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 | Albari Rosa/Gazeta do Povo
| Foto: Albari Rosa/Gazeta do Povo

Definitivamente, os defensores do Federalismo americano do final do século XVIII estariam extremamente preocupados neste momento se presenciassem a atual conjuntura política da República Federativa do Brasil. O principal fundamento para a implantação do Federalismo no Estado americano no final do século XVIII foi a prevenção de insurreições domésticas e ataques de facções, além de se evitar corrupções de natureza sistêmica.

Não é o que se está testemunhando atualmente no Estado brasileiro. A atual crise nos presídios brasileiros denuncia apenas um braço da grave instabilidade institucional vivida no momento. A situação vem se deteriorando ao longo do tempo, inicialmente de forma sutil e na sequência escancarando tudo o que estava represado, atropelando qualquer tipo de ordem pública ora em suposto funcionamento.

A segurança pública representa, portanto, uma interface de uma crise muito mais abrangente e complexa. Talvez consequência natural do estado de coisas e de pessoas que compõem os poderes públicos extremamente fragilizados e em franca decomposição moral e política.

As facções estão se institucionalizando e já estão se sobrepondo às instituições legitimamente constituídas

Nessa direção há que se reconhecer que a República Federativa do Brasil, prevista no preâmbulo da Constituição Federal de 1988, bem como nos seus artigos 1.º, 3.º e 4.º, está doente ou sempre foi desde a sua proclamação, atravessando agora uma séria crise de natureza múltipla e conjuntural. A analogia que se pode criar é oportuna: trata-se de um polvo gigantesco estendendo todos os seus tentáculos com o fim de desequilibrar o Estado Federativo.

Os conflitos que incluem a violência representam justamente a posição oposta à de um Estado de formação federativa, onde se pressupõe que aqueles serão solucionados de forma totalmente pacífica, por meio da representação política, conforme dispõe o parágrafo único, do artigo 1.º da Carta Magna.

Desse modo, a violência testemunhada pela sociedade civil nos últimos dias, bem como a sua continuidade em presídios de vários estados, coloca em xeque as instituições responsáveis por uma solução rápida e eficiente, pelo menos no curto prazo, levando a crer que é preciso uma ação conjunta do governo federal e dos governos dos estados-membros, por meio de seus poderes públicos, para o devido saneamento do Estado Federativo como um todo.

O Estado Federativo “assimétrico” pressupõe um conjunto de ações sociais, econômicas e políticas voltadas a promover o desenvolvimento do país, bem como a corrigir as desigualdades existentes em cada estado-membro, por meio da cooperação entre a União, que representa o governo federal e os seus estados-membros, bastando, para isso, que se respeitem as suas devidas competências no que se refere à legislação geral e suplementar, tal como preveem os artigos 21, 22, 23 e 24 da Constituição Federal de 1988 – normas estas que estabelecem as competências privativas (da União), concorrente e comum (de caráter suplementar), além das competências administrativas.

Portanto agora é a hora “já tardia” desse trabalho conjunto e efetivo das três instâncias de governo e dos três poderes públicos cooperarem intra e entre si para enfrentarem essa grave ameaça à sociedade civil. As facções estão se institucionalizando e já estão se sobrepondo às instituições legitimamente constituídas.

Além disso, elas são capazes de uma auto-organização invejável, capacidade de liderança, acesso às armas cada vez mais potentes junto com uma tecnologia sofisticada, além de capacitação de recursos humanos. Assim, as facções criminosas se tornaram um dos tentáculos dessa crise institucional, alastrando-se por todo o Estado Federativo, acima da lei, acima do governo e acima de qualquer poder público.

No que se refere aos recursos humanos é inegável a cooptação de pessoas que trabalham na administração pública brasileira, seja na instância federal e, principalmente, estadual e municipal, no nível operacional. Exemplo: agentes penitenciários cooptados, não importa se por temor ou dinheiro ou pelas duas coisas, caracterizando um estado de corrupção que se alastra da mesma maneira em todos os órgãos governamentais a que as facções possam ter acesso.

