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 | Daniel Castellano/ Gazeta do Povo
| Foto: Daniel Castellano/ Gazeta do Povo

A pulseira de couro, usada com uma indumentária mais séria, ajuda Eugênio Pacelli a se lembrar do hippie que foi um dia e a não se deslumbrar com o mundo dos juristas. Ele faz questão de se lembrar da trajetória que o levou a chegar ao que é hoje. Ao mesmo tempo em que considera o ambiente do direito bastante chato pelas formalidades, também enfatiza a relevância dessa área para a vida de todas as pessoas. Doutor em Ciências Criminais, Pacelli foi relator da comissão de juristas que elaborou o projeto do novo Código de Processo Penal e defende menos incriminação e mais soluções sem que se recorra ao Direito Penal. Atualmente, é procurador-regional da República no Tribunal Regional Federal da 1.ª Região, em Brasília. Ele conversou com a reportagem da Gazeta do Povo quando esteve em Curitiba para uma atualização dos alunos da pós-graduação do UniCuritiba, realizada em novembro passado.

Quais as principais mudanças que o novo Código de Processo Penal traz?

O problema da legislação brasileira de um modo geral é que as legislações que cuidam do direito sancionatório, punitivo, de modo especial direito penal e processo penal, receberam uma modificação muito grande com a Constituição de 1988. Então, os tribunais e as pessoas envolvidas no direito tiveram que adaptar uma legislação antiga, com modificações mais recentes, mas, ainda assim, muito antiga, às estruturas constitucionais de 1988, que são completamente diferentes. Para você ter uma ideia, o Código de Processo Penal de 1941 partia da presunção de culpa, de tal modo que alguém, quando era preso em flagrante, continuaria preso até a data da sentença. É a afirmação da não inocência como ponto de partida, a Constituição afirma o inverso. O projeto do novo código teve como primeira preocupação estruturá-lo nas linhas que determinam essas modificações na Constituição. Isso já é um ganho muito grande, porque dá uma unidade quando sistematiza essa matéria já com estrutura constitucional e facilita a aplicação do direito. Então, obtém celeridade nos procedimentos, e isso foi o que nos moveu de modo mais essencial.

Qual o objetivo das restrições à prisão preventiva propostas no projeto?

Na verdade, não são restrições. O nosso projeto trabalha com a Lei 12.403/2011, que já está em vigor, mas um pouco mais amplamente, mais profundamente. O que houve foi uma redução da aplicação da prisão preventiva, mas apenas para os casos em que, ao final do processo, se julgada procedente a ação, não se chegaria à imposição de pena privativa. Haveria um contrassenso em se prender alguém que, ao final do processo, não recebe pena de cadeia. Então, essa proporcionalidade, essa medida aritmética da pena foi com base no Código Penal em relação às disposições que preveem a substituição da pena privativa de liberdade por pena restritiva de direito. Daí o patamar de quatro anos, que é usado para regime aberto e também para substituição de pena privativa da liberdade.

As mudanças que possam vir a ocorrer no Código Penal vão influenciar no projeto do CPP?

O projeto do Código Penal é um projeto que precisa ser muito mais bem discutido, a matéria abordada [pela comissão] é uma matéria imensa, eles não só trabalharam a parte geral, mas também prepararam a parte especial. Então, acho que não tiveram tempo para refletir com a maturidade que seria necessária. Uma matéria dessa complexidade tinha de ter sido discutida muito mais amplamente na sociedade civil. Mas, de todo modo, o projeto do novo Código Penal não tem confronto com o projeto do Código de Processo Penal.

O senhor acha que há resistência no âmbito do Congresso Nacional para aprovar o novo CPP?

