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 | Hugo Harada/ Gazeta do Povo
| Foto: Hugo Harada/ Gazeta do Povo

As mudanças no mundo globalizado afetam diretamente o direito, que, como observa o filósofo italiano Giacomo Marramao, é um produto da dinâmica social. O professor de Filosofia Política na Universidade de Roma III considera que o Estado está em decadência, mas que esse processo deve ser lento. Além disso, ele afirma que a sociedade contemporânea passa por uma espécie de período "entre reinos", no qual "estamos deixando a ordem interestatal moderna para trás e uma nova ordem mundial está se construindo". O acadêmico, que também é membro do Colégio Internacional de Filosofia em Paris, esteve em Curitiba em dezembro para uma conferência na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e recebeu a reportagem da Gazeta do Povo.

Qual a influência da globalização no direito?

Na globalização, temos, por um lado, fenômenos novos. Por outro, temos uma analogia segundo a visão de alguns historiadores, como Paulo Grossi, com fenômenos que se produziram antes do nascimento do Estado moderno soberano. Sobretudo, um dos argumentos fundamentais de que havia um direito antes do Estado e, então, podemos pensar também em um direito depois dele. Acredito que a sua dissolução será um fenômeno muito lento e não necessariamente quantitativo. Se nós vemos a situação internacional atual, temos mais Estado do que antes. O que ocorre é que a eficácia de todos os Estados, incluindo até mesmo os Estados Unidos, não pode nada frente aos fenômenos da globalização, que é uma mescla de dois fenômenos. Por um lado, a concentração de capitais financeiros. Por outro, as tecnologias pós-eletrônicas, digitais, de tempo real. Não há mais fronteiras para os capitais financeiros, esse é o ponto fundamental. Não é uma questão de globalização dos mercados enquanto tal, porque, como os historiadores da economia demonstraram, o mercado era muito mais globalizado no período de 1870 até a Primeira Guerra Mundial. Mas, agora, com esse multiplicador das tecnologias digitais, pode-se operar uma transferência de dinheiro de um ponto a outro do planeta sem possibilidade de controle das soberanias dos Estados.

Significa que com esse processo de tecnologia, ainda que haja mais Estados, eles estão em decadência?

Veja, há uma situação paradoxal que eu chamo em um livro meu do paradoxo do declinar crescente do Estado. Ele declina crescendo e não no sentido de se tornar menor. A questão é outra, é que o controle das questões decisivas em nível global não está mais nas instituições centrais, oficiais dos Estados. Há um fosso que se abre entre a dinâmica institucional e a lógica dos poderes. O poder e o Estado não coincidiram nunca de uma maneira perfeita. Mas, sobretudo agora, há uma bifurcação da lógica entre poder e Estado. Quando falo de poder, falo de poder financeiro, mas não somente. Na história do direito há questão de potestades indiretas, a análise de Carl Schmitt, de que não são tantos poderes financeiros, são poderes religiosos, enfim, poderes das corporações.

E como seria o direito depois do Estado? Como isso pode ser?

Nós temos a ideia de que o Estado é produto de uma única fonte, que é a fonte soberania. Há juristas que contestam isso, há o fim da soberania no sentido de poder concentrado em um só ponto e há o fim do monopólio das fontes de direito. O direito se produz também através do associativismo social, do conflito social e dos resultados desses conflitos. Há um sistema de negociação entre grupos sociais que demonstra que o direito não é o produto, como o chamava Nietzsche, do monstro frio. O direito é um produto da dinâmica social, da dinâmica de trocas socioculturais e não somente um produto da vontade soberana. Não há mais monopólio da decisão. Não há mais monopólio das fontes de direito, há uma pluralização das fontes de direito.

Mas há os que acreditam no Estado e lutam para mantê-lo. Isso faz sentido?

Há dois problemas. Por um lado, há o problema da luta dos direitos fundamentais, e essa luta tem um espaço global. Há uma tentativa de desenvolver um direito global diante da dominação do capital global. Por outro lado, sobretudo na América Latina, há uma necessidade de enfatizar o papel da soberania contra uma globalização entendida em um sentido imperialista, contra a hegemonia dos EUA. Então, na Argentina, no Brasil, na Venezuela e em outros países da América Latina há essa tendência, assim como em países da Europa. Sei muito bem que a lógica de Cristina Kirchner é bem diferente da política de Dilma Rousseff, que é mais articulada. Mas há o fato de que não é possível enfrentar os grandes desafios globais com um retorno a uma ideia de soberania. Estamos em um "entre reinos", entre a antiga ordem interestatal moderna, que não existe mais e uma nova ordem à qual ainda não chegamos, mas que temos que construir. Em um sentido realista, esse "entre reinos" está constituído por uma tendência a agregações macrorregionais. Temos a macrorregião da Ásia, com China e Índia. Por outro lado, a América do Norte, incluindo o Canadá. A área do Mercosul e a Europa, que foi a primeira a organizar-se, mas não conseguiu transformar-se em um sujeito político institucional verdadeiro.

Mas nenhum bloco conseguiu se transformar em sujeito político institucional...

Sim, mas há interesse políticos comuns e há uma familiarização e uma homologação cultural graduais nesses países. Há um parlamento no Mercosul também. E há a necessidade de uma coalisão, de uma aliança forte para enfrentar os desafios globais, senão não vai ser possível. Mas uma estrutura de mundo em quatro grandes áreas não é uma estrutura harmônica, pode se tornar uma estrutura de mundo mais conflituosa do que a estrutura que era organizada na modernidade, no sentido de interestados.

Mas, aqui no Brasil, e em grande parte dos países, a Constituição local é o que deve ser tomado como base principal do direito...

Eu sou por um trabalho na direção de um constitucionalismo global, mas em um sentido não utópico. A primeira etapa de um constitucionalismo global tem que ser o trabalho de tradução entre diferentes tradições de constitucionalismo. Por exemplo, no Ocidente, temos a necessidade de traduzir a linguagem da civil law para a tradição da common law. E, naturalmente, os países da América Latina são muito mais parecidos com os países europeus de civil law. Mas temos um problema de tradução porque, se não há tradução, há uma contaminação caótica, sem ordem, sem uma nova forma constitucional. Creio que temos que ir em direção de uma composição entre a tradição da democracia constitucional continental e da democracia constitucional oceânica.

O senhor fala de uma constituição global sem utopia, mas nem na União Europeia conseguiram fazer uma constituição única até agora. Como se faria uma global?

Temos que praticar dois imperativos contemporâneos. De um lado, trabalhar de uma maneira legalista no sentido de uma política da tradução de diferentes tradições de constitucionalismo. Por outro lado, uma utopia concreta de ver como resultado em perspectiva um constitucionalismo global. Esse trabalho tem que ser contemporâneo no sentido do meu grande compatriota, do começo da modernidade, Nicolau Maquiavel, que tinha um realismo desencantado e uma atenção utópica que, no tempo dele, era a construção de um norte republicano e democracia ardente. Não era a democracia fria como a dos países anglo-saxões, com todo respeito.

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