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Fernando Schüler
Para Fernando Schüler, restrições à liberdade de expressão tendem a mediocrizar o debate público| Foto: Marcelo Bertani/Agência ALRS

Em entrevista à Gazeta do Povo, o cientista político e professor do Insper Fernando Schüler aponta que a liberdade de expressão está em retrocesso não apenas no Brasil, mas também no mundo, o que prejudica o debate público e o avanço científico. Entre os fatores para isso, ele destaca as guerras culturais na política e, particularmente no país, decisões recentes, como a do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em nome da "defesa da democracia e das instituições".

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"Recentemente, a Corregedoria do TSE determinou a desmonetização de contas de ativistas pró-voto impresso, no Brasil. E o fez dizendo que aquelas pessoas estavam faltando com a 'verdade'. A fonte da verdade, por sua vez, eram as próprias posições do TSE. Ou seja: ou você está de acordo com as posições do TSE, transformadas em verdades oficiais do Estado brasileiro, ou você será punido", exemplifica Schüler.

Esse tipo de postura, também presente no Supremo Tribunal Federal, além de "mediocrizar o debate público", pode levar à "perda progressiva de legitimidade" das próprias instituições.

Leia abaixo a entrevista completa, concedida por escrito:

No Brasil e no mundo, estamos assistindo a um retrocesso na proteção das liberdades de expressão e de imprensa? O que tem contribuído para isso, na sua avaliação?

Fernando Schüler: Há muitos fatores. Um deles, sem dúvida, é a crescente presença das guerras culturais, na política. De um lado, os temas identitários; de outro, a pauta conservadora. Trata-se de um debate que extrapola em muito os limites convencionais da política, impróprios à geração de consensos e mesmo normas básicas de respeito e tolerância. A partir daí, a pauta passa a ser silenciar o adversário, e não reconhecer o seu direito à expressão.

O jornal The New York Times publicou uma extensa matéria, dias atrás, mostrando como mesmo uma organização tradicional na defesa da liberdade de expressão, como a American Civil Liberties Union, historicamente comprometida com os valores da Primeira Emenda [da Constituição americana, que proíbe o Congresso de criar leis que restrinjam a liberdade de expressão e de imprensa], hoje relativizou sua defesa do direito à expressão em troca da adesão a pautas progressistas.

A virada se deu com a ascensão de Trump e da chamada nova direita. Hoje em dia, o principal ataque à liberdade de expressão vem do chamado campo progressista. São as políticas de cancelamento, no mundo cultural, a vigilância identitária e do politicamente correto nas universidades, os banimentos de vozes conservadoras das redes sociais.

Bom exemplo recente foi a verdadeira caça às bruxas realizada contra Abigail Shrier, autora de "Irreversible Damage". Mesmo tendo sido escolhido livro do ano pela The Economist, o livro e a autora sofreram toda a sorte de restrições e agressões, unicamente por tocar em um tabu contemporâneo, que é a mudança de sexo precoce, entre adolescentes.

Se é verdade que essas liberdades têm sido restringidas, como isso afeta o debate público sobre questões sociais e políticas?

Fernando Schüler: A censura tende a mediocrizar o debate público. Isto não ocorre apenas por banir certas vozes do espaço público, mas por incutir o medo nos demais. Recentemente, a Corregedoria do Tribunal Superior Eleitoral determinou a desmonetização de contas de ativistas pró-voto impresso, no Brasil. E o fez dizendo que aquelas pessoas estavam faltando com a “verdade”. A fonte da verdade, por sua vez, eram as próprias posições do TSE. Ou seja: ou você está de acordo com as posições do TSE, transformadas em verdades oficiais do Estado brasileiro, ou você será punido.

Imagine-se agora o efeito que isto tem sobre milhares de pessoas que se comunicam na internet, sobre temas políticos em geral. O recado é: se você não concordar com tais e tais posições, ou passar de um certo “limite”, que nós arbitramos, você também perderá o seu ganha-pão, então tome cuidado. É evidente que a censura nunca é feita por alguém que diz estar censurando. Ela é sempre feita em nome de razões virtuosas, como a defesa das “verdade”, das “instituições”, da “democracia”. Mesmo da “liberdade”. Esta é uma regra: nem mesmo em regimes totalitários se praticava a censura reconhecendo-se que era disso que se tratava.

Hoje, no Brasil, o argumento genérico da “defesa da democracia e das instituições”, com direito a algumas variações, serve para a interdição de direitos individuais bastante concretos e protegidos, ao menos em tese, pela Constituição.

É possível perceber também algum prejuízo para o próprio avanço da ciência, uma vez que tais restrições, aparentemente, podem levar a inibições no âmbito acadêmico?

