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I- Um evento de grande relevo social

1. As gravíssimas rebeliões carcerárias

A cidade de Foz do Iguaçu recebeu nos dias 4 e 5 de maio, juízes de vários estados para o evento promovido pela Associação dos Magistrados Brasileiros para tratar dos problemas atuais da execução penal, tragicamente marcados pelas mortes de 126 presos nos conflitos dos presídios nos Estados do Amazonas, Paraíba, Roraima e Rio Grande do Norte. Daí a razão de ser deste I Fórum Nacional de Execução Penal, com destaque para os problemas da prisão.

Na abertura dos trabalhos, os presidentes da AMB, Jayme Martins de Oliveira Neto, da Associação dos Magistrados do Paraná (AMAPAR), Frederico Mendes Junior e o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), João Otávio de Noronha, Corregedor Nacional de Justiça, transmitiram as graves preocupações dos juízes com a reiteração dos atentados à segurança pública e os confrontos sanguinários ocorridos nas aludidas unidades federativas ao mesmo tempo que convocaram todos os seus colegas, responsáveis pelas varas de execuções penais de todo o país, para um mutirão de trabalho e de esperança para reverter o quadro que envolve o número superior a 620 mil presos. Essa grandiosa tarefa deve ser cumprida não somente quanto aos aspectos da satisfação da pena privativa de liberdade (transferência de regimes, autorizações de saída, remição e livramento condicional) mas, também, na instalação e presidência dos Conselhos da Comunidade para efetivar o processo de diálogo entre o preso e a sociedade com a moderação do Estado e nos programas didáticos junto às universidades para estimular os jovens a conhecer e participar como atores desse processo. Também na noite de overture falou o desembargador Ruy Muggiati, comunicando atividades do Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário do Estado do Paraná, que tem desenvolvido notável trabalho de levantamento da situação dos presídios e perfil dos presos.

2. Contribuições específicas e material de trabalho

Diversas contribuições em forma de palestras trataram de vários temas e apresentaram propostas: (a) “Sugestões processuais” (min. Sidnei Beneti); (b) “Atualização da Lei de Execução Penal” (conselheira Maria Tereza Uile Gomes, do CNPCP); (c) “A responsabilidade do Estado pelas rebeliões carcerárias” (René Ariel Dotti); (d) “Alternativas para o aperfeiçoamento do sistema carcerário” (juiz Paulo Eduardo de Almeida Sorci).

Uma seção distinta no Fórum reuniu magistrados para falarem dos “Exemplos de ações concretas e bem sucedidas em execução penal”, reunindo: (a) juíza Gisele Souza de Oliveira (ES) “A reconstrução do sistema penitenciário do Espírito Santo”; (b) juiz Eduardo Lino Bueno Fagundes Júnior (PR) “Sistema eletrônico de execução unificado e concessão automatizada de direitos”; (c) desembargador Silvio Marques Neto (SP) “O sistema APAC de reintegração de presos”; (d) juiz Albino Coimbra Neto (TJMS) “Projeto revitalizando e pintando a Educação com liberdade”.

Todo o material recolhido no evento foi objeto de discussão em um grupo de trabalho coordenado pelos seguintes magistrados: Juliana Arantes Zanin, Nicola Frascati Junior e Rogério de Vidal Cunha, do Paraná; Jussara S. dos Santos Wandscheer (Santa Catarina) e Geilza Fátima Cavalcanti Diniz (Distrito Federal).

II - A responsabilidade do Estado pelas rebeliões carcerárias

(Resumo do roteiro de minha palestra)

(3) Erros monumentais talhados em pedra

Em 13 de março de 2012, no dia seguinte às condenações de José Dirceu, José Genuíno e Delúbio Soares, no processo designado Mensalão, o ministro da Justiça José Eduardo Cardoso, em evento organizado pelo LIDE (Grupo de Líderes Empresariais), afirmou: “Se fosse para cumprir muitos anos na prisão, em alguns dos nossos presídios, eu preferiria morrer”.

(4) A permanente contrariedade à Constituição

O ministro Celso de Mello, em determinado julgamento, lembrou que o Supremo, em diversos casos, qualificou o sistema prisional brasileiro como revelador de um “estado de coisas inconstitucional”, devido ao grau de abandono dos estabelecimentos penitenciários e pelo descumprimento da Lei de Execução Penal (LEP). Segue-se um demonstrativo de leis fundamentais: (a) Constituição Imperial (24.03.1824) “As cadeias serão seguras, limpas e bem arejadas, havendo diversas casas para separação dos réus, conforme suas circunstâncias e natureza de seus crimes”. (Art. 179, § 21) (b) Foram omissas as Cartas de 1891,1934,1937 e 1946 (c) Paradoxalmente, durante o regime militar, as Constituições de 1967 e 1969, decretaram “Impõe-se a todas as autoridades o respeito à integridade física e moral di detento e do presidiário” (arts. 150, §14 e 153, § 14).

