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Sebastião, de 73 anos, cuida da mulher, Conceição, que sofreu três derrames | Prscila Forone/Gazeta do Povo
Sebastião, de 73 anos, cuida da mulher, Conceição, que sofreu três derrames| Foto: Prscila Forone/Gazeta do Povo

Estatuto

Estado deve ser responsável

A responsabilidade dos filhos com os pais idosos já foi definida pelo Estatuto do Idoso e até pela Bíblia – "ampara o teu pai na velhice" é um das frases mais famosas do Eclesiastes –, mas, com as mudanças na demografia brasileira, há cada vez mais idosos – e cada vez menos jovens para cuidar deles. As relações intrafamiliares estão mais frágeis, devido aos múltiplos casamentos e divórcios, e o aumento da presença da mulher no mercado de trabalho aos poucos extingue a figura da mulher do lar que cuida dos membros da família.

Nesse cenário complexo, a demógrafa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Ana Amélia Camarano, referência na área de estudos sobre a terceira idade, prevê que o Estado terá de ser mais ativo e se responsabilizar mais pelos idosos do país – um dever no qual ele ainda é omisso. A pesquisadora, que lançou um livro sobre cuidadores familiares, defende que, no caso de idosos que moram apenas com o cônjuge e necessitam de cuidados, o Estado deve providenciar um cuidador, pago com dinheiro público.

"É preciso providenciar o cuidado domiciliar formal, em que o Estado mande um cuidador à casa do idoso para ficar com ele 24 horas por dia, ou, se ele ainda possui alguma independência, durante algumas horas do dia", afirma. De acordo com Ana Amélia, vice-presidente do Conselho Nacional do Idoso entre 2006 e 2008, isso já é feito em países da Europa, que já convive com o envelhecimento da população há algumas décadas. "Há algumas iniciativas isoladas em algumas cidades, em projetos pilotos, mas no geral, isso não existe por aqui", lamenta.

Estímulo

Outra alternativa apontada por ela é o estímulo, por parte do governo federal, aos cuidadores familiares. Hoje, muitos filhos não assumem a função porque têm de trabalhar, ou, se assumem, precisam abrir mão do serviço. A pesquisadora defende uma série de medidas que hoje ainda são vistas com estranhamento, como inserir o cuidador familiar no sistema de previdência social, já que muitos filhos, geralmente os mais novos, cuidam dos pais até a morte desses, e, com o falecimento, perdem sua fonte de renda (a aposentadoria) e acabam na pobreza.

Cuidadores familiares estão mais expostos a problemas de saúde. No caso de idosos, esse risco é maior devido à idade, e precauções devem ser tomadas para que o cuidador não venha a adoecer:

- Riscos

Cuidadores familiares com dedicação mínima de 36h semanais têm seis vezes mais chance de ter depressão a expectativa de vida diminui em até 10 anos, e a taxa de mortalidade é 63% maior em relação à população normal o risco de contrair doenças físicas e psicológicas é duas vezes maior no caso de idosos, que já têm a saúde debilitadas, os riscos se potencializam, por isso, não é aconselhável que um idoso seja cuidador

- Cuidados

O ideal é que os filhos, netos ou parentes mais novos assumam essa função em conjunto, para evitar sobrecarga se o idoso não tem filho ou parentes próximos, deve solicitar ajuda governamental para cuidar de seu cônjuge, pois este é um direito assegurado pelo Estatuto do Idoso. Se preciso for, é possível acionar o Ministério Público Estadual, através do Centro de Apoio Operacional à Promotoria de Defesa dos Direitos do Idoso, para fazer valer esse direito. O telefone é 3250-4798.

Fonte: OMS/ geriatras Clóvis Cechinel e Rubens Bendlin

Há oito anos, o vigilante aposentado Sebastião Soares de Castro, 73 anos, vive um dilema diário. Toda vez que o relógio desperta, às 7 horas em ponto, ele precisa decidir o que fazer primeiro: cuidar de si mesmo ou da esposa, dona Conceição, de 67 anos, que dorme no quarto ao lado. A decisão não é fácil: seu Sebastião, que sofre com a chegada da idade, com a hipertensão e os problemas do coração e precisa de atenção médica constante, é o único amparo da companheira, imóvel em uma cama por conta de três AVC (acidente vascular cerebral), cujas sequelas a impedem até mesmo de comer.Casos como o de seu Sebastião e dona Conceição ilustram um fenômeno que pouco ou nunca aparece nas estatísticas oficiais, quando os números sobre o envelhecimento da população (que aumentam) e o número de filhos por mulher (que diminuem) são divulgados: o de idosos que cuidam de idosos, sem amparo dos filhos ou do Estado. Essa parcela da população, que precisa cuidar quando deveria ser cuidada, ainda não foi contabilizada pelo governo – o que se sabe é que 23,8% dos idosos vivem apenas com o cônjuge, mas não se sabe sua condição de saúde. A literatura médica, no entanto, já começa a se preocupar com o problema.

