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O que diferencia a conduta de quem é usuário de drogas e de quem é traficante de drogas hoje no Brasil? A Lei 11.343 de 2006 prevê que os dois comportamentos são crimes, porém traz para eles respostas penais significativamente díspares. Enquanto o usuário é punido com penas que oscilam entre a mera advertência quanto aos malefícios do uso de drogas, chegando à prestação de serviços à comunidade ou simples multa (não admitindo a prisão em hipótese alguma, sequer em flagrante delito), a resposta penal para o tráfico de drogas é bem mais severa e pode alcançar até quinze anos de reclusão.

Sucede que os tipos penais que definem os dois delitos são muito próximos. O artigo 28 da Lei 11.343/2006 (que tipifica o crime de porte para consumo próprio) considera como delito cinco condutas: adquirir, guardar, ter em depósito, transportar ou trazer consigo, para consumo pessoal, drogas, sem autorização legal ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar. Já o artigo 33 da Lei 11.343/2006 (que tipifica o crime de tráfico de drogas) traz dezoito condutas: importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar. Percebe-se que dentre estas dezoito condutas estão também aquelas cinco selecionadas para o crime de porte para consumo (o crime do usuário). Assim, o que diferencia o usuário do traficante não é a conduta em si, já que em ambos os crimes as condutas que podem alcançar o usuário se encontram também previstas para o traficante. Com efeito, se as cinco condutas nucleares do tipo penal do art. 28 da Lei 11.343/06 (porte para uso) são rigorosamente as mesmas encontradas no art. 33 da mesma lei (tráfico de drogas), a única diferença entre as duas figuras penais é o elemento subjetivo diverso do dolo presente no art. 28: “para consumo pessoal”.

A lei 11.343/2006 até prevê em seu art. 28, §2º quais critérios o juiz deve avaliar para “determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal”. Diz a lei: “o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente”. Ou seja: não precisa ser muito perspicaz para saber que estes critérios diferenciadores acabam sendo mais subjetivos do que objetivos, notadamente nos casos limítrofes, isto é, naqueles casos em que a quantidade de droga apreendida não permita traçar uma diferenciação clara entre o mero usuário e o traficante.

Seguindo outra linha, algumas legislações estrangeiras estabelecem critério exclusivamente quantitativo para diferenciar o usuário do traficante. Assim, por exemplo, no México, até 02 gramas de ópio, ou 50 miligramas de heroína, ou 05 gramas de maconha, ou 500 miligramas de cocaína, ou 0,015 miligramas de LSD, ou 40 gramas de metanfetaminas, o sujeito é considerado apenas usuário, sem resposta penal; passou disso é punido por crime de tráfico. Na República Tcheca, desde 2010, se o sujeito portar até 15 gramas de maconha, ou 04 comprimidos de ecstasy, ou 01 grama de cocaína, ou 1,5 gramas de heroína ele é apenas usuário; passou disso, é traficante[1], prevendo-se apenas multa para o primeiro. Já no Brasil, diante de situações similares em termos de quantidade da droga ficamos na dependência de o policial, o delegado, o promotor, o juiz e o Tribunal descobrirem o que se passava na cabeça do sujeito (se ele queria apenas usar a droga ou objetivava outra finalidade) com valorações orientadas por uma série de dados subjetivos à luz do caso concreto.

Uma rápida “visita” às sentenças criminais proferidas no Brasil dos dias de hoje, de casos nos quais se discute se o comportamento do agente era de tráfico de drogas ou de uma conduta apenas de porte para uso da droga é suficiente para verificar quão flexível a “razoabilidade da dúvida” – que deveria orientar o resultado em favor do réu – pode ser.

