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Na quinta-feira (16), em julgamento dotado de repercussão geral, o STF decidiu que cabe ao Estado indenizar presos submetidos a condições degradantes de encarceramento. No caso analisado, restabeleceu-se decisão do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul que determinara o pagamento de indenização de R$ 2 mil a título de danos morais. Sobre o tema, o Tribunal foi unânime quanto à responsabilidade do Estado. As variações se deram sobre qual a medida a ser tomada em face disso. A linha que prevaleceu foi o pagamento de indenização em parcela única. Cogitou-se de instituir um sistema de remissão da pena e ainda a indenização de pagamento mensal, de modo a fazer a indenização conectar-se ao tempo em que dura a situação. O sistema normativo determina que o sujeito seja encarcerado, mas como não há recursos para lá mantê-lo em situação minimamente digna, o próprio sistema atribui uma compensação ao sujeito (mas só ao sujeito que acessar o Judiciário).

A decisão foi objeto de imediata atenção. Há os que gostaram e também os descontentes. Uma sociedade plural é assim mesmo. O ponto desse artigo não é cerrar fileiras ideológicas, mas sim examinar as consequências da decisão.

O primeiro elemento a ser destacado é que há claros sinais sobre a crescente preocupação do Judiciário com a situação carcerária. A situação dos presídios já tinha sido tomada como um estado de coisas inconstitucional (ADPF 347). É dizer, reconheceu-se uma omissão duradoura do Estado que promove reiterada violação a direitos fundamentais e exige a adoção de medidas estipuladas pelo Judiciário (espontaneamente, o Estado não promove medidas para solucionar a questão). Recentemente, a crise carcerária se apresentou com toda a sua brutalidade nos lembrando que o estado de natureza parece não ser apenas uma alegoria. O julgamento de ontem vem nessa linha: o Judiciário (ao menos o STF) não está mais disposto a tolerar a nossa situação carcerária.

Nessa perspectiva, é relativamente evidente que haverá uma profusão de demandas reclamando a mesma solução. As condições degradantes são comuns. O Judiciário se deparará em breve tempo com um incremento dessas demandas, todas fundando-se no leading case de ontem.

Contudo, o direito é uma arte sutil. E esses negócios de sucesso na demanda é mais para sortista --- do tipo que faz anúncio em poste --- do que para advogado. A decisão do STF foi dada num contexto específico, em que havia se considerado provada no processo a situação degradante (esse era um dado do julgamento). Parece filigrana, mas não é (pelo menos não para os juristas). Situação degradante é um conceito desses que pode ser entendido de diversos modos. E eis o xis da questão. Haverá discussões profundas a serem travadas. Especialmente em tempos de carestia orçamentária, a efetividade de medidas dessa natureza é dúbia. A válvula de escape será essa.

Em um mundo ideal, a decisão do STF estimularia políticas públicas multisetoriais para se acharem parâmetros aceitáveis. Como não vivemos num mudo ideal, haverá ampla judicialização do tema, muitas vezes lançando o Estado contra o Estado, consumindo recursos escassos e tempo – que seriam melhor investidos se direcionados ao próprio sistema deficitário, e não para tentar contornar situações específicas depois de mobilizar a máquina estatal (Judiciário e Executivo). O desencanto sempre vence a esperança no longo prazo. A via da judicialização nada resolverá no longo prazo – sobretudo em termos sistemáticos. O sistema não é aperfeiçoado e criam-se mais uma vez as soluções paliativas (sempre elas), que não resolvem a origem do problema. É de fato o melhor que o Judiciário pode fazer?

Outra intercorrência da decisão será o aumento de demandas buscando a indenização por direitos sociais não atendidos. Bom seria se a questão dos presídios fosse a única mazela de nosso país. Não é. Hospitais, remédios, escolas, creches, violência urbana, etc; tudo existe em nosso país. Todas essas circunstâncias podem ser nalguma medida tidas como estado de coisas inconstitucional e, potencialmente, tudo pode ser taxado de responsabilidade do Estado. Contudo, o erário é uma servidão de passagem. O dinheiro que lá está foi produzido pela sociedade e arrecadado em seu nome. A ideia de que todos devam ser indenizados pelas nossas mazelas sociais conduz ao resultado peculiar de que os lesados tirarão de seus bolsos para pagar a si mesmos - com os custos de transação inerentes. Daí porque o fundamento da responsabilidade estatal é a especialidade do dano, que reconhece que um indivíduo foi agravado em maior medida que os outros membros da sociedade e deve ser compensado. Se os problemas sociais atingem a massa dos brasileiros (como de fato atingem), pensar soluções a partir da indenização não parece ser algo universalizável. E precisamos, desesperadamente, de soluções universais. Soluções pela via da responsabilidade civil são mais simbólicas do que efetivas. E sempre traz aquele elemento aleatório, de que uns ganharão e outros não, que faz o direito de ação assumir um caráter de mesa de poker (veja-se a constante discussão sobre o fornecimento de medicamentos por determinação judicial). Mais do que isso, na mesa há os que jogam melhor e têm mais chances de ganhar. Novamente, recursos públicos serão captados pelos mais aptos a tanto, tudo envolvido em belos embrulhos de eficácia de direitos sociais – direitos sociais para quem?

O problema dessas visões que investem na condenação do Estado é que elas focam a realidade a partir de um recorte pontual (os autos do processo circunscrevem o que está no mundo, como diz o velho ditado). A efetividade de direitos sociais é um problema complexo que envolve contingências bastante profundas (quando menos orçamentárias e distributivas). O papel do direito é limitado, por mais que haja boa intenção, o maná não cai do céu. E isso é duro, mas é verdade. Nossos problemas estão além do alcance das soluções providas pelos juristas – ainda que isso possa ser um importante começo. Até quando vamos deixar de começar?

Cada vez mais fica claro que, na ausência do Executivo (por falta de recursos ou de vontade política), o Judiciário se projeta como realizador do Estado de Bem Estar Social. A última fonte de esperança dos que esperam uma resposta do Estado. E cada mais fica claro que, fora da perspectiva individual, essa resposta é inadequada. Repetimos assim o ciclo: soluções retóricas que aliviam consciências, beneficiam uns e outros de imediato, mas não transformam a realidade.

Heloísa Conrado Caggiano:
mestranda em Direito da Regulação pela FGV-Rio, advogada em Curitiba
Bernardo S. Guimarães:
doutor em Direito do Estado pela FADUSP, Professor da PUCPR, advogado em Curitiba
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