Elas elegem políticos na Câmara dos Deputados, no Senado, nas Assembleias Legislativas e nas Câmaras de Vereadores. Elas se alimentam da fragilidade e da inoperância do Estado em não satisfazer as necessidades básicas da população, substituindo-o naquelas funções para poder se sustentarem por meio do estado de miséria das pessoas, satisfazendo assim aos seus interesses. Elas representam o poder paralelo cada vez mais crescente, mais efetivo, mais eficiente e ameaçador ao Estado Democrático de Direito.

Concomitantemente, tem-se ainda a crise política e econômica que andam de mãos dadas, sem que se possa diagnosticar com absoluta precisão a que vem antes ou a que vem depois. Trata-se do clássico dilema do ovo e da galinha.

O quadro acima descrito dá sinais contundentes de que o Estado Federativo está realmente doente, com poucas e frágeis possibilidades de cura.

Os sintomas já vinham se manifestando há muito tempo, pelo menos sob o ponto de vista macroeconômico, além das descobertas sucessivas de apropriação de recursos públicos antes e durante o governo anterior, que vêm servindo de pano de fundo da atual crise fiscal (no que se refere às contas públicas); econômica (como consequência da má gestão governamental); política (pois a maioria dos envolvidos representa o povo que os elegeu); moral (uma vez que se testemunha o abandono paulatino de valores éticos e morais) e finalmente, institucional, decorrente desse contexto.

Dessa forma é possível sintetizar alguns fatos relevantes e que demandam urgente solução dos três poderes públicos:

- a flagrante corrupção do ponto de vista da representatividade política do cidadão brasileiro;

- a flagrante corrupção do ponto de vista da segurança pública, especialmente no nível operacional;

- a falta de eficiência e eficácia da União, enquanto ente federativo que necessita ser suficientemente “forte” para debelar ou conter as ações de facções criminosas de toda a ordem, sob pena desses eventos se expandirem para as ruas expondo potencial e efetivamente a sociedade civil;

- a falta de iniciativa da Presidência da República, no que se refere à sua função de “Chefe de Governo” para convocar as Forças Armadas, no sentido de enfrentar e combater as diversas facções espalhadas nas várias regiões do país para defender a lei e a ordem pública, conforme prevê o artigo 142, da Constituição Federal;

- no mesmo sentido, a convocação da Polícia Federal para manter a ordem pública e a incolumidade das pessoas e do patrimônio público, de acordo com o disposto no artigo 144, caput e inciso I e o § 1º, incisos I a IV da mesma Carta;

- do mesmo modo, se for absolutamente necessário decretar “estado de defesa”, caso a situação venha a se tornar incontrolável, conforme dispõe o artigo 136 da Constituição Federal.

E ainda:

- a omissão do Poder Judiciário em utilizar “realmente” o Fundo Penitenciário para minimizar os graves problemas vividos nas penitenciárias do país, uma vez que aquele fundo foi criado especialmente para tal fim;

- a omissão ou a falta de efetividade do Poder Judiciário para organizar ações voltadas para a libertação de boa porcentagem dos presos que ainda não foram condenados definitivamente (em prisão preventiva ad infinitum).

A atual configuração dos três poderes públicos, isto é, Executivo, Legislativo e Judiciário, reforça incontinente o estado de corrupção sistêmica que os envolve, especialmente as várias instituições pertencentes à administração direta e indireta e os partidos políticos, esses últimos, agravando a intensidade da presente crise, até por serem os legítimos representantes da sociedade brasileira, uma vez que somos um Estado Democrático de Direito.

Dessa forma, urge que os poderes públicos da União e dos estados-membros trabalhem com eficiência, independência e harmonia, no sentido de estabelecerem novos critérios objetivos para o funcionamento de seus respectivos órgãos, de modo a lhes inserir os princípios éticos e morais necessários para a fundação de uma nova ordem social e política que venha a obstaculizar qualquer tentativa de privatizar o Estado para a busca de interesses particularistas.

Essas facções criminosas precisam ser contidas, enquadradas legal e institucionalmente.

No que diz respeito ao seu enquadramento legal, o Poder Judiciário e o Executivo precisam concretizar efetivamente a Lei de Execução Penal. Porém, o principal problema reside no seu enquadramento do ponto de vista institucional, cuja tarefa remete redundantemente a uma efetiva atuação daqueles poderes públicos.

Vera Chemim é advogada constitucionalista.
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