Há resistência com quaisquer novos códigos. Não tem jeito. Pessoas da própria academia que não veem contempladas suas pretensões teóricas também se insurgem contra. O Brasil é meio autofágico nesse sentido, pessoas que não foram contempladas tendem a, de algum modo, se posicionar negativamente. O que estão fazendo em relação ao projeto do Código Penal já é algo que transcendeu a fronteira do texto para atingir as pessoas. Há resistências porque todo tipo de matéria penal envolve diversas questões muito sensíveis. Falar de prisões, de crimes, envolver sensibilidades institucionais vai desagradar à polícia, ao Ministério Público, à magistratura, dependendo de como se regular a intervenção e o papel deles. É matéria difícil e complexa mesmo. Mas eu acho que o projeto do Código de Processo Penal não tem a resistência que se alardeia. Acho que tem menos resistência do que se pensa.

Qual a sua perspectiva para aprovação do projeto?

Aí mudamos o tom da resposta porque, com ou sem resistência, será demorada. Eu não tenho a menor dúvida de que, se alguém tiver uma esperança, é para cinco anos. Até que essa coisa amadureça e todos debatam exaustivamente todos os pontos.

O senhor pesquisa o direito penal e o processo penal sob a perspectiva da proteção estatal dos direitos fundamentais. Quais são suas principais conclusões?

Estamos falando da superioridade normativa da Constituição. Então, se a gente aceita a Constituição como ordem que nos governa, que nos orienta, a gente quer levá-la a sério em todos os setores. Um dos setores em que a Constituição vem sofrendo ataques muitos específicos é a parte da tutela penal. Ou seja, a Constituição oferece uma série de garantias individuais, como convém a todo Estado de Direito, mas também escolhe determinados bens, interesses jurídicos que julga relevantes para serem objetos de proteção penal. E essa tutela constitucional penal é que está em busca de uma legitimação. A sociedade brasileira ainda enxerga no direito penal um instrumento de justiça, de vingança e violência necessária. Mas fora desse contexto, ainda temos um grande conflito, sobretudo nos meios acadêmicos. Há uma resistência à eficácia do direito penal. Agora, por exemplo, em um julgamento envolvendo pessoas da classe política a gente percebe uma preocupação exacerbada em alguns setores como se elas estabelecessem precedentes de um Estado de polícia.

O senhor fala do caso do mensalão?

É você quem está falando. Eu estou só me referindo em tese. [risos]

Então, pela sua leitura, os direitos constitucionais ainda não são plenamente respeitados?

O que eu quero dizer é o seguinte: há previsão constitucional de proteção penal de determinados bens e interesses, e isso precisa ser levado a sério. O que significa dizer que nós não precisamos de tanta incriminação. Podemos diminuir bastante o campo de tipos penais, até para tornar mais ágil a justiça penal, estabelecer métodos de reparação de danos sem o sistema penal, que é totalmente violento.

Além da sua pesquisa acadêmica e da atuação no direito, o que o senhor destaca da sua trajetória pessoal?

Isso aqui [mostra a pulseira de couro] é reflexo do meu passado, eu sou ex-hippie. Mas, assim, hippie no sentido mais intelectual da coisa, associado a leituras de política, sociologia e filosofia. Não era simplesmente vender pulseirinha na rua e protestar contra a guerra do Vietnã.

E a pulseirinha fica até hoje...

Fica como lembrança... No fundo a gente acaba levando o que a gente foi para o resto da vida. Algumas mudanças vão sendo feitas, eu uso jeans [aponta para calça jeans escura que usa com paletó e gravata]. Eu acho que esse ambiente do direito é muito chato, as pessoas sempre de gravata, terno, o direito se tornou um ambiente muito careta, muito chato. É preciso mudar, oxigenar a turma. [A pulseira] é para eu não ficar muito bobo, muito abobado. Porque direito é assim mesmo, lidar com poder, com política. E infeliz da pessoa que não está inserida na importância do direito para vida de todo mundo. O direito é muito interessante, mas ele também precisa parar com esse autismo cultural dele, precisa aprender mais com outras áreas.

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