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Promulgada em agosto de 2013, a Lei 12.846 instalou nova racionalidade no combate à corrupção: ela se destina a punir direta e objetivamente as pessoas jurídicas corruptoras (e não apenas os seus acionistas e/ou funcionários). Como toda quebra de paradigmas, gerou a respectiva onda de reações adversas, que defendem desde a impossibilidade de pessoas jurídicas serem punidas até a inviabilidade de sua responsabilização objetiva, passando pela tese da eventual imunidade a empresas grandes demais (too big to fail) ou a pessoas jurídicas boas demais (too good to fail). O que não falta são teses que tentam esvaziar a eficácia da Lei 12.846/2013 – a maioria delas recorrendo ao passado para tentar explicar o futuro.

Ocorre que a Lei Anticorrupção não pode ser interpretada como se fosse mero capítulo do Direito Penal – ou do Direito Administrativo Sancionador. Ela não é uma continuação dessas leis, pois sua racionalidade jurídica não convive bem com as premissas de tais matérias. Existe aqui significativa incompatibilidade lógico-jurídica. Afinal, estas disciplinas, de inegável relevância social, foram cunhadas há séculos e se destinam, sobretudo, a inibir condutas indevidas por meio de punições a eventos pretéritos efetivamente ocorridos e provados – através de sanções aflitivas ao ser humano (desde a pena de morte, em alguns sistemas, até as multas e restrições a determinados direitos e liberdades). Como envolvem a institucionalização de sérias agressões ao ser humano em si mesmo, precisam ser compreendidas cum grano salis, parametrizadas pelos direitos fundamentais.

Porém e se bem vistas as coisas, a Lei Anticorrupção tem parentesco mais próximo com o Direito Ambiental e com o Direito da Concorrência. Nestes casos, a lógica é prospectiva e acautelatória

Porém e se bem vistas as coisas, a Lei Anticorrupção tem parentesco mais próximo com o Direito Ambiental e com o Direito da Concorrência. Nestes casos, a lógica é prospectiva e acautelatória. Estas matérias nem sequer cogitam da lógica binária dano-reparação; não são viciadas em danos, subjetividades e nexos causais. Pense-se numa espécie animal ou vegetal extinta; reflita-se a propósito de monumentos destruídos; cogite-se sobre a supressão da concorrência ou de preços fabricados em cartéis: em todos estes casos, o que a lei pode – e deve – fazer é instalar incentivos com elevada carga normativa, a fim de que não haja o dano irreversível. Tanto o Direito Ambiental quanto o Concorrencial e a Lei Anticorrupção funcionam com o intuito de que os agentes econômicos sejam constrangidos a adotar todas as medidas possíveis e imagináveis para que tais prejuízos não ocorram. O ônus de inibir os ilícitos lhes é normativamente transferido. Isso porque, caso eles ocorram, não haverá meios de restaurar o que foi destruído. O direito precisa se esforçar em não deixar o dano acontecer de fato – instituindo obrigações aos agentes econômicos (pessoas físicas e jurídicas). Em contrapartida, caso tais pessoas não façam o que é normativamente devido, precisam experimentar as respectivas consequências – que não são subjetivo-aflitivas em sentido estrito, mas sim econômicas.

Ora, desde que Ronald Coase demonstrou que as pessoas organizam pessoas jurídicas com o intuito econômico de diminuir os seus custos de transação (é muito mais barato organizar uma sociedade empresarial por meio de um só contrato do que realizar centenas de contratos todos os dias), sabe-se que as empresas existem devido a razões econômicas. As pessoas não criam sociedades por veleidade, afeto ou prazer, mas sim para administrar os bens e fatores de produção. São estruturas jurídicas colocadas à disposição dos agentes econômicos, a fim de que negócios possam ser feitos com maior eficiência.