Fernando Schüler: É evidente que há prejuízos. Veja-se o caso das ciências políticas, área em que atuo. Pippa Norris, pesquisadora de Harvard, acaba de lançar um estudo feito com mais de 2.500 acadêmicos de mais de 100 países, na área das ciências políticas, investigando sobre as interferências da vigilância politicamente correta no seu trabalho acadêmico. O resultado mostrou que “a cultura do cancelamento não é um mito”, e pode afetar o resultado do trabalho dos pesquisadores caso suas conclusões estejam em contradição com a cultura hegemônica na qual trabalham.

Diria que hoje é virtualmente impossível, no mundo acadêmico, sustentar conclusões politicamente incorretas, que contrariem certos grupos organizados e com capacidade de mobilização política. Isto significa um problema bastante sério para o avanço da ciência, que demanda precisamente a contradição, a ausência de medo de indagar, levantar hipóteses, buscar a falseabilidade, na linguagem consagrada por [Karl] Popper.

As redes sociais ampliaram a participação das pessoas no debate público. O sr. considera que isso muda a democracia e como avalia a reação das instituições à emergência de críticas, nem sempre polidas ou muito qualificadas em termos argumentativos?

Fernando Schüler: Diria que a internet produz um efeito ambíguo na democracia. Por um lado, ela oferece um poder sem precedentes ao indivíduo. As pessoas dispõem de informação ilimitada sobre o que se passa no poder, e o custo de sua participação no processo político foi imensamente reduzido. Antes da internet, as pessoas dependiam das instituições, isto é, dos partidos, sindicatos, entidades e da mídia profissional para participar. E era preciso escrever uma coluna em algum jornal, ou editar e distribuir um panfleto por conta própria, para gerar algum efeito. Então não há comparação.

O ponto é que nos tornamos a democracia do excesso e da irrelevância. Jason Brennan divide os eleitores, em sua maioria, entre Hobbits e Hooligans. Hobbits são a grande maioria silenciosa, distante e desinteressada da política; hooligans são os novos militantes fanatizados, que aderem a um líder ou causa política como as torcidas organizadas fazem no futebol.

Pois bem, a nossa época assistiu a uma enorme conversão de Hobbits em Hooligans. Milhões de pessoas ingressaram ativamente no mundo do debate político, mas lidam com este mundo à moda da indústria do entretenimento. Plenos de certezas, à moda tribal, com baixa informação sobre o que dizem, e em regra adotando um estilo raivoso e improdutivo. Isto tudo tem contribuído para tornar o ambiente político tóxico e polarizado, com evidentes prejuízos à qualidade da democracia.

No Brasil, o Poder Judiciário sempre foi visto como a instituição garantidora da liberdade de expressão e de imprensa, mas, nos últimos anos, tomou a frente com atos de sua própria iniciativa considerados inibitórios (retirada de conteúdo ofensivo da internet, desmonetização de canais de influenciadores digitais, bem como prisões e buscas e apreensões contra críticos dos tribunais). Como o sr. avalia esse comportamento mais recente, especialmente vindo de ministros da Suprema Corte?

Fernando Schüler: Vejo com preocupação. Tenho grande respeito pela nossa Suprema Corte, e considero seus integrantes, em regra, pessoas de enorme capacidade intelectual. Então não entendo o suporte que juristas historicamente comprometidos com os direitos civis oferecem a uma agenda restritiva de direitos individuais - como não se via no Brasil desde a época do regime autoritário. Fake news não é crime, no Brasil, e arrisco dizer que toda a grande tradição moderna da liberdade de expressão, desde John Milton, com a Areopagítica, passando por James Madison, até John Stuart Mill, sempre se pautou pela ideia do “direito ao erro”.

Se as pessoas não podem errar, e isto implica por vezes em mentir, ou expressar opiniões que muitos irão considerar inaceitáveis, então simplesmente não há liberdade de expressão.

Me chamou a atenção uma fala recente do ministro Edson Fachin, dizendo que a defesa da ditadura não era coberta pelo direito à expressão. Imediatamente me lembrei que este foi um dos argumentos usados para cassar o registro do antigo PCB, em 1947. A verdade é que voltamos no tempo. Depois de muitos anos, o Supremo pratica censura prévia ao bloquear contas de cidadãos, com a justificativa vaga de que eles poderão vir a cometer crimes contra a democracia. A desmonetização das contas dos ativistas pró-voto impresso é escandalosa, visto que é uma censura feita em nome da “verdade”.

Então temos um tribunal que se toma como proprietário da verdade. Confesso jamais ter imaginado que chegaríamos a uma situação como esta. Então acho que o Supremo deveria fazer uma profunda reflexão sobre este tema. O risco disso tudo é a perda progressiva de legitimidade das instituições.

Isto também está lá, nas origens da liberdade de expressão. [John] Locke dizia que, em uma sociedade plural, a tolerância e aceitação dos divergentes é condição para a paz social. É condição do contrato político. Acho que o Supremo deveria corrigir isto, e tem condições de fazê-lo. E seria uma enorme contribuição para a civilização brasileira.

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