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Pode-se admitir que há base jurídica para anulação do júri do massacre do Carandiru – o que é bastante controverso –, mas não há justificativa plausível para um magistrado tentar reescrever a história brasileira a partir do seu gabinete.

Na terça-feira, o Tribunal de Justiça de São Paulo anulou os julgamentos de 74 policiais, condenados pela morte de 111 detentos na Casa de Detenção do Carandiru. Segundo juristas, a decisão da corte é inaceitável no direito penal, já que a decisão do júri é soberana. Se o júri errou, há um caminho: remarcar o julgamento. O que não pode é a simples e pura absolvição, desconsiderando todos os trâmites legais e processuais do caso.

O relator do caso, desembargador Ivan Sartori, não apenas desconsiderou o júri, mas o direito à memória e à verdade. No seu voto, descaracterizou a tragédia brasileira de 1992. “Não houve massacre. Houve obediência hierárquica. Houve legítima defesa. Houve estrito cumprimento do dever legal”, afirmou. Ele reconhece que dentre os acusados, “possa ter existido algum assassino”.

O juiz, ao analisar o caso, deveria ter verificado que a perícia mostrou que 90% das mortes ocorridas no terceiro pavilhão do presídio foram decorrentes de tiros na cabeça. Quem dá tiros na cabeça não está se defendendo legitimamente. Quem dá tiros na cabeça não está no cumprimento estrito do dever legal.

Além de ignorar os fatos narrados, o desembargador desdenha das críticas que sabe que receberia. “Nós julgadores não podemos nos influenciar por imprensa, ou por quem se diz dos direitos humanos. A minha consciência está aqui. Sou o julgador. Quem manda na minha consciência sou eu mesmo”, sentenciou.

O desembargador incorre em um erro comum cometido por políticos e malfeitores. Reclamar da imprensa. Quem o critica não é a imprensa, mas juristas especializados em Direito Penal. Quem o critica são promotores. Sobreviventes do massacre.

O argumento jurídico do desembargador é de que não houve individualização das condutas, então os policiais não poderiam ter sido condenados. Mas foi o Tribunal do Júri que os condenou, então a decisão não poderia ser reformada. E se os jurados cometeram erros? O desembargador deveria então remarcar um julgamento, no Tribunal do Júri, pois se trata de crime contra a vida.

Ao absolver os acusados e desdenhar das futuras críticas, o desembargador mostrou a pior face do Judiciário, aquela que se acha superior a tudo e a todos. A indignação aumenta quando se sabe que Ivan Sartori foi o mesmo que decidiu encarcerar um homem que roubou cinco salames de um supermercado. Em seu voto, declarou que a pessoa é “um infrator contumaz, que faz do crime meio de vida”, por ser reincidente. Afirmou ainda que “reconhecer sua incidência em larga escala seria o mesmo que incentivar a prática de pequenos furtos, com o escudo do Judiciário, o que não pode ser tolerado”.

O homem dos salames é reincidente e isso não pode ser tolerado. Os policiais do Carandiru – em que pese a ordem hierárquica e a tensão vivenciada na ocasião – metralharam pessoas. Se isso pode ou não ser tolerado, é um corpo de jurados que vai dizer, não uma canetada de um desembargador.

Intolerável

Do ponto de vista político, o massacre do Carandiru foi intolerável e o então governador de São Paulo à época, Luiz Antônio Fleury Filho, pagou caro. Durante os primeiros meses de Itamar Franco na interinidade do Planalto, em 1992, Fleury era chamado constantemente a Brasília, para chancelar a nomeação para os ministérios. Em maio daquele ano, seu nome era cogitado para concorrer à presidência da República em 1994. Após o massacre do Carandiru, ficou um tempo fora da política, voltou em 1999 como deputado federal e, em baixa, deixou os cargos públicos.

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