A decisão do ministro Flávio Dino (STF) desta terça-feira (27) determinando a mobilização das forças de segurança federais para combater incêndios representa uma incursão do Judiciário em matéria típica do Executivo, dizem juristas ouvidos pela Gazeta do Povo.
Na decisão, Dino deu prazo de 15 dias para que quatro ministros do governo federal – titulares das pastas da Defesa, Justiça, Segurança Pública e Meio Ambiente – mobilizassem “todo o contingente tecnicamente cabível” das Forças Armadas, PF, PRF, Força Nacional e Fiscalização Ambiental para prevenir e apagar incêndios no Pantanal e na Amazônia.
Além disso, Dino determinou aos ministros que propusessem ao presidente Lula enviar uma Medida Provisória ao Congresso para liberar os recursos necessários ao combate aos incêndios.
Dino também designou uma audiência de conciliação para discutir a questão, a ser realizada sob “condução direta” dele próprio, à qual deverão comparecer autoridades do Executivo e do Judiciário em diálogo com os partidos PT, PSOL e Rede Sustentabilidade, na condição de autores das ações judiciais analisadas.
Alessandro Chiarottino, professor de direito constitucional e doutor em direito pela USP, vê a decisão como um caso particularmente “extremo” do fenômeno do “ativismo judicial”, que ele afirma ser crescente no Brasil nos últimos anos.
O professor explica que não caberia ao Supremo Tribunal Federal decidir sobre o número de servidores alocados a determinada tarefa ou ordenar despesas, porque essas seriam atribuições típicas do Poder Executivo. O professor esclarece que a função própria do Supremo Tribunal Federal é “declarar inconstitucionais atos ou normas” que conflitem com a Constituição.
Imposição de políticas públicas por tribunal não eleito fere a democracia
O advogado Ricardo Peake Braga, autor da obra Juristocracia e o fim da democracia, afirma que não se trata de analisar se a decisão tomada pelo ministro foi boa ou ruim no caso concreto, mas sim de discutir a premissa de quem, na sociedade brasileira, deve deter o poder de decidir quais políticas públicas devem ser priorizadas em detrimento de outras.
De acordo com Braga, “as políticas públicas deveriam ser definidas pelos poderes políticos, eleitos”, num sistema que ele chama de “democracia” ou “poder popular”. Em contraste, lembra Braga, o STF é “um tribunal não eleito, vitalício e não sujeito ao escrutínio popular”.
Braga enxerga a decisão do ministro Dino na terça-feira como “um exemplo da hipertrofia do STF no arranjo institucional brasileiro atual”, no qual o Judiciário vem assumindo papel político e os outros poderes estariam se tornando “meros apêndices subalternos”.
A impressão dos especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo é corroborada por dados estatísticos levantados pelo próprio STF, que revelaram um crescimento, desde o governo Bolsonaro, de decisões do tribunal declarando a existência de omissão na atuação do Poder Público, a ser solucionada por intervenção judicial em substituição.
Tese de “estado de coisas inconstitucional” tem sido usada para usurpar outros poderes
A decisão do ministro Dino na terça-feira se originou de uma ação proposta em 2020 pelo partido Rede Sustentabilidade (ADPF 743), pedindo ao STF que declarasse “estado de coisas inconstitucional da gestão ambiental brasileira” e determinasse “providências” a serem tomadas pelo Executivo federal – à época, comandado pelo presidente Bolsonaro – e pelos Estados.
A Rede fazia referência a uma tese jurídica criada em 1997 pela Corte Constitucional da Colômbia, segundo a qual os tribunais podem considerar inconstitucionais não apenas textos normativos e atos do Poder Público, mas também situações de fato no país, se puderem ser atribuídas a uma falha na atuação do Estado. Nesse caso, estaria autorizada a intervenção do Judiciário.
A tese já foi usada outras vezes pelo STF, como na decisão do ministro Alexandre de Moraes determinando políticas para moradores de rua ou na decisão do plenário determinando políticas para a população carcerária. Nos dois casos, juristas apontaram a violação pelo STF das prerrogativas de outros poderes.
O caso proposto pela Rede pedindo a aplicação da tese em matéria ambiental foi decidido pelo Supremo em junho deste ano. O tribunal negou o pedido, declarando que já não existia estado de coisas inconstitucional nas políticas para o meio ambiente no Brasil, citando a mudança de governo ocorrida em 2023. Apesar disso, o tribunal determinou uma série de medidas ao governo federal, como a apresentação de um plano de prevenção e combate a incêndios.
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