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Cordelista com alunos de escola municipal em Teresina-PI
Cordelista com alunos de escola municipal em Teresina-PI| Foto: Tião Simpatia/arquivo pessoal

Repentista de renome no Nordeste, autodidata no violão e com um talento incontestável para construir estrofes rimadas de improviso, Sebastião Felix de Oliveira Jucá, conhecido como Tião Simpatia, adotou a causa do combate à violência contra a mulher. Poucos meses depois que a Lei Maria da Penha foi promulgada, em 2006, criou um jogo de rimas para divulgar o número 180, que recebe denúncias de violência doméstica no Brasil e em mais 16 países.

"Violência doméstica ninguém mais aguenta; não tolere, denuncie, ligue 180. É grátis, qualquer um pode ligar, 24 horas no ar, registrando ocorrência. Chega de mau trato e preconceito, toda mulher tem direito a viver sem violência", diz o refrão do repente, que vem encantando estudantes de escolas da rede pública do Ceará e do Piauí e que você pode ouvir aqui.

Embora a cantoria rimada do repente agrade crianças e adolescentes, foi a literatura de cordel que abriu as portas das escolas para o artista. Os poemas populares impressos em folhetos coloridos e vendidos na rua, tão populares no Nordeste, não eram a especialidade de Tião até que ele recebeu o desafio de escrever um cordel sobre a lei de combate à violência doméstica. Foi a própria Maria da Penha, inspiradora da lei, que propôs ao conterrâneo a composição de um cordel para marcar a cerimônia de inauguração do Instituto Maria da Penha, em 2009.

"Foi meu primeiro cordel profissional. Eu não tinha formação em Direito, passei 30 dias lendo a lei e relendo cada artigo, porque o cordel tem regras muito rígidas. Tem três elementos básicos para a construção do cordel que você não pode quebrar de jeito nenhum: a métrica, a rima e a oração. Então pegar um texto jurídico e transformar em um texto poético, obedecendo a essas regras, foi bem complicado", disse Tião Simpatia em entrevista à Gazeta do Povo. "Ao mesmo tempo, eu não podia fugir do teor do texto jurídico em detrimento dessas regras, eu tinha que ser fiel à lei."

Ao traduzir os principais artigos da Lei 11.340 para a linguagem coloquial dos cordéis, ele não imaginava aonde seu trabalho chegaria. Hoje, Tião Simpatia percorre escolas declamando o longo texto para plateias de alunos atentos e interessados no assunto. Cem mil estudantes já ouviram o cordel Maria da Penha pela voz do próprio compositor. O alcance de seu trabalho, porém, é muito maior. Vídeos de crianças e adolescentes declamando o cordel somam milhões de visualizações na internet e até um juiz já utilizou algumas estrofes em uma sentença.

Projeto "cordel Lei Maria da Penha nas escolas"

O trabalho nas escolas começou em 2014, quando o artista morava em Teresina, no Piauí, e fez uma parceria com as secretarias municipais de Educação e de Políticas para Mulheres. Em seis anos, ele percorreu todas as escolas da rede pública municipal cantando repentes e declamando o cordel para cerca de 70 mil alunos.

Nos últimos dois anos, as palestras e apresentações também foram levadas a outros 30 mil estudantes de escolas da rede estadual de Fortaleza e cidades vizinhas, por meio de uma parceria entre o Instituto Maria da Penha e a Secretaria de Educação do Ceará, que deve se repetir neste ano.

  • Escola Municipal Extrema, Teresina-PI
  • Escola Muncipal Antonio Gayoso, Teresina-PI
  • Escola Municipal Poeta da Costa Silva, Teresina-PI
  • Liceu de Messejana, Fortaleza-CE
  • Escola Municipal Justianiano de Serpa, Fortaleza-CE

“Os alunos conseguem absorver muito bem as informações, porque elas são passadas de forma lúdica, através de cordel e da música. Consigo a atenção deles pra dar o recado bem direitinho”, diz Tião Simpatia, com seu sotaque cearense.

“Eu declamo [o cordel], mas, com sou músico, levo o violão e faço uma parte cantada. Começo com o cordel e depois tem músicas de acordo com a idade deles, que vou criando para o projeto. E aí vou brincando, boto eles pra cantar e geralmente termina numa grande festa."

"A gente trabalha um tema complexo, sério, mas de uma forma leve, eles adoram. E é interessante. Apesar de não ser uma obra infantil, as crianças absorvem muito bem o cordel."

“Não sei se é porque a cultura do cordel é muito forte aqui no Nordeste, mas eles se familiarizam e aprendem rápido. Inclusive tem muitos vídeos de crianças [na internet] declamando o cordel. Através da arte, tenho conseguido realmente mobilizar muita gente para a causa. Os professores também se divertem e aprendem. Assim como os alunos, todos recebem o folheto impresso, que depois fica na biblioteca, gerando um efeito multiplicador”.

Cordel na internet e em sentença judicial

O alcance do trabalho nas escolas é incalculável. Os vídeos de uma única menina declamando o cordel num evento já tem cerca de de 6 milhões de visualizações. Esse mesmo vídeo inspirou um juiz do Paraná recentemente.

O titular da Vara Criminal de Sengés, a 270 quilômetros de Curitiba, rejeitou pedido de reparação a um homem que denunciou a esposa por agressão e por ter quebrado o carro dele. Na sentença, indeferindo o pedido, o juiz Marcelo Quentin citou o cordel declamado durante o Congresso da Mulher Advogada de São Paulo, em 2018, para explicar que a Lei Maria da Penha não é aplicável a homens e transcreveu um trecho.

“E se acaso for o homem que da mulher apanhar? É violência doméstica? Você pode me explicar? Tudo pode acontecer no âmbito familiar!

Nesse caso é diferente, a lei é bastante clara: por ser uma questão de gênero, somente a mulher ampara. Se a mulher for valente, o homem que livre a cara. E procure seus direitos da forma que lhe convenha.

Se o sujeito aprontou e a mulher desceu-lhe a lenha, recorra ao Código Penal não à Lei Maria da Penha”

Artista foi alfabetizado pela literatura de cordel

Primogênito de 12 filhos, Tião Simpatia nunca tinha ido à escola até sair da roça, aos 17 anos, para fazer o ensino fundamental e o médio no supletivo da cidade mais próxima de onde morava, Camocim, no Ceará, a 350 quilômetros de Fortaleza. Mas sabia ler, graças à literatura de cordel - estilo literário muito popular no Nordeste.

Seu tio Raimundo, único alfabetizado da família, comprava na feira os folhetos com histórias contadas em forma de poema e lia para os sobrinhos. Tião decorava tudo. Depois se interessou pelas letras na cartilha de alfabetização de uma prima e foi entendendo os sons produzidos pela junção de sílabas. Em pouco tempo estava identificando as palavras decoradas nos impressos de cordel que tinha em casa.

Já adulto, com ensino fundamental e médio concluídos no supletivo, virou repentista - outra manifestação cultural típica do Nordeste, em que o músico improvisa estrofes, criando as letras na hora da cantoria. O resto da história você já conhece: criou o repente ligue 180, o cordel Maria da Penha e começou a percorrer escolas levando conscientização a milhares de alunos, além de fazer apresentações artísticas, já que vive da arte.

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