A lei fundamental de 1988, inspirada em fontes de liberdade e dignidade da pessoa humana contém expressivas declarações: art. 5, XLVIII (48º) “a pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado”; art. 5º, XLIX (49º): “é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral”; art. 5º, L (50º): “às presidiárias serão asseguradas condições para que posam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação”.

Seguindo essa orientação, o art. 300 do CPP, com a redação que lhe deu a Lei nº 12.403/2011, estabelece: “As pessoas presas provisoriamente ficarão separadas das que já estiverem definitivamente condenadas, nos termos da Lei de Execução Penal”.

(5) Tentativas de codificação das normas de execução penal

(a) 1933. Anteprojeto de Código Penitenciário da República elaborado por Candido Mendes de Almeida, Lemos Brito e Heitor Carrilho; (b) 1957 (abril). Anteprojeto de Código Penitenciário, redigido por Oscar Stevenson; (c) Surge, também em 1957, a Lei nº 3.257, de 2 de outubro, dispondo sobre normas gerais do regime penitenciário. Os preceitos não dispunham de sanções em caso de descumprimento. Tal diploma, inspirado nas Regras Mínimas para tratamento do delito e do delinquente (Bélgica, 1950), tinha apenas um valor simbólico; (d) 1960. Anteprojeto do Código das Execuções Penais, de autoria de Roberto Lyra; (e) 1970. Anteprojeto do Código de Execuções Penais, elaborado por Benjamin de Moraes Filho, tendo na subcomissão revisora: José Frederico Marques, José Salgado Martins e José Carlos Moreira Alves.

(6) Manifestações e eventos de grande repercussão

(a) 1970 (Recife). IV Congresso Nacional de Direito Penal e Ciências Afins; (b) 1971. Moção de Friburgo, no I Encontro Nacional de Secretários de Justiça e Presidentes de Conselhos Penitenciários; (c) 1973.Moção de Goiânia. Seminário de Direito Penal e Criminologia, em homenagem ao cinquentenário de nascimento de Ruy Barbosa (d) 1975. Criação do Conselho Nacional de Política Penitenciária (Dec. 76.387); (e) 1976-1977. A CPI do Sistema Penitenciário. O Deputado Ibrahim Abi-Ackel, gravou no relatório que as prisões brasileiras eram “ambiente de estufa em que a ociosidade é a regra (...) tipo de confinamento promíscuo, definido alhures como ‘sementeiras de reincidência’ dados seus efeitos criminógenos”.

(7)A Lei nº 6.416, de 24 de maio de 1977

Apesar de alterações relevantes no Código Penal (sursis, livramento condicional, etc.), fracassou totalmente ao dispor que os regimes de execução da pena deveriam ser “regulamentados” por lei local, ou, na sua falta, por provimento do Conselho Superior da Magistratura ou órgão equivalente. Somente dois ou três Estados elaboraram leis e raros tribunais redigiram provimentos. Continuou o regime desordenado na execução das penas privativas de liberdade.

(8) A Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210, de11 de julho de 1984)

Os 11 mandamentos da LEP: 1º- Os fins da pena; 2º Uma lei federal de execução penal; 3º O princípio da dignidade da pessoa humana; 4º A intervenção judicial nos casos legalmente previstos; 5º A consagração do princípio da legalidade; 6º A classificação dos condenados; 7º Deveres e direitos do condenado e do internado; 8º Estabelecimento dos regimes e sua progressão; 9º Definição dos estabelecimentos penais; 10º A remissão da pena; 11º O processo de diálogo (preso com a sociedade e a intermediação do Estado: Conselhos da Comunidade).

(9) A falta de providências normativas e materiais

Considerando o fracasso da Lei nº 6.416/1977, a comissão redatora do anteprojeto da Lei de Execução Penal redigiu um dispositivo para possibilitar a implementação do novo diploma, o art. 203, com o seguinte teor: “No prazo de 6 (seis) meses, a contar da publicação desta lei [1], serão editadas as normas complementares ou regulamentares, necessárias à eficácia dos dispositivos não auto-aplicáveis. §1º. Dentro do mesmo prazo deverão as unidades federativas, em convênio com o Ministério da Justiça, projetar a adaptação, construção e equipamento de estabelecimentos e serviços penais previstos nesta Lei. §2º Também, no mesmo prazo, deverá ser providenciada a aquisição ou desapropriação de prédios para a instalação de casas de albergados. §3º O prazo a que se refere o caput deste artigo poderá ser ampliado, por ato do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, mediante justificada solicitação, instruída com os projetos de reforma ou de construção de estabelecimentos. §4º O descumprimento injustificado dos deveres estabelecidos para as unidades federativas implicará na suspensão de qualquer ajuda financeira a elas destinada pela União, para atender às despesas de execução das penas e medidas de segurança”.

(10) A permanente negativa de vigência da lei federal

Entre muitos outros dispositivos, que sistematicamente são desatendidos, merecem destