva de milhões de brasileiros”.
Em resumo, afirma ela, “Lutar contra a famigerada ‘linguagem neutra’ é lutar contra o assassinato da nossa língua vernácula”. O projeto de lei cita casos de escolas que aderiram à linguagem neutra, desconsiderando o fato de que existem regras para o uso gramatical do idioma.
Explicação na gramática
“A língua portuguesa advém da latina”, explica Lara Brenner, professora de língua portuguesa e advogada licenciada. “Em latim, havia três gêneros: masculino, feminino e neutro. Para a formação do singular, tal idioma evoluiu para a abolição do -s em construções como cibus bonus (comida boa), que passou a ser cibu bonu (cibu é palavra masculina)”.
De outro lado, prossegue ela, “as palavras neutras, que geralmente terminavam em -m, evoluíram foneticamente até que o -m deixasse de ser pronunciado e, consequentemente, escrito. Assim, lillium pulchrum (lírio belo) passou para lilliu pulchru. Coincidentemente, portanto, uma palavra masculina, como cibu, adquiriu a mesma terminação de uma neutra, como ‘lilliu’. Essa coincidência ocorria tantas vezes na língua, que trouxe a percepção prática aos falantes de que a forma masculina já assumia função neutra”.
E a língua portuguesa herdou essa marca linguística. Como explica Brenner, “o final -u (lilliu, cibu) evoluiu para o final -o que conhecemos, por isso se diz hoje que o masculino também pode ser neutro. Assim, quando digo ‘meus alunos são agradáveis’, estou usando, em princípio, a acepção neutra de ‘alunos’. Sempre tivemos essa compreensão de maneira intuitiva”.
Ou seja: o gênero masculino, dada sua ausência de marca distintiva, é também o neutro. A única marca efetivamente distintiva de gênero em nosso idioma é a do feminino. “Se digo ‘boa noite a todas’, ‘as heroínas venceram a batalha’, sei que os grupos em questão são inteiramente femininos. Ou seja, se há algum privilégio de gênero em nosso idioma, ele recai sobre o feminino, cuja marcação não deixa margem para dúvida”.
Por isso, em geral, palavras como “judeu”, “cristão”, “juiz”, “promotor”, “coronel” não têm nenhuma marca masculina. É quando se adiciona o -a ao final, está identificado o feminino: judia, cristã, juíza, promotora, coronela.
Há os vocábulos que fogem dessa dinâmica, explica a professora: “Palavras como ‘testemunha’, ‘vítima’, ‘criança’ e ‘anjo’ têm apenas um gênero, independentemente de quem seja o referente. Já palavras como ‘motorista’ e ‘estudante’, embora não variem em si, trabalham com flexão de seus determinantes: o/a motorista, estudante belo/bela. Sem problemas, afinal intuitivamente deduzimos que se trata do gênero da palavra, não da pessoa”.
Debate na Câmara sobre linguagem neutra
Para debater o projeto de lei e essas questões gramaticais e políticas, a deputada Chris Tonietto conduziu uma sessão virtual que contou com a presença de Sergio Pachá, ex-lexicógrafo chefe da Academia Brasileira de Letras. “A língua não pode ser alterada por fulano ou beltrano. As mudanças linguísticas são sempre impessoais, coletivas e inconscientes”, declarou Pachá.
Por sua vez, Eduardo Vieira, professor e presidente da Associação Brasileira de Pais pela Educação, também esteve presente na sessão da Câmara, avalia que a linguagem neutra é um erro.
“Em termos de ortografia, a linguagem neutra é um erro completo. Mas o assunto não tem nada a ver com a língua portuguesa. Os proponentes desse tipo de modificação não estão preocupados com uma modificação benéfica para a língua. Esse é só um pretexto. O que importa é a motivação por trás do pretexto”.
Ele prossegue nesse raciocínio: “O que está em jogo aqui é a manipulação da nossa capacidade de pensar. Quando você estabelece regras absurdas, com a da linguagem neutra, interfere na forma como pensamos, afinal usamos a linguagem ao pensar”.
A professora Lara Brenner salienta também os problemas de comunicação e entendimento que a linguagem neutra podem causar. “As pessoas precisam se dar conta de que não é apenas dizer ‘elu’, ‘todes’ ou ‘alunes’; trata-se de editar cada frase, até que se torne praticamente incompreensível ou impronunciável, até que o medo de falar qualquer frase de forma ‘repreensível’ nos definhe e modifique. No fim das contas, permitir a alteração desnecessária e arbitrária da língua - nossa forma mais humana e sofisticada de pensamento e comunicação ´- é permitir a edição de nós mesmos”; destaca.
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