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Liderança indesejável

Ano após ano, pesquisas do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) confirmam o Brasil à frente da desigualdade no mundo, vice-líder em concentração de renda numa lista de 130 países. No ranking dos piores, só é melhor do que Serra Leoa, na África. A medição é feita a partir do índice de desenvolvimento humano da Organização das Nações Unidas (ONU), mas a confirmação está nas ruas para quem quiser ver. Pelos dados mais recentes, de 2004, o Brasil tem 52,5 milhões de pobres, vivendo com menos de meio salário mínimo por mês, ou R$ 190. Do total, 19,8 milhões estão em condições ainda piores, na vala da indigência, com renda mensal inferior a um quarto de salário mínimo, ou R$ 95, equivalente a US$ 40.

Na comparação com o ano anterior, o Ipea, órgão vinculado ao Ministério do Planejamento, aponta que 4,8 milhões de pessoas conseguiram subir um degrau no fosso da desigualdade social, deixando a miséria para subir ao nível da pobreza. É como se todos os habitantes da Noruega, sem exceção, saíssem dos subterrâneos dos miseráveis para ascender aos porões dos pobres. Essa legião de desafortunados corresponde às populações somadas da Dinamarca, Suécia, Bélgica, Holanda, Suíça e Finlândia.

Terra deu origem às desigualdades

Para compreender a concentração de renda que estraçalha o Brasil em classes e sub-classes é preciso prospectar a estrutura da nossa sociedade, trabalho ao qual o geógrafo e escritor Nelson Bacic Olic se dedica há três décadas.

As desigualdades se perpetuam desde o Brasil Colonial, época em que o controle de terras pelos latifundiários e o trabalho escravo deram origem a uma rígida estratificação de classes sociais. Olic lamenta, mas nem o fim da escravatura, em 1888, acabou com o monopólio da terra, mantida como fonte de poder econômico e principal meio de produção até as décadas inaugurais do século 20. Chegamos então às bases da atual concentração de renda, delineadas pelo abismo social entre a massa de trabalhadores e a pequena elite de grandes proprietários rurais.

As grandes transformações pelas quais o Brasil passou ao longo do século 20 não foram capazes de reduzir as diferenças entre ricos e pobres. A agricultura deu vez à indústria como principal atividade econômica, a população cresceu e se urbanizou, a sociedade se modernizou, mas a concentração de renda aumentou porque a maioria da população não teve acesso aos bens duráveis. "À medida que a sociedade incorpora novas realidades, criam-se novas necessidades (acesso à educação, ao trabalho, à renda, à moradia, à informação) que vão além da simples subsistência", explica Olic. Segundo ele, as transformações mais recentes cristalizaram dois tipos de exclusão social, a "antiga" e outra "recente".

O primeiro tipo, explica o geógrafo, alcança os grupos sociais que historicamente sempre estiveram excluídos; o segundo atinge os que em algum momento da vida estiveram socialmente incluídos. O modelo de desenvolvimento em vigor é duplamente perverso porque sustenta os velhos problemas e ainda fomenta as características excludentes da sociedade pós-moderna, como o desemprego, o preconceito e a apartação social. Esse desarranjo socioeconômico é mais comum às regiões Sudeste e Sul e reflete o modelo de industrialização instaurado no país, conforme revela o Atlas da Exclusão Social, trabalho de 16 especialistas coordenado pelo economista Marcio Pochmann.