Nos milhares de casos que chegam anualmente aos Tribunais de Justiça com condenação em primeiro grau por tráfico, o que se encontra no plano probatório costuma ser, em sua vasta maioria, amplamente duvidoso. Como se sabe por experiência de atuação como Procurador de Justiça perante a Terceira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Paraná, especializada nesta matéria, boa parte dos casos que chegam à segunda instância resume-se naquilo que se pode definir como sendo a fórmula matemática do tráfico de drogas: a Polícia Militar relata ter recebido uma notícia anônima de que haveria um traficante na região tal, com determinadas características físicas; em verificação desta notícia anônima, a Polícia Militar aborda um sujeito na rua, procede à revista pessoal e, bingo (!), encontra com ele pequena quantidade de droga num dos bolsos da calça e, no outro, algumas notas de dinheiro em pequenos valores. Resultado: traficante! Não interessa o que o sujeito abordado na rua estava fazendo no momento, tampouco suas alegações no sentido de que a droga encontrada seria para seu consumo pessoal. Uma pequena variação de casos envolve notícias dando conta de que na casa de fulano há tráfico de drogas. Nestes casos, na maioria das vezes sem qualquer mandado de busca e apreensão, a Polícia Militar comparece na residência, é “convidada” a entrar e encontra pequena quantidade de droga no refrigerador da casa. Nem se vai aqui discutir a ilegalidade e abuso que possa haver neste proceder; fica para outro artigo. Por ora, basta considerar que os quadros probatórios identificados, mesmo que se considere o ingresso na residência como legitimado, são o que costuma bastar para a prisão em flagrante por tráfico, para a denúncia e respectiva condenação, sempre por tráfico.

Estes são os panoramas corriqueiros de casos denunciados e condenados em primeiro grau. No entanto, por evidente, apresentam, para dizer o mínimo, um elevado índice de dúvida a respeito do elemento subjetivo diverso do dolo em relação ao acusado. E, havendo essa dúvida, o que a dogmática moderna espera e o que a Constituição da República de 1988 determina, é que a pessoa abordada nas condições acima indicadas pela Polícia Militar tenha sua conduta desclassificada para o delito de “porte para uso”. Aliás, não deveria sequer ter sido lavrado o flagrante e sido oferecida a denúncia em relação a ele. O que se vê, portanto, é que mesmo em dúvida, a condenação por tráfico de drogas também aflora, e com certa facilidade em casos que apresentam este padrão de conduta e de prova. Casos assim são frequentes no foro.

E por que isso ocorre?

O que sucede em casos como o aludido acima, é explicado pela Psicologia Cognitiva de Amos Tversky e Daniel Kahneman, como sendo um “julgamento por representatividade” [3] que se costuma realizar mentalmente. No caso do tráfico de drogas se criou uma representação, uma ideia – nem sempre falsa, mas que passou a ser padronizada e aceita como “suficiente” – de se acreditar na notícia anônima, pois ela teria sido “confirmada” com a descoberta da droga e do dinheiro no bolso ou na casa do sujeito. Assim, afasta-se, pela “heurística da representação”, a possibilidade daquele que é surpreendido com pequena quantidade de droga ser mero consumidor, porquanto além da notícia, o flagrante pelo porte da droga e as notas de dinheiro de pequeno valor no bolso da calça conduzem, no imaginário das probabilidades aceitas, a considerá-lo produto do comércio de drogas. Logo, o policial militar, o delegado, o promotor e o juiz, acabam considerando, mentalmente, que o sujeito “só pode ser traficante”. Mas há certeza nessa afirmação? Há prova capaz de concluir nesse sentido? Óbvio que não, pois nestes casos o que se tem visto, em sua ampla maioria, é que não há qualquer investigação efetiva por parte da polícia. Com frequência dá-se crédito, simplesmente, sem qualquer preliminar averiguação, às notícias que são anônimas. Sem qualquer investigação minimamente razoável. Não se faz, por exemplo, campana nas proximidades do local indicado para verificar eventual movimentação característica de tráfico; não se documenta em imagens possível comércio; não se vai ao local investigar previamente; não se ouvem testemunhas; não se coleta nenhum dado minimamente razoável da prática de possível comércio; não se identifica o fornecedor da droga; não se sabe sua origem; não se investiga se alguém compra a droga e por aí vai... Nada. Só a notícia anônima. E vai-se ao local e se constatam pequenas porções de droga, escondidas no bolso da calça ou na residência do sujeito, o que é absolutamente compatível com a conduta de mero usuário. Mas autua-se por tráfico. Prende-se em flagrante por tráfico. Condena-se por tráfico. Ainda que não se tenha nada além das notícias anônimas e da materialidade de pequenas porções de droga. Não há flagrante da conduta de comércio; não há flagrante ou ouvida de possível comprador da droga; não há nada a não ser a constatação da droga, armazenada em algum lugar, por vezes acrescida de notas de dinheiro em pequenos valores no bolso da calça, tudo somado à notícia anônima. E conclui-se, pela heurística da representação decorrente da notícia anônima, que só pode ser tráfico! Mas a conclusão, nestes moldes, pode ser considerada arbitrária. A situação, que se repete como rotina, é, no mínimo, preocupante.

