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combate ao infanticídio praticado por alguns povos indígenas é tema de um projeto de lei que tramita há mais de uma década no Congresso
Imagem de índios isolados, na Amazônia, divulgada pela Funai em 2011| Foto: Funai

O combate ao infanticídio praticado por alguns povos indígenas é tema de um projeto de lei que tramita há mais de uma década no Congresso. Depois de quatro anos em tramitação na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado, o Projeto de Lei 119/2015 chegou à Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) em outubro de 2019. Está agora nas mãos do senador Marcos Rogério (DEM-RO), para que ele emita um relatório sobre a matéria. Trata-se de uma nova versão para um texto ainda mais antigo, apresentado em 2007 e que, depois de oito anos de tramitação na Câmara dos Deputados, ganhou uma nova versão, que seguiu para o Senado.

O PL 119/2015 acrescenta um artigo à lei 6.001, de 19 de dezembro de 1973, que dispõe sobre o Estatuto do Índio. O objetivo, como defende o texto de apresentação do PL, é estabelecer de forma mais clara “o dever da União, dos estados e dos municípios e das autoridades responsáveis pela política indigenista de assegurar a dignidade da pessoa humana e os procedimentos com vistas a garantir o direito à vida, à saúde e à integridade física e psíquica das crianças, dos adolescentes, das mulheres, das pessoas com deficiência e dos idosos indígenas, com prevalência sobre o respeito e o fomento às práticas tradicionais indígenas”.

Em outras palavras, ainda que o assassinato de bebês praticado entre comunidades indígenas possa ser enquadrado no Código Penal, e até mesmo nos artigos 1, 54 e 57 do Estatuto do Índio, o projeto propõe fortalecer o arcabouço legal de combate à prática. Na legislação atual, a morte de recém-nascidos, realizada pela mãe que esteja comprovadamente fragilizada, rende pena de detenção de dois a seis anos, enquanto que a prática consciente do ato, com ou sem participação de outros membros da comunidade, já caracteriza homicídio.

“Inicialmente, o PL tinha como pretensão a tipificação da omissão de socorro, nos casos de práticas tradicionais nocivas, especificamente o homicídio de neonatos e crianças indígenas, e o abuso sexual de crianças e adolescentes por razões culturais”, afirmam, em entrevista concedida por e-mail, as advogadas Maíra de Paula Barreto Miranda e Amanda Dias Tonon, que representam a Atini, organização sem fins lucrativos, sediada em Brasília, dedicada a defender o direito das crianças indígenas. A ministra Damares Alves é uma das fundadoras da entidade.

“Ao longo de mais de uma década, o PL sofreu modificações, principalmente, na Câmara dos Deputados, além de ser amplamente debatido em audiências públicas. Tais modificações ampliaram o escopo original, incluindo o combate à violência contra a mulher indígena, adolescentes, indígenas com deficiência e idosos. Por anos, o Estado fechou os olhos para a prática, não colhendo os dados necessários, não somente para evitar a prática, mas também para elaborar políticas públicas sobre o tema”.

O Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos afirmou que apoia o PL 119/2015 por entender que a vida é o direito humano básico. "Defender a vida de crianças indígenas, portanto, é missão desta pasta. Entendemos, também, que é possível promover o diálogo para que alguns povos indígenas mudem práticas culturais que, no final das contas, atentam contra os direitos dos membros dessas tribos".

Participação efetiva

O texto em tramitação no Senado reafirma o respeito a práticas tradicionais indígenas, “sempre que elas estejam em conformidade com os direitos fundamentais estabelecidos na Constituição Federal e com os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos de  que a República Federativa do Brasil seja parte”.

O projeto estabelece que, à parte as ações policiais contra a prática, todos os órgãos responsáveis pela política indigenista, em especial a Fundação Nacional do Índio (Funai) e a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), deverão atuar com projetos e programas preventivos, de forma a garantir “a proteção das crianças, dos adolescentes, das mulheres, das pessoas com deficiência e dos idosos indígenas contra práticas que atentem contra a vida, a saúde e a integridade físico-psíquica”. Práticas que incluem não só infanticídio e homicídio, mas também abuso sexual, escravidão, tortura, abandono de vulneráveis e violência doméstica.

Além disso, lembra que as pessoas que se recusam a participar de práticas violentas recebam a proteção do Estado. É o caso de mães que se recusam a assassinar os próprios bebês, apesar da pressão das comunidades onde estão inseridas.