Raciocínio

As implicações sociais e médicas são preocupantes, de acordo com o médico geriatra do Laboratório Frischmann Aisen­gart Clóvis Cechinel, que estuda o tema. O raciocínio é simples: um cuidador familiar (pessoa responsável por cuidar do membro da família que perdeu sua independência funcional, em geral o pai ou avô idoso) tem até duas vezes mais chances de desenvolver doenças. O risco aumenta para quatro vezes o normal quando o cuidador é cônjuge, e a mortalidade é 63% maior nesse grupo, de acordo com estudo da Organização Mundial da Saúde.

Nesse caso, é possível prever os males causados a quem já tem mais dificuldades de assistir e acompanhar em decorrência da idade. "O cuidado já é algo estressante e difícil. Para o idoso, pelo próprio processo de envelhecimento, é mais difícil ainda. A audição já está debilitada, o que dificulta a comunicação. Também possuem distúrbios visuais que dificultam na administração de medicamento. Eles têm menos força de tração, dar banho fica mais complicado. Há uma série de complicações", diz o médico, que assiste vários idosos nessa situação, grande parte mulheres, que cuidam dos maridos.

Descuido

Além de enfrentarem mais dificuldades para cuidar, idosos que cuidam também tendem a descuidar da saúde, o que preocupa os médicos. Embora tenham mais contato com profissionais de saúde por acompanharem o cônjuge nas consultas médicas, em casa tendem a descuidar de horários da própria medicação e de hábitos que promovem o bem-estar. Nes­se caso, o geriatra e coordenador dos Programas de Saúde do Ho­­mem e do Idoso da Secretária de Es­­tado da Saúde (Sesa), Rubens Bendlin, alerta para a importância de o idoso ter um tempo para si.

"Muitas vezes, pelo estresse, o cuidador pode vir a óbito até mesmo antes daquele que é cuidado. Não pode haver sobrecarga de trabalho, e a pessoa precisa de um tempo para ir ao médico e fazer as suas tarefas", diz Bendlin, que insiste na importância de os filhos auxiliarem os pais nessas tarefas e não deixá-los sozinhos em casa durante muito tempo. "A família é a principal responsável pelo idoso, antes mesmo do Estado. Isso está no Estatuto do Idoso, e é preciso haver essa conscientização".

Nesse caso, o conselho é para que, em casos de famílias com dois ou mais filhos, esses se dividam para que ninguém se sobrecarregue – tanto emocional quanto financeiramente. Nas situações em que há apenas um filho, ou o casal não teve filhos, o Estado tem a obrigação de ser mais atuante. Caso o filho não tenha condições de cuidar sozinho dos pais, deve procurar a ajuda do sistema público de saúde e até de voluntários, que são recrutados por igrejas. Se o casal não tem filhos ou parentes, pode igualmente solicitar essa ajuda e, em casos de omissão do poder público, pode interceder junto ao Ministério Público Estadual ou ao Conselho Estadual do Idoso (Cedi).

"Sei que o que faço a ela empresto a Deus"

Em 2003, a vida do casal Sebastião e Conceição Soares de Castro sofreu uma reviravolta. Naquele ano, os dois se mudaram para o Rio de Janeiro para ficar perto da única filha e "aproveitar o clima da praia". Em março, porém, ela sofreu um derrame e demorou para ser atendida, o que provocou sequelas.

Debilitada, a aposentada voltou para Curitiba e foi morar com parentes. Três meses depois, o casal passou a viver sozinho, e então começaram as dificuldades. Pouco depois, veio o segundo AVC, e em outubro passado, o terceiro, que lhe tirou os movimentos do braço esquerdo e da perna direita, a fala e a capacidade de se alimentar.

O marido assumiu os cuidados e não se abalou. "Faço por amor, e sei que o que faço a ela empresto a Deus", diz. Mas a rotina é pesada. Ao mesmo tempo em que cuida da própria saúde, não pode descuidar da troca de fraldas, dos remédios e da alimentação (via sonda) da mulher, preparada sempre um dia antes. "Passei a cozinhar os legumes e frutinhas dela na noite anterior. No dia seguinte, só bato no liquidificador. Ganhei uma hora de sono".

Como não pode observá-la todo o tempo, é comum que ela retire a sonda e ele tenha de chamar o Samu para socorrê-la. Quando sai para pagar as contas, conta com a ajuda do cachorro da família para vigiar a casa. Em 2007, quando quebrou o fêmur e ficou um mês sem andar, precisou recorrer a parentes. Neste ano, a notícia de que teria de fazer cateterismo o alarmou. "Se fizessem na perna, eu não poderia andar e cuidar dela. Graças a Deus, fizeram no braço e deu tudo certo".

Após esse tempo, o aposentado já cogita dedicar um dia da semana a si mesmo. Atleticano fanático, anseia ver um jogo na tevê e passear na casa dos irmãos mas, antes, ainda tem uma "missão": conseguir um fisioterapeuta voluntário que ajude a esposa a recuperar parte do movimento. Hoje, ela até consegue mexer a perna esquerda, mas com muita dor, o que o deixa angustiado. Anda "sondando" com conhecidos para ver se alguém pode ajudá-lo. Crê que vai conseguir.

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Qual é a responsabilidade do Estado em relação aos idosos que cuidam sozinhos de cônjuges ou parentes?

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