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Geni Wilner, “viúva do Isaac Wilner”, como gosta de ser chamada, na frente da residência em que foi criada: esperança de que a casa não caia | Hedeson Alves/Gazeta do Povo
Geni Wilner, “viúva do Isaac Wilner”, como gosta de ser chamada, na frente da residência em que foi criada: esperança de que a casa não caia| Foto: Hedeson Alves/Gazeta do Povo

Salomão, vida, obra e riso

Nos anos 1940, auge do movimento mundial que resultou na criação do Estado de Israel, uma reunião de empresários judeus, em São Paulo, não saiu como o esperado. Culpa de um desconhecido infiltrado entre os paulistas. Na hora do passa-chapéu, ele doou nada menos do que o equivalente a um apartamento. Era sua modesta contribuição ao sionismo. Espanto geral e mãos nos bolsos: se "sabe-quem" deu tudo aquilo, os outros tinham de doar mais. Assim era o industrial Salomão Guel­mann, representante da primeira safra de judeus instalados no Paraná.

Salomão Guelmann nasceu no final do século 19 onde hoje é a Ucrânia e desembarcou em Curitiba depois de passar pela Argentina e por Joinville. Reza a lenda que sua primeira pousada na capital foi num hotel do Centro – de onde logo ganhou a porta da rua. Motivo: marceneiro de talento, transformara seu quarto numa oficina, abalando a vidinha do recinto. O resto veio a galope.

Sua fábrica, a Móveis Guel­mann, chegou a ter 400 funcionários e tinha lastro nacional. Mas não foi a paixão primeira. Rico e estabelecido, Salomão tomou para si o resgate de judeus perseguidos na Europa. Um de seus atos foi comprar a fazenda Desvio Ribas, em Ponta Grossa, para despistar a exigência de que os imigrantes fossem às roças. Os recém-chegados passavam por ali, depois se mandavam para a capital.

Um barracão da 24 de Maio com a Dr. Pedrosa abrigava até 20 famílias de cada vez. O pátio da Guelmann era o portal para o mundo livre. Passada a fase crítica do nazismo, Salomão mudou de estratégia: deixou os negócios nas mãos dos cinco filhos e começou a viajar pelo país, defendendo a criação de Israel. Festejou a vitória em 1949, indo até lá com a mulher Sofia. Trouxe iguarias secas e as distribuía entre as crianças judias: "Provem como são doces os frutos da Terra Prometida."

Essas e outras histórias estão sendo compiladas pelo comerciante Gerson Guelmann, neto de Salomão. A contar pelos relatos do escriba, prometem. Homem de presença – inclusive no corpanzil –, fugia ao estereótipo do judeu piedoso. "Ele não seguia regras. Era capaz de fazer um churrasco no dia do Yom Kippur. Debochado, carregava uísque num frasco de remédio em que estava inscrito ‘Fluxo de Mulher’". Não passava em branco, no que, hoje se sabe, fez muito bem.

  • Bernardo Rzeznik, com o retrato dos tios Jaime e Dora
  • Gerson Guelman n com a foto de Salomão
  • Linha do tempo

Durante dois anos, Geni Wilner repetiu o mesmo ritual. Ia até a janela de seu sobrado, na Rua Riachuelo, 380, e espiava uma casa do outro lado da calçada. "Eu ainda imaginava que ia ver a tia Dora e o tio Jaime por ali, mesmo sabendo que tinham morrido", conta a mulher, cuja idade não revela nem sob tortura. "Mais de 70. Só digo isso. Tá bom?", diverte-se a dona das memórias do lugar que de um ano para cá tem despertado a curiosidade dos frequentadores do Centro: o número 407 da Ria­chuelo. Aos fatos.Em 2009, o projeto Centro No­­­­vo deu início à reurbanização do Centro Velho. Estimada em R$ 800 mil, a reforma promete tirar a área do vermelho. Já não era sem tempo. A decadência da região se acentuou nos anos 70 com o boom do Calçadão e se agravou há uma década, com o avanço do crack.Ao lado da São Francisco e da Treze de Maio, a Riachuelo forma um polígono em que impera o tráfico de drogas, prostituição e cortiços. Ao mesmo tempo, tem um comércio em conta e um dos conjuntos arquitetônicos mais importantes da capital. Como observa o historiador Marcelo Sutil, a rua é um dicionário de estilos que marcaram a cidade desde o final do século 19.