Há mais de quatro décadas o paraibano Celso Furtado, marco do pensamento nacional, alertava para o engano de se imaginar que o crescimento econômico gerado pela modernização do país fosse o bastante para promover a inclusão social e diminuir as desigualdades. Não foi ouvido. As escolhas governamentais que se sucederam desde a metade do século passado privilegiaram um modelo de desenvolvimento baseado em padrões exógenos e dependente do capital estrangeiro. E polarizador, na medida em que tinha numa ponta a grande indústria e no outro o latifúndio. O resultado foi o distanciamento entre as áreas rural e urbana, com o êxodo rural gerando uma explosão populacional nos grandes centros urbanos. (MK)

Nadir Mendes da Silva nunca ouviu falar de Joseph Safra, tampouco seja possível que ele alguma vez tenha ouvido falar dela. Os dois vivem no mesmo país, mas não no mesmo mundo. Nadir tem 48 anos, Safra tem 68. Ela é catadora de papel em Curitiba, ele é banqueiro em São Paulo. Nadir mora num decrépito casebre de 18 metros quadrados na paupérrima Vila Pantanal, Safra mora numa mansão de 11 mil metros quadrados, 130 cômodos e nove elevadores no elegante bairro Morumbi. O banqueiro tem um patrimônio de R$ 6 bilhões, a sucateira ganha R$ 100 por mês. Iguais a Joseph Safra o Brasil tem só 20, iguais a Nadir são 52,5 milhões.

O país nunca soube lidar muito bem com as diferenças, daí a inexperiência em cuidar de sua gente. A oitava economia mundial é uma tragédia expressa em números, em que poucos ganham muito e muitos ganham pouco. Um lugar onde Nadir é regra e Safra é exceção. São pólos opostos do estrato social moldado pela concentração de renda. A julgar pelos indicadores de desenvolvimento do Banco Mundial, o Brasil está fragmentado em cinco grupos sociais: os miseráveis, que somam 20 milhões de pessoas; os pobres, 32 milhões; os remediados, 60 milhões; a classe média, 70 milhões; e os ricos, 2 milhões. Acima de todos eles ficam os milionários e mais acima ainda, a fina flor do poder econômico: os bilionários.

Joseph Safra encabeça o clube de bilionários brasileiros, onde só cabem 20 pelo ranking da revista Forbes. Já a elite milionária tem 130 mil abonados, conforme a consultoria The Boston Consulting Group (BCG). Mas para cada milionário, aquele afortunado que fatura mais de US$ 1 milhão por ano, existem outros 400 mil brasileiros pobres ou miseráveis que sobrevivem num nível de subsistência fisiológica com menos de US$ 45 por mês. Nenhum outro país das Américas foi capaz de produzir tantos miseráveis. Gerar desigualdades parece ser a especialidade brasileira. Se de um lado nossos pobres são mais pobres, de outro nossos ricos são mais ricos.

A BCG cruzou seus dados com os da Receita Federal e conclui: os brasileiros são os mais ricos da América Latina. A fortuna desta elite cresce a uma taxa de 5,7% ao ano e soma US$ 573 bilhões – ou US$ 4,4 milhões cada um –, valor equivalente a mais da metade do Produto Interno Bruto (PIB) nacional, que é a soma de toda a riqueza produzida pelo país num ano. Entre 2000 e 2005, período mais recente da pesquisa, o Brasil saltou da 18ª posição para a 14ª no ranking dos países com maior número de milionários, deixando para trás a Índia e a Rússia. Nesta conta entram os bens disponíveis em aplicações e depósitos bancários no país e no exterior.

A expansão destas fortunas se deve à estabilização econômica, ao controle da inflação e à equação das dívidas nacionais, o que deixou os brasileiros confiantes para aplicar suas reservas. Bom para o mercado financeiro, que nunca esteve tão bem. Outra ajuda veio do enfraquecimento do dólar e da alta dos preços das commodities, principalmente os grãos e os minérios. O setor do agronegócio foi um dos que mais geraram milionários, principalmente no Centro-Oeste brasileiro. A Receita Federal identificou que nessa região o número dos que ganham mais de R$ 1 milhão por ano mais do que dobrou entre 2000 e 2003, chegando a 685.

