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Universidades e organizadores de concursos públicos mantêm bancas para verificação de negros e pardos autodeclarados.
Universidades e organizadores de concursos públicos mantêm bancas para verificação de negros e pardos autodeclarados.| Foto: Jonathan Campos / Arquivo Gazeta do Povo

O sistema de cotas raciais no Brasil, cercado por amplos debates e pontos de vista diversos, pode ganhar mais um capítulo. Tramita na Câmara dos Deputados o projeto de lei (PL) 461/2020, de autoria do deputado Marcel van Hattem (Novo/RS), que impede a realização de comissões de heteroidentificação – avaliação por parte de uma banca para confirmar se a pessoa é, de fato, preta ou parda – em concursos públicos e no ingresso em instituições públicas de ensino.

O projeto apresentado altera duas leis específicas sobre cotas raciais: a Lei nº 12.711/2012, que se refere ao ingresso em instituições de ensino públicas federais, e a Lei nº 12.990/2014, que trata de concursos públicos no âmbito federal, isentando os vestibulandos ou postulantes a um cargo público, respectivamente, a serem avaliados por terceiros para confirmar a veracidade da autodeclaração prévia do cotista.

“O procedimento de heteroidentificação racial reforça justamente aquilo que a lei dizia pretender eliminar: o preconceito racial. Submeter alguém a um exame para provar que é negro é humilhante, vexatório e imoral, além de violar o princípio constitucional fundamental da Dignidade da Pessoa Humana, sobretudo em um país miscigenado como o Brasil, em que mais de 56% da população se declara preta ou parda”, argumenta o deputado no projeto.

Hattem afirma que existem inúmeros casos relatados pela imprensa dessas situações vexatórias, mas há muitas mais que não chegam ao público porque a pessoa se sente humilhada. “Se a lei permite que ‘tribunais raciais’ humilhem uma pessoa, é preciso revê-la”, ressalta.

Como exemplo de controvérsia nas comissões de heteroidentificação, o deputado cita um episódio ocorrido na Universidade de Brasília (UnB). Antes de entrarem em vigor as leis sobre cotas raciais em âmbito federal, algumas universidades adotaram esses sistemas previamente, como fez a UnB em 2004. Três anos depois, um dos primeiros casos que ganhou repercussão nacional sobre o tema foi o dos irmãos gêmeos univitelinos (idênticos) Alan e Alex Teixeira da Cunha. Enquanto o primeiro foi aceito pelos critérios raciais, o segundo foi reprovado. Após entrar com um recurso, Alex conseguiu que a decisão fosse revertida e ingressou na instituição por meio das cotas raciais como pardo.

Para o deputado federal, esse tipo de situação acontece com grande frequência em diversas instituições pelo Brasil, mostrando que há falhas no mecanismo. “Diferenciar uma pessoa pela cor da pele, pelo tipo de nariz ou cabelo, por ter lábios de determinada espessura, dentes oblíquos ou determinado formato de maxilar é discriminatório e preconceituoso. Esse sistema, que avalia a autodeclaração por meio da aparência física, leva a uma humilhação perversa. O próprio conceito de autodeclaração já é suficiente”.

Mas o projeto causa controvérsia, já que as comissões têm sido utilizadas como forma de coibir fraudes, tentando evitar que pessoas que não são pretas ou pardas se beneficiem de vagas destinadas a essa parcela da população por meio da autodeclaração.

O que diz a lei atualmente?

No processo de admissão para estudar em uma universidade ou concorrer a um cargo público, com base em cotas raciais, existem duas formas distintas de identificação: a autodeclaração do candidato e a identificação por terceiros. Enquanto a primeira forma encontra base legal nas leis de cotas raciais de 2012 e 2014, a segunda encontra regulamentação na Portaria Normativa n. 4, de 2018, do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão, e na Ação Declaratória De Constitucionalidade (ADC) 41, Supremo Tribunal Federal. Na ADC, afirma-se que “a fim de garantir a efetividade da política em questão, também é constitucional a instituição de mecanismos para evitar fraudes pelos candidatos. É legítima a utilização, além da autodeclaração, de critérios subsidiários de heteroidentificação, desde que respeitada a dignidade da pessoa humana e garantidos o contraditório e a ampla defesa”.

