
Barreado
Entre mamelucos e fandangueiros
Os mamelucos, ao entregar os frutos da colheita na casa dos patrões, eram recebidos com um guisado feito com carne de segunda. Habituados a se alimentar de pescados, se animaram a repetir a receita nos sítios onde moravam e onde tinham uma variedade de temperos plantados. Como o caldo evaporava logo, primeiro fecharam as panelas com folhas de bananeira tostadas e, mais tarde, barreando em volta da tampa com uma mistura de fubá, água e cinzas tiradas dos fornos à lenha, de onde vem o nome barreado.
O tempo de preparo também foi adaptado à rotina dos cozinheiros. O barreado ganhou adeptos entre os foliões dos entrudos (festas pré-carnavalescas) e nos bailes de fandango. Cozinhar a carne com antecedência permitia festejar noite adentro e servir a refeição substanciosa quando as energias se esgotassem.
Barreado que é barreado não se come sobre o arroz, nem com pirão pronto. A farinha tem de ser misturada ao caldo espesso no prato, à beira da mesa, e escaldada com o garfo em pé para ficar no ponto. O cozimento demora oito horas e outras oito horas de descanso são necessárias até que o cominho, o louro e a pimenta-do-reino fixem seu sabor e a carne desfiada quase se desmanche. Foi assim que o prato típico de Morretes conquistou o paladar dos senhores de engenho e seus empregados, e sobreviveu no livro de receitas das mulheres das famílias do Litoral paranaense até hoje.Laurice Salomão De Bona conserva a receita que fez a fama de sua irmã Helmosa Salomão Richter, falecida em 1999, como a dona do melhor barreado da região. A família é de origem libanesa, mas Helmosa aprendeu com os velhos fandangueiros a preparar o prato que foi inventado por mamelucos (filhos de portugueses com índios) envolvidos no cultivo da erva-mate nos engenhos dos Campos Gerais. A receita foi trazida para o Litoral do Paraná, onde havia diversas fábricas de beneficiamento da erva.Helmosa passou a receita e emprestou suas panelas a restaurantes de Morretes que hoje alimentam os até 4 mil turistas que aparecem nos fins de semana. No quintal de casa, mantinha um espaço batizado de Recanto do Folclore, onde preparava o barreado para visitantes, entre eles, ilustres famílias curitibanas. Muitas vezes, essas a convidavam a ir à capital servir sua especialidade. Helmosa fazia tudo em sua própria cozinha e seguia viagem com seus panelões.
O mais lendário dos convites que recebeu foi nos primeiros anos da década de 1980. O destino era a Granja do Torto, em Brasília, onde o carro-chefe da culinária morretense seria degustado pelo então presidente José Sarney, ministros, governadores e mais um público de 1,5 mil pessoas. "Fizemos panelas de mais de 50 quilos de carne. Íamos de avião, mas os velhinhos do fandango ficaram com medo. Enfrentamos 24 horas de ônibus. Um caminhão refrigerado enorme levou os panelões, oito ou dez deles", lembra Laurice, que, assim como a irmã, foi secretária da Cultura de Morretes. Durante a comilança, as duas ficaram a postos, cuidando pessoalmente de misturar a farinha à carne. "Eu escaldo, não deixo ninguém escaldar!", diz Laurice, num tom que ninguém ousaria contrariá-la.
A tradição do barreado não é outra, senão essa reunião alegre de uma pequena multidão em que há fartura à mesa. Nos restaurantes de Morretes, o prato encontrou chefes de cozinha à altura para prepará-lo. Caprichar nos temperos e escolher uma carne magra são duas dicas preciosas sugeridas por Laurice.