Contudo, fato é que as sociedades podem obter lucros tanto de condutas lícitas quanto de comportamentos ilícitos. Esta técnica jurídica de organização de bens e fatores de produção pode gerar riqueza para os sócios através de atos de corrupção. Isto é, mesmo quando se der a administração criminosa de bens e fatores de produção ilícitos, ainda assim os sócios perceberão os respectivos lucros. As sociedades fazem pagamentos e distribuem ganhos advindos de atividades lícitas e de atividades ilícitas – tanto faz. Vige a máxima do peculia non olet: o dinheiro não fede, pouco importa sua origem. É neste ponto que precisa incidir a Lei Anticorrupção.

O problema do ilícito de corrupção, portanto, desdobra-se em dois planos: o primeiro deles, mais primário, diz respeito à conduta individual do corruptor e do corrompido. Para esta ordem de comportamentos, reina absoluta a lógica do Direito Penal: carga subjetiva, nexo causal, dano, provas exaustivas etc. etc.. Já, o segundo plano, é mais sofisticado e não se destina a punir pessoas físicas por meio de sanções aflitivas, mas sim a inibir, punir e, se for o caso, destruir as pessoas jurídicas que se prestem a institucionalizar a corrupção. Estas pessoas podem ser submetidas à pena de morte – eis que não são seres humanos, mas sim criações artificiais que não sentem dor.

Essa específica racionalidade permite a compreensão de que não há imunidade à Lei Anticorrupção – não há pessoa jurídica que seja imune

Aqui, entra em cena a Lei Anticorrupção – que nada mais faz do que instalar custos extraordinários a todas as pessoas jurídicas que pretendam relacionar-se com o governo. Querem fazer negócios com o Estado? Ótimo, sintam-se à vontade, desde que desenvolva apurados e transparentes mecanismos internos – leia-se custos – que proíbam a prática de atos tendentes à corrupção. Se isso não existir e se corrupção houver, a pessoa jurídica pode até ser submetida à pena capital e ser juridicamente desconstituída. O direito brasileiro não mais admite pessoas jurídicas cujos funcionários ou diretores pratiquem atos de corrupção.

O que se deseja, por conseguinte, é que a corrupção não exista. Afinal, gera danos macroscópicos. Segundo dados do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD , ela movimenta aproximadamente US$ 1 trilhão/ano – e custa até 17% do PIB de países. Em termos mais simples: a corrupção não atinge um par de pessoas (o corrupto e o corrompido), mas milhares delas. Ela impede que as nações se desenvolvam – e que a riqueza seja distribuída de forma equânime. A corrupção é tão ou mais grave e gera danos tão ou mais devastadores do que as catástrofes ambientais e os crimes concorrenciais. Por isso que a Lei Anticorrupção voltou sua atenção para as pessoas jurídicas, responsabilizando-as objetivamente por atos e fatos que possam tender à prática de atos corruptos, ainda que estes não se realizem e ainda que não haja danos. Ela não se preocupa somente com o passado, mas sim e muito mais, com o futuro.

Essa específica racionalidade permite a compreensão de que não há imunidade à Lei Anticorrupção: sociedades empresariais, com os sem personalidade jurídica, associações benemerentes, igrejas, organizações de autorregulação profissional (ordens e conselhos); partidos políticos – não há pessoa jurídica que seja imune aos deveres positivos prescritos na Lei 12.846/2013. Ou, melhor, há: basta que não haja a prática de quaisquer atos de corrupção, como se espera em sociedades civilizadas.

*Egon Bockmann Moreira: Advogado. Doutor em Direito. Professor da Faculdade de Direito da UFPR. Professor visitante da Faculdade de Direito de Lisboa (2011) e do Centro de Estudos de Direito Público e Regulação - CEDIPRE, da Faculdade de Direito de Coimbra (2012). Conferencista nas Universidades de Nankai e de JiLin, ambas na China (2012). Palestrante nos cursos de MBA, LLM e Educação Continuada na FGV/RJ. Escreve às segundas-feiras, quinzenalmente, para o Justiça & Direito.

** As opiniões expressas nas colunas apresentam o ponto de vista de seus autores e não refletem o posicionamento do caderno Justiça & Direito, nem do jornal Gazeta do Povo.

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