Todo o quadro probatório decorre da mera constatação do flagrante que, por sua vez, decorre da notícia anônima. E o resultado tem sido lido sob a ótica de que isso “não importa”, pois a aparência, ou o estereótipo, resolvem o processo decisório e, mesmo havendo dúvida – no caso pode-se até afirmar que a certeza seria inversamente proporcional à condenação esposada – não raras vezes o que se tem é a condenação por tráfico de drogas.

Na “heurística da representatividade” a probabilidade de que o sujeito abordado com a droga e com o dinheiro trocado no bolso seja um traficante “é avaliada segundo o grau em que ele é representativo, ou similar ao estereótipo” de um traficante [4]. E, por mais que se treinem – que se doutrinem – os delegados, os promotores e os juízes a compreender que não podem agir assim, pois esse conjunto de dados deve ser considerado invariavelmente como insuficiente para, respectivamente, prender, denunciar e condenar por tráfico, sempre haverá um percentual destes profissionais – porque são seres humanos – que não escapará do mecanismo heurístico da representatividade. É inevitável, pois é assim que a mente da maioria das pessoas opera.

Para ilustrar o drama que a apressada rotulagem destas pessoas como traficantes representa, basta pensar na possibilidade de alguém ser usuário de drogas e ter algum inimigo pessoal por qualquer razão. Este, querendo se vingar daquele só precisa telefonar, anonimamente, umas duas ou três vezes para o “disque-denúncia”, dando conta que na casa do fulano existe uma “boca de fumo”. As notícias anônimas chamarão a atenção da Polícia Militar que se deslocará à residência do sujeito e, claro, lá encontrará a droga e notas de dinheiro em pequeno valor (que qualquer pessoa normalmente tem...), fechando a “fórmula do tráfico”. Numa situação como esta, de nada adiantará alegar ser mero usuário, pois há uma série de notícias anônimas que acabam servindo de “prova” em sentido contrário. E mesmo que se saiba que “notícia” não é “prova”, ainda mais quando é anônima, pesará a heurística da representação de que fala a Psicologia Cognitiva.

Assim, ou se muda a lei brasileira para estabelecer uma quantidade precisa para separar a conduta do usuário do traficante ou não se escapará de continuar presenciando a condenação de meros usuários de droga como se traficantes fossem. Pelo que se vê do cotidiano dos processos penais, tenha-se a certeza que hoje cumprem penas nas fétidas penitenciárias brasileiras, inúmeros condenados por tráfico de drogas que muito provavelmente eram apenas usuários (ou contra quem a prova de tráfico era absolutamente frágil) e que acabaram vítimas dessa heurística da representação, do estereótipo do traficante, formatado por uma equivocada e perigosa “fórmula do tráfico”: notícia anônima + pequena quantidade de droga + notas trocadas de dinheiro no bolso = tráfico de drogas... É pra pensar...e mudar, com urgência!

[1] Políticas de Drogas: novas práticas pelo mundo. Comissão Brasileira Sobre Drogas e Democracia. Rio de Janeiro, 2011, pp. 28 e 36.

[2] AMOS, Tversky; KAHNEMAN, Daniel. Apêndice A: Julgamento sob Incerteza: Heurísticas e Vieses. In: KAHNEMAN, Daniel. Rápido e Devagar: duas formas de pensar. Tradução de Cássio de Arantes Leite, Rio de Janeiro: Objetiva, 2012, pp. 524-539.

[3] AMOS, Tversky; KAHNEMAN, Daniel. Apêndice A: Julgamento sob Incerteza: Heurísticas e Vieses. In: KAHNEMAN, Daniel. Ob. cit., pp. 524-539, p. 525.

*Rodrigo Régnier Chemim Guimarães, Procurador de Justiça no Ministério Público do Paraná. Professor de Direito Processual Penal do Unicuritiba – Centro Universitário Curitiba; da FAE – Centro Universitário Franciscano; da FEMPAR – Fundação Escola da Magistratura do Paraná; da EMAP – Escola da Magistratura do Paraná; da ESMAFE – Escola da Magistratura Federal no Paraná. Professor e Coordenador do Curso de Pós-graduação em Direito Penal e Processual Penal do Unicuritiba. Mestre em Direito das Relações Sociais e Doutorando em Direito de Estado pela UFPR. Escreve mensalmente para o Justiça & Direito.

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