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Nas sociedades democráticas, a legitimidade das instituições repousa na possibilidade do controle racional das decisões tomadas pelos agentes públicos e na inserção progressiva e eficiente dos diversos atores conformadores da sociedade política no processo de governo coletivo. Isso tudo supõe o conceito de accountability.

A accountability deve ser compreendida como um conceito relacional que envolve, de um lado, a disponibilização de meios, dados e informações por parte do Poder Público e a criação de procedimentos que permitam a participação da sociedade na ação política ou administrativa e no controle dos resultados e, de outro lado, estímulos ao robustecimento da cidadania ativa.

Está-se a reivindicar, aqui, a transparência da administração pública e o envolvimento dos agentes no sentido de afirmar o Estado como verdadeira associação política de cidadãos livres e iguais. Ora, o crescimento da participação cidadã pode desencadear consequências benfazejas. O envolvimento da comunidade de interessados educa a práxis administrativa, redefinindo os termos do agir responsivo do poder público. O desafio, no caso, é sintonizar o incremento de participação com o incremento da qualidade da ação estatal. O que nem sempre é fácil, já que as dificuldades inerentes ao processo de participação escondem uma tensão entre as demandas burocráticas de gestão e as exigências democráticas de inclusão. A relação entre burocracia e democracia é, afinal, paradoxal, pois, enquanto cabe à primeira administrar, com visão de longo prazo colorida pelo interesse público, os programas que realizem as promessas residentes na Constituição, a democracia, dinamizada pelo pluralismo da arena política, pode assumir a condição de fonte de conflito com o próprio ente estatal. De qualquer modo, com dificuldades e mais dificuldades, só o robustecimento da democracia será capaz de, por intermédio da prática educativa, fortalecer a cidadania ativa para, transitando entre as autonomias privada e pública, não se se resumir ao mundo fácil das reivindicações, assumindo também responsabilidade pelas escolhas decididas e as consequências delas derivadas. Cumpre, neste ponto, dizer que, passadas quase três décadas de governo democrático, com exceção daqueles vulneráveis, já é tempo de os brasileiros se emanciparem, assumindo a condição de adultos capazes de manejar adequadamente as escolhas que construirão o seu futuro.

A inserção da accountability política na composição da forma de atuação da administração pública substancia passo importante para resolver os graves problemas derivados da assimetria de poder entre Estado e sociedade e da captura do aparelho estatal pelos grupos de interesse, situações, para nossa infelicidade, sempre presentes na história brasileira. Por isso, sendo certo que a transparência política e a criação de técnicas autorizadoras do controle das decisões e a avaliação dos resultados não eliminam, de um golpe, a prática centralizadora e seletiva do poder público, não é menos certo que elas concretizam um bom começo.

A Lei de Acesso à Informação (12.527/2011), neste ponto, oferece recursos para o início da reconfiguração da administração pública no Brasil. Transcendendo os tempos difíceis pelos quais vamos passando, com certa dose de otimismo, é possível dizer que, a partir de renovadas práticas sustentadas em indispensáveis informações, um novo conceito de governo pode emergir. Ora, com seus defeitos e virtudes, a nova lei precisa ser conhecida. E, mais do que isso, praticada. Da prática, emergirão novos hábitos e deles o reclamo do contínuo aperfeiçoamento da gestão pública nestas sempre surpreendentes terras do hemisfério sul.

Daí a oportunidade da obra escrita por Eneida Desiree Salgado, professora da Faculdade de Direito da centenária Universidade Federal do Paraná, intitulada Comentários à Lei de Acesso à Informação, que acaba de ser lançada pela Editora Atlas (São Paulo, 2015). O trabalho, objetivo e direto é de uma utilidade a toda prova. Aliás, não são simples comentários, mas, antes, excertos de doutrina dotados de amarração filosófica comprometida com o robustecimento do Estado Democrático de Direito desenhado na Lei Fundamental da República. Estou certo que a lei referida, quando bem manejada, poderá contribuir significativamente para a melhoria da qualidade e da transparência da gestão pública, isso se a sociedade assumir as suas responsabilidades. Ora o livro referido constitui auxilio valioso para todos aqueles desejosos de inaugurar um protagonismo adulto e, portanto, diferente do meramente reivindicante.

* Clèmerson Clève: Professor Titular de Direito Constitucional nos Cursos de Direito da UFPr. e do UniBrasil – Centro Universitário.

** As opiniões expressas nas colunas apresentam o ponto de vista de seus autores e não refletem o posicionamento do caderno Justiça & Direito, nem do jornal Gazeta do Povo.

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