• Carregando...
Márcio Thomaz Bastos lembrou que os réus julgados pelo STF não podem recorrer das decisões | Fábio Rodrigues Pozzebom/ABr
Márcio Thomaz Bastos lembrou que os réus julgados pelo STF não podem recorrer das decisões| Foto: Fábio Rodrigues Pozzebom/ABr

Princípios jurídicos

O que significam os termos usados na defesa do desmembramento do caso do mensalão:

Foro privilegiado

Cabe ao STF julgar, nas infrações penais comuns, o presidente da República, o vice-presidente, os membros do Congresso Nacional, os ministros do próprio Supremo e o procurador-geral da República. Justifica-se o "privilégio" pela necessidade de se preservar as funções e instituições e não os ocupantes dos cargos para que não se promovam processos judiciais sem base jurídica, por motivos políticos, que possam afetar a estabilidade das instituições.

Juiz natural

Esse princípio garante que não haverá juízo ou tribunal de exceção e que somente os juizes, tribunais e órgãos jurisdicionais previstos na Constituição se identificam ao juiz natural. Deve-se ter o respeito às regras objetivas de determinação de competência para que não seja afetada a independência e a imparcialidade do órgão julgador.

Duplo grau de jurisdição

É a possibilidade do reexame da decisão judicial por órgão hierarquicamente superior. Quando o processo corre diretamente no Supremo, não há instância superior para se recorrer.

"Sobe e desce"

Competência dos tribunais é usada como estratégia da defesa

A discussão da competência para julgar leva a um "sobe e desce" de processos entre instâncias e gera atraso para o fim do julgamento. A tentativa no julgamento do mensalão de questionar a competência do Supremo para julgar todos os réus também foi feita em casos no Paraná, como o dos Gafanhotos (acusação de desvio de salários de funcionários do Legislativo que teriam ocorrido entre 2001 e 2004) e o da ex-empregada do senador Roberto Requião, que teria sido funcionária fantasma na Assembleia Legislativa do Paraná nos anos 2000 e 2001.

No caso da ex-empregada, a defesa questionou a competência do Ministério Público Federal para investigar e denunciar. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) disse que o caso deveria tramitar no Tribunal de Justiça do Paraná e não no Tribunal Regional Federal, no qual corriam pelo fato de envolvidos serem deputados estaduais, que tinham prerrogativa de foro.

No caso Gafanhotos, a defesa pediu a tramitação no Supremo, mas o STF manteve, depois de dois anos com a investigação parada, a continuidade pela Polícia Federal e pelo MPF. A estratégia da defesa pode ser gerar benefícios com a demora processual. "Ao retornar para o primeiro grau, muitas condenações prescrevem. Não é uma estratégia ilegítima, devendo ser considerada dentro da ampla defesa, utilizando os vários caminhos que sejam benéficos para o acusado", diz o professor de Direito Penal Adel El Tasse.

A questão levantada na abertura do julgamento do caso do mensalão sobre a competência do Supremo Tribunal Federal (STF) para julgar todos os 38 réus do caso mostra a situação de acúmulo de processos no STF. O tribunal, que deveria cuidar exclusivamente de questões de ofensa à Constituição, em decorrência do foro privilegiado é o único que pode julgar 608 autoridades por crimes comuns, o que tem gerado um acúmulo de casos que não deveriam ser de sua competência.

ARTIGOS: Leia dois artigos analisando os primeiros dias do julgamento do mensalão

Segundo a Constituição, no artigo 102, cabe ao STF julgar, nas infrações penais comuns, o presidente da República, o vice-presidente, os membros do Congresso Nacional (81 senadores e 513 deputados), ministros do próprio Supremo (onze) e o procurador-geral da República. São 608 autoridades nessa condição e, como geralmente denúncias contra eles envolvem diversos outros réus, todos são atraídos para o STF. No caso do mensalão, três réus têm prerrogativa de foro, os deputados federais João Paulo Cunha (PT-SP), Pedro Henry (PP-MT) e Valdemar Costa Neto (PR-SP). Os outros 35 foram "arrastados" para o mesmo julgamento pela conexão que têm com a mesma acusação de crime.

O advogado Márcio Thomaz Bastos, que defende um deles, José Roberto Salgado, ex-executivo do Banco Rural, questionou o fato de essa atração de todos no mesmo julgamento privar os réus comuns de dois direitos fundamentais: o de ser julgado por seu juiz natural e o de poder recorrer das decisões, ou seja, a garantia do chamado "duplo grau de jurisdição". "O Supremo é volátil nessa decisão e isso permite que se provoque o assunto. Se o Supremo tivesse uma posição marcada sobre o assunto, esse tema não teria tanta importância", comenta Luiz Guilherme Arcaro Conci, professor da Faculdade de Direito da PUC de São Paulo.

Para o professor de Direito Penal Adel El Tasse, nesse caso não havia dúvida da conexão, apesar dos bons argumentos contrários. "É preciso entender que o foro não é um privilégio concedido a alguém e sim a concentração para a otimização do julgamento", diz. Ele exemplifica em caso de deputados federais que, se precisarem se defender em seus estados de acusações sofridas, necessitariam se ausentar muitas vezes do Congresso e prejudicar a atuação parlamentar.

Além da dúvida sobre o direito à ampla defesa, esse acúmulo de casos causa problemas de estrutura do STF. "O Supremo não tem a estrutura de um juiz de primeiro grau. Ele delega a instrução a juízes federais, mas isso gera problemas para a segurança jurídica porque os ministros não têm contato com a prova, diretamente. Conhecer todas as peças é importante para formar convicção", diz Ricardo Breier, advogado e professor de Direito Penal e Processo Penal no Rio Grande do Sul. Para ele, o Supremo deveria ser um tribunal exclusivamente revisor.