Para o desembargador federal do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, Roger Raupp Rios, o STF referendou o mecanismo das comissões de aferição da autodeclaração étnico-racial para que essas políticas alcancem seus destinatários e que não sejam utilizadas por "indivíduos que não experimentem discriminação racial".

“Se a Administração Pública, o Legislativo ou o Judiciário ignorarem os objetivos e os destinatários das ações afirmativas e não levarem a sério quem são seus destinatários, aí sim teremos uma grave injustiça racial. São necessários, portanto, mecanismos que cumpram as funções que as comissões cumprem. Simplesmente retirar tais mecanismos, sem colocar melhores e mais efetivos em seu lugar, que considerem adequadamente o que é o racismo, como ele funciona, quem são os destinatários das políticas públicas, gera efeitos contrários, deixando aberta a porta para que pessoas que não pertencem a grupos discriminados alcancem benefícios indevidos”, afirma o desembargador.

Como são formadas as comissões

As comissões de heteroidentificação devem ser compostas por cidadãos brasileiros de reputação ilibada, com diversidade de gênero, cor e naturalidade, preferencialmente com formação nos temas da promoção da igualdade racial e do enfrentamento ao racismo. Além disso, há procedimentos a serem seguidos, como filmagem e gravação das avaliações para uso em eventuais recursos interpostos pelos candidatos. O objetivo dos critérios – estabelecidos na Portaria Normativa nº 4/2018, que regulamenta o procedimento de heteroidentificação complementar à autodeclaração dos candidatos pretos e pardos – é favorecer uma percepção mais adequada de quem são os reais beneficiários das cotas raciais.

Para o desembargador Roger Raupp Rios, não é adequado falar, quanto a essas bancas, em “tribunais raciais”, que estariam julgando quem é ou não é negro. “O que as comissões fazem é aferir se a pessoa que se apresenta como destinatária da ação afirmativa efetivamente traz consigo as características que desencadeiam a discriminação na comunidade onde vivem. É preciso ter clareza de quem são esses indivíduos, a quem essas políticas antidiscriminatórias se destinam, e aqui entra a tarefa das comissões de aferição da autodeclaração”, observa.

Dois lados

Alguns tribunais têm dado decisões favoráveis a cotistas que se sentiram injustiçados após a avaliação das bancas. Um caso recente ocorreu na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Após passar pela comissão de heteroidentificação no dia 27 de janeiro deste ano, Aline Lopes, que prestou vestibular para o curso de Direito se autodeclarando parda, teve sua classificação racial negada. A família decidiu entrar na justiça para reverter a decisão, e a Segunda Vara Federal de Campo Grande concedeu tutela antecipada, garantindo à jovem a matrícula no curso.

O contrário, no entanto, também tem ocorrido, com os tribunais dando ganho de causa para as universidades e corroborando a decisão das bancas.

Um dos aspectos centrais na discussão do assunto é a dificuldade em definir de forma perfeitamente objetiva a cor/raça de uma pessoa. A classificação racial utilizada nas bancas segue os padrões instituídos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que considera cinco raças no Brasil: branca, preta, parda, indígena ou amarela.

De um lado, existem eventuais falhas ou ocorrências de subjetividade nas avaliações e o constrangimento de candidatos que essas bancas podem causar. Do outro, porém, é preciso levar em conta a importância das comissões do ponto de vista de coibir fraudes. Esses devem ser os principais pontos de discussão durante a votação do PL 461/2020.

Batalha será difícil

Quanto à aprovação do projeto de lei, o deputado federal Marcel van Hattem vem conversando com colegas na Câmara dos Deputados sobre o mérito do PL para tentar estabelecer maioria favorável. O parlamentar também é a favor do fim das cotas raciais, de modo a instituir apenas critérios socioeconômicos para beneficiar pessoas em maior vulnerabilidade.

A batalha, porém, será difícil. Em 13 de abril, o projeto foi apensado a outros três, dois deles que pedem a reserva de 20% das vagas para negros em concursos públicos (os PLs 1.866/1999 e 7.485/2014), e outro que defende uma determinação contrária, o fim das cotas no serviço público, o PL 7.225/2014, do deputado Rogério Peninha Mendonça - PMDB/SC.

Todos os projetos estão aguardando posição do relator na Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) e, se nada mudar com a pandemia, o relator designado é o deputado Márcio Jerry (PCdoB-MA), favorável a cotas no serviço público.

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