“Os órgãos públicos, sobretudo o responsável direto pela saúde indígena, dentro de suas atribuições e em suas estruturas regionais”, lembra o PL, “deverão manter cadastro atualizado de mulheres gestantes por etnia e/ou aldeia e proporcionar a elas acompanhamento e proteção durante todo o período gestacional”. Ao verificar que o bebê corre risco de vida, os órgãos poderão, “com anuência da gestante, removê-la da aldeia, atendendo as especificidades de cada etnia”.

Diálogo com ação

Combater o infanticídio indígena, com um diálogo aberto com as etnias para encontrar formas concretas de eliminar a prática, é um dos principais objetivos da ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), Damares Alves. A pasta pretende melhorar o atendimento às vítimas, no curto prazo, e ampliar o diálogo com os povos indígenas, no longo prazo.

“Buscar conversar com os povos, sem fazer interferência cultural. Eu acredito que esse é um problema que o próprio povo pode superar. Muitos povos no Brasil cometiam o infanticídio e já superaram essa prática. É possível que, em conversas, em campanhas, a gente consiga superar essa prática em poucos anos no Brasil”, declarou Damares para a Gazeta do Povo, em 2019.

“Depois, conversaremos com o próprio povo sobre a reinserção da criança na comunidade. Se outra família da própria comunidade não quer ficar com a criança, procuramos uma cultura similar, um povo parecido com o dessa criança. Se não encontrarmos outro povo para essa criança ficar, buscamos um abrigo institucional.”

Drama cotidiano

O infanticídio ainda faz parte da cultura de uma série de povos indígenas. “Atualmente, dos 305 grupos existentes no Brasil, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 13 ainda mantêm esta prática”, afirma Laércio Fidelis Dias, doutor em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo e diretor da Fundação Cultural Palmares. “Mesmo nestes contextos em que ocorre o infanticídio, a pratica se dá de forma discreta, velada e retirada. O que parece revelar, mesmo sendo uma prática cultural tradicional, que, na consciência de quem o pratica, há o reconhecimento de algum interdito sendo burlado. Neste caso, o próprio valor da vida humana”.

Além de enterrar nascidos vivos e abandoná-los na mata, as crianças são “sufocadas com folhas, envenenadas, flechadas ou golpeadas com facão”, como aponta o estudo “O Infanticídio e a Violação dos Direitos Humanos das Mães Indígenas”, apresentado por uma equipe de pesquisadores da Faculdade Maurício de Nassau, de Campina Grande (PB). “O infanticídio de meninas também é observado, por questões de organização da tribo, quando os membros não acham conveniente nascer uma mulher, pois não esta não contribuiria nas tarefas fundamentais de caça e pesca”.

Para Dias, “o infanticídio é uma prática de visa eliminar aquelas crianças que são consideradas perigosas, em dois sentidos. Num primeiro momento, podem ser disfuncionais de um ponto de vista bioevolutivo e adaptativo, ou seja, devido às suas características podem encontrar dificuldades”. Num segundo momento, diz ele, “porque podem estar em desacordo com os princípios de normalidade da visão de mundo do grupo e, assim, passam a ser vistas como ameaçadoras da ordem cósmica, ainda que não sejam disfuncionais do ponto de vista adaptativo, como no caso dos gêmeos”.

O pesquisador considera que, para lidar com essa questão, é fundamental aperfeiçoar a legislação para proteger os mais vulneráveis. “Neste sentido, o PL 119/2015 é importante porque torna explicita a proibição do infanticídio, e por isso pode ser pensado como um aperfeiçoamento da atual legislação brasileira”.

Relativismo cultural

Para as advogadas da Atini, “por se tratar de uma lei voltada integralmente aos direitos humanos e à proteção não somente da criança, mas dos indígenas vulneráveis, o projeto reforçará a legislação existente, no que diz respeito ao enfrentamento da violência contra os indígenas, principalmente, os vulneráveis”.

Tal reforço “é necessário, já que muitos ainda acreditam - e os próprios órgãos governamentais apoiaram esta ideia, equivocada, até recentemente -, baseados no relativismo cultural, que não se deve interferir em questões culturais, mesmo que estas custem a vida de crianças indefesas ou permitam o seu abuso”.

De acordo com as advogadas, o projeto de lei seria crucial para garantir a “estruturação de políticas indigenistas e no atendimento realizado pela rede socioassistencial às crianças indígenas, em geral, não somente das vítimas de práticas nocivas, mas também de mulheres, idosos e vulneráveis. Após anos de descaso, por parte do Estado, em relação às crianças indígenas vulneráveis, bem como em relação às mulheres e idosos, a tão esperada aprovação do PL e sua sanção, pelo presidente da República, marcarão um fato histórico, lhes garantindo visibilidade e voz pela vida”.

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