Pode-se ver um exemplar do neoclássico, a Casa Edith, passar pelo ecletismo e o art nouveau, encontrar elementos do art déco, pastiches das maisons francesas da década de 50, chegando às fuleiragens feitas por construtores pouco inspirados. Tudo isso em quatro quadras separadas por um vão de asfalto de apenas 15 passos. A expectativa é que a revitalização facilite a "leitura" de todos esses estilos e vença a batalha da Riachuelo contra a decadência.

Em parte, já está acontecendo. E não só por causa das fachadas que receberam nova demão de tinta. A operação Riachuelo despertou um interesse inesperado pela casa do 407. A moradia é remanescente da Belle Époque, um estilo que, aqui, foi financiado pelo fausto do ciclo da erva-mate.

À revelia de ser uma Unidade de Interesse de Preservação, UIP, a casa está em petição de miséria. Sua imponência e elegância, contudo, não passam despercebidas pelo público, que se pergunta quem morou ali e o que será das quatro paredes mais chamativas da rua. É o que essa reportagem tenta responder.

Não se sabe ao certo quando o 407 da Riachuelo foi edificado. De acordo com Marcelo Sutil, é provável que a moradia seja anterior aos anos 1920, pois segue à risca os modismos da Belle Époque. O porão é tão alto que ali se pode morar. Há escadarias cênicas, formando curvas, gradil de ferro com frufrus e janelões de frente para a rua. É típico: na virada do século 20 havia uma espécie de crença no progresso e na cultura. Um dos reflexos dessa euforia foi a melhora nas relações de sociabilidade. A arquitetura fresca, para fora, celebrativa, refletia esse momento.

O 407, no entanto, está tomado pela hera, muro alto e remendos no telhado furado. A tristeza só não é total porque um anônimo grafitou uma paisagem no muro. O caminho até o atual estágio foi acidentado . Em meados da década de 80, com a morte dos proprietários Dora e Jaime Lerner – não o arquiteto e ex-governador – o prédio passou para Geni e mais quatro primos, que a venderam para um dos árabes da região.

Processo, aberto ao público, do Tribunal Regional do Trabalho, informa que o imóvel foi penhorado, depois da ação trabalhista movida por um garçom, e levado a leilão. Foi avaliado em R$ 30 mil e comprado por R$ 64 mil, em 2004, pelo microempresário Eduardo Padilha de Lima. Até conversar com a Gazeta do Povo, ele desconhecia a importância histórica e arquitetônica da casa, que benefícios fiscais pode ter para restaurá-la e que ali, durante cerca de 40 anos, viveram dois sobreviventes do nazismo.

Dora e Israel Chaim Lerner, conhecido como Jaime, eram judeus e chegaram ao Brasil na década de 30, assustados com o avanço do antissemitismo. Aqui, foram acolhidos pelo industrial Salomão Guelmann (leia nesta página). Em parceria com uma irmã de Dora e seu marido – Rosa e Abraham – Jaime abriu uma lavanderia na Rua Cruz Machado. Juntos, os quatro criaram Geni, uma vez que Dora não pôde ter filhos.

Na final da década de 30, a sociedade se desfez. Jaime e Dora abriram a Casa Paris, na Praça Tiradentes. Abraham inaugurou a Loja para Todos, na Barão do Rio Branco, onde moravam os pais de outro Jaime Lerner. Mas a separação durou pouco. Com os rendimentos da Paris, os Lerner "de cima" compraram a mais bela casa da Riachuelo, a 407. E os pais de Geni se mudaram para o 380, logo em frente. Não tardou para que o destino Belle Époque do sobradão se realizasse: o local – única casa judia num entreposto sírio-libanês – virou ponto de encontro da comunidade judaica.

Geni e o cardiologista Bernardo Rzeznik, 74 anos – um dos herdeiros – descrevem a casa com minúcias, as comidas que ali eram feitas, o lanche obrigatório nas tardes de domingo. São narrativas domésticas, mas que dão conta do comércio no Centro e das vivências étnicas na capital. "Tio Jaime gostava de tomar White Horse. Era um bon-vivant. Sua casa estava aberta para todos. Os jovens queriam estar com ele", brinca Bernardo, criado nos rigores do judaísmo. Esse é seu aperitivo à imaginação de quem passa pela Riachuelo, 407. Mal não faria se ela fosse satisfeita.

Colaboraram Bia Moraes e Taysa Dias.

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