Juntando os outros 10% mais endinheirados – não necessariamente milionários, mas ao menos ricos –, esta minoria tem nas mãos 75,4% da riqueza nacional, conforme o estudo Os Ricos no Brasil, publicado no ano passado por um grupo de 16 especialistas liderado pelo economista Marcio Pochmann. Esses abonados são em geral altos dirigentes do setor privado que atuam principalmente no setor de serviços e vivem em condomínios de luxo – ilhas paradisíacas "livres de todo mal" – nas capitais dos estados brasileiros. São Paulo é a cidade que melhor exemplifica a forma como os abastados se adaptaram bem às mudanças econômicas.

São Paulo desponta não só como a maior megalópole da América do Sul, é também o establishment sul-americano. Seu polo fabril desbotou junto com o restante do setor industrial, perdendo força na economia nacional nas últimas décadas, mas ainda assim as riquezas não a abandonaram. O setor bancário se sobrepôs às indústrias e a capital paulista absorveu outras praças financeiras, como as do Rio de Janeiro e de Belo Horizonte. Entre os paulistanos, a renda mensal das 76.738 famílias mais ricas é de R$ 36,6 mil, mais do que o dobro da renda média dos 1% mais ricos do Brasil, que é de R$ 14,6 mil.

Pelos estudos coordenados por Pochmann, as famílias ricas guardam 23,1% da renda para aumentar o patrimônio, enquanto as pobres conseguem no máximo 4,5%. Nadir, a moradora da Vila Pantanal, nem isso consegue. Ela precisaria deixar de comer durante 2 anos e 8 meses para juntar a mesma quantia que sobra para uma família rica num único mês. A renda dela só chega a R$ 100 por mês graças à ajuda do filho, Paulo da Silva Prates, de 34 anos, que junta papel nas ruas para ela fazer a reciclagem e vender ao atravessador que compra o material dos catadores da vila. Se tem papel, eles comem; se não tem, a comida fica para o dia seguinte. "Quem trabalha no papel não passa uma vida boa", constata.

Não era esta a vida planejada ao trocar os canaviais de São Paulo pela periferia de Curitiba. Nadir viveu um ano com o marido e os cinco filhos no bairro Uberaba, mas a situação apertou e tiveram de se mudar para um barraco na Vila Pantanal. O lugar é um grande banhado afastado da cidade que nos últimos 15 anos foi sendo aterrado por pessoas desesperadas em busca de um teto. Hoje a vila abriga mais de 700 famílias, mas o aglomerado de casebres não pára de crescer porque ainda tem gente fazendo o aterro do charco para vender terrenos de 200 metros quadrados a R$ 2 mil.

Nadir mora com Paulo numa meia-água de 6 metros por 3, feita de restos de construção. São dois cômodos apenas. No quarto só tem os colchões velhos de mãe e filho, na sala-cozinha estão dois sofás, uma mesa e dois armários de compensado em decomposição. Nada ali é de primeira mão. O único luxo do lugar é um aparelho de televisão que já tem uns 15 anos. A frente da casa está repleta de entulho de construção, o que nessas condições é bom negócio para todos dali. O lixo é espalhado ao longo das vielas e ajuda a evitar os alagamentos tão freqüentes em dias de chuva.

Nadir chegou ali há nove anos, e há cinco se separou do marido. "Num güentei bebedera", diz. Um ano antes a cachaça havia sido motivo da separação de Paulo. A mulher não suportou os porres dele e voltou para São Paulo com os filhos pequenos. Nadir foi resistindo a todos os dissabores até os acontecimentos do ano passado. Aí ela esmoreceu. Foi quando perdeu o caçula Gilmar, aos 19 anos, o filho que mais ajudava no sustento da casa recolhendo papelão na rua. Gilmar se suicidou ingerindo veneno, no dia 7 de maio de 2006. "Foi probrema de muié", diz a mãe. "Bestage de uma pessoa, né?"

O único sonho alcançável para Nadir a esta altura da vida é incluir-se no grupo dos "afortunados" da Vila Pantanal, aqueles que ganham uma cesta básica mensal da Fundação de Ação Social (FAS), entidade vinculada à prefeitura de Curitiba. "Se tiver arroz e feijão já tá bom".

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