Luiz Guilherme Arcaro Conci acredita que há um exagero na prerrogativa de foro. "Uma coisa são os governadores, o presidente da República, os ministros do Supremo. Mas nessa situação, em que todos os parlamentares federais recebem esse foro, há um excesso e uma morosidade em outros processos que tramitam no Supremo", diz.

A estratégia do desmembramento do processo e sua rejeição

No primeiro dia da sessão de julgamento do Mensalão, a Corte decidiu não acolher o pedido de desmembramento dos autos efetuado por um dos defensores. O que pretendia com o desmembramento? Que todos os réus não detentores de prerrogativa de foro fossem julgados em primeiro grau. Com isto, atrasaria o andamento do feito, bem como obteria a possibilidade de que todos, sendo condenados em primeiro grau, pudessem recorrer à segunda instância e, eventualmente, ao STJ e ao próprio STF. Eventualmente, o atraso poderia conduzir à prescrição.

Atualmente, três dos réus detêm a prerrogativa de serem julgados pelo STF, pois são deputados federais. Pelas regras do Código de Processo Penal, quando alguém, sem prerrogativa de foro, comete crime em conjunto com outra pessoa, detentora da prerrogativa, ambos são julgados pela instância mais graduada (o STF). Isto porque ambos respondem a ações penais "conexas", uma vez que são co-autores do mesmo fato, bem como a prova acerca do fato praticado por um deles automaticamente interessará à ação penal do outro. Assim, evitam-se decisões contraditórias pelo Poder Judiciário – já que um só juiz decidirá - e produz-se "economia processual", pois há reunião de toda a prova respectiva aos fatos criminosos, instruindo um só julgador, que tem visão de tudo o que ocorreu. Tudo mais rápido do que repetir a produção das provas em cada ação penal, separando-as.

Excepcionalmente, há casos em que a lei autoriza "desmembrar" ou separar as ações penais. Isto ocorre quando as vantagens derivadas da reunião não ocorrem: casos em que a reunião das ações penais torna o trâmite tão lento que se produzem prejuízos para a acusação, como a eventual prescrição da punição, ou para a defesa, como um atraso nos atos processuais durante ação penal respondida por réu preso. A decisão sobre a junção ou separação costuma operar-se durante a investigação ou, quando muito, no início da ação penal.

No caso do Mensalão, os Ministros discutiram há anos sobre a reunião das ações, ainda na fase de investigação, e rejeitaram a separação dos autos, embora excessivo o número de réus. Por isto, a maioria dos julgadores rejeitou o pedido de desmembramento, considerando que não se poderia mais discutir o tema: o que um mesmo juiz já decidiu, não volta a decidir (preclusão consumativa). Andaram bem. Sobretudo, porque desmembrar o processo agora geraria: a) risco de decisões diferentes sobre idênticos fatos; b) atraso no desfecho do processo; c) nenhuma economia processual. Somente dois Ministros – inclusive o revisor – aceitaram a pretensão da defesa. Curiosamente, sustentaram posições conflitantes com a Súmula 704, editada pelo Tribunal a que pertencem.

Discussões sobre competência são clássicas estratégias de defesa em casos de réus detentores de foro privilegiado. Atrasam a discussão de mérito e muitas vezes levam à prescrição. É o caso de mantê-lo?

Fábio André Guaragni é Promotor de Justiça, Professor Doutor de Direito Penal no Mestrado do Unicuritiba.

Julgamento dos autos da ação penal 470/STF

Poderá se dessumir que o julgamento da ação penal 470/STF representa o ápice da judicialização da política. Por demais é conhecido que desde a CF/88 gradativamente tem se constatado o aumento expressivo das demandas judiciais. O Executivo não efetiva as políticas públicas, o Legislativo é negligente e letárgico em suas funções precípuas; resta aos cidadãos bater às portas do Judiciário e o têm feito avidamente na busca da satisfação dos seus pleitos. O processo popularmente conhecido como "mensalão" referenda essa tendência em sua vertente mais paradigmática. Afinal os imputados pertencem à nata da classe política, empresarial e financeira, outrora distantes de uma resposta jurídico-penal.

Todavia a consciência dos julgadores não deve se nortear pelas suas convicções pessoais ou morais, mas orientar-se pela égide da ordem jurídica. Portanto, condenar ou absolver não é uma decisão sujeita ao sabor das paixões, dos valores individuais ou coletivos e em atenção a clamores populares. Urge, pois, desapaixonar o julgamento, imprimindo notas pragmáticas que procurem equilibrar as teses da acusação e da defesa em favor de um resultado mais próximo do ideal de segurança jurídica e Justiça.

O STF precede e sucede o julgamento da Ação Penal 470. Diga-se de passagem: reduzir a Corte Suprema da Nação a esse julgamento seria uma capitis diminutio que o Judiciário e a democracia brasileira não merecem.

A questão de ordem levantada pela defesa em favor do desmembramento do processo sob uma perspectiva do duplo grau de jurisdição, o qual seria vedado aos réus que não possuem prerrogativa de função, acabou impondo à Corte a necessidade de revisitar posicionamentos anteriores sobre o tema, com resultado amplamente favorável ao não acolhimento do pleito.

Quanto ao mérito, confia-se em um julgamento isento, imparcial, técnico e permeado pelos princípios universais de garantia, em especial da ampla defesa e da realização de Justiça. Um resultado lastreado em tais premissas evidenciará o consolidado estágio da nossa democracia.

Rodrigo Sánchez Rios, Professor de Direito Penal PUC/PR, advogado criminalista.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]