"Por causa de um pente, Curitiba quase perde a cabeça". A manchete da revista O Cruzeiro dá uma boa ideia da rebelião popular sem precedentes que sacudiu o Centro da capital e completa 50 anos em dezembro a Guerra do Pente. A compra de um pente na loja de um imigrante estabelecido na Praça Tiradentes foi o estopim para três dias de quebra-quebra e violência, que teriam deixado um saldo de dois mortos, segundo jornais da época informação não confirmada pelos registros da polícia e do Instituto Médico-Legal. O Exército interveio no caso, que teve repercussão nacional.
No fim da tarde de 8 de dezembro de 1959, o subtetente Antônio Tavares, da Polícia Militar, entrou no Bazar Centenário para comprar um pente e exigiu a nota fiscal de compra, no valor de 15 cruzeiros. Na época, o governo Moisés Lupion promovia uma campanha chamada Seu Talão Vale 1 Milhão, para aumentar a arrecadação tributária do estado. O consumidor que reunisse notas fiscais no valor de Cr$ 3 mil poderia trocá-las por um cupom que daria direito ao sorteiro de Cr$ 1 milhão.
O dono da loja, o libanês Ahmed Najar, recusou-se a dar a nota, em razão do valor irrisório. Pela legislação da época, os comerciantes não eram obrigados a fornecer a nota fiscal abaixo de determinado valor, explica o professor Carlos Roberto Antunes dos Santos, do Departamento de História da Universidade Federal do Paraná, autor de uma monografia sobre o caso.
Tavares e Najar começaram a brigar. Na confusão, o pente foi quebrado assim como a perna do subtenente, retirado da loja por seguranças. Naquela época, a Tiradentes era um dos principais terminais de embarque e desembarque do transporte coletivo de Curitiba, e pessoas que circulavam pelo local presenciaram a cena, solidarizando-se com o policial e dando o pontapé inicial no conflito. Em três dias de distúrbios, cerca de 120 lojas foram depredadas. Em algumas delas, a destruição foi total.
Antunes, que prepara um livro sovre a Guerra do Pente, com lançamento previsto para o fim do ano, ouviu pessoas que testemunharam o confronto ou até mesmo participaram ativamente dele e consultou arquivos da Biblioteca Pública, dos jornais, da Câmara Municipal e da Assembleia Legislativa. "Considero esse evento não como uma manifestação espasmódica da população curitibana, nem como alguma coisa exótica que teve uma motivação instantânea", analisa. "Acho que é uma expressão instantânea de significados sociais. Analisando a conjuntura internacional, nacional, regional, local, a situação socioeconômica da população, passamos a entender a Guerra do Pente dentro de um contexto", acrescenta.
Insatisfação
E o contexto era o período de euforia do governo de Juscelino Kubitschek, marcado por um surto desenvolvimentista, mas também pela crescente dívida externa e por uma inflação em alta. No Paraná, a administração Lupion enfrentava denúncias de corrupção e de grilagem de terras. A insatisfação popular só precisava de um pretexto para explodir, e a gota dágua teve um componente étnico, por envolver a disputa com um comerciante vindo do Oriente Médio. "Na mesma época, em Recife, também houve uma manifestação que tinha fatores étnicos. Isso mostra que o fenôneno não foi algo isolado ocorrido em Curitiba", explica Antunes. Os alvos da Guerra do Pente foram comerciantes árabes, judeus, italianos e brasileiros, mas todos conhecidos pejorativamente como "turcos". "Na mesma época o Emir Calluf estava sendo ordenado padre", lembra o pesquisador. "Pessoas foram até a casa da família e apedrejaram vidros", acrescenta.
A baderna impediu o desfile dos boinas-azuis do Batalhão Suez, que retronavam ao Brasil, vindos do Egito, e marchariam da estação ferroviária (onde hoje funciona o Shopping Estação) até a Praça Generoso Marques. "Quando souberam que haveria manifestação contrária, porque a campanha da ONU ocorreu em uma região árabe, os boinas-azuis tiveram de transferir o desfile", lembra o professor.
Contradições
Para o professor Antunes, a turba não tinha ideologia específica. Apesar do caráter social, o movimento tinha contradições. Embora o objetivo principal fosse atingir pessoas consideradas mais ricas e poderosas, os rebeldes também quebravam carrinhos de humildes pipoqueiros. "Dom Manoel da Silveira dElboux, que era o arcebispo, dizia em seu sermão na catedral para os pais conclamarem os estudantes a manter a ordem e que era necessário que Curitiba voltasse a ser a cidade sorriso, como a capital era conhecida no país", diz Antunes.
Segundo o professor, na Curitiba no século 20 as manifestações de rua ou eram manifestações politico-partidárias ou eram manifestações sindicais, mas não nas dimensões que a Guerra do Pente assumiu. Para Antunes, a compreensão do episódio passa pelo estudo do comportamento das massas. "Você puxa pra cá, puxa pra lá, mas essa massa, por mais aleatória que seja, tem um sentido", afirma. "Quando entrevistei o Ahmed Najar, ele disse o seguinte: Aquela turba que quebrava tudo pra lá e pra cá me lembrava o vento batendo num trigal", afirma o pesquisador, para quem a Guerra do Pente deixou uma forte herança no que diz respeito a problemas sociais, bastante expressivos. "A revista Panorama disse o seguinte: A Guerra do Pente acabou até o dia em que outro protesto lance o povo às ruas para externar seu descontentamento principalmente contra a carestia e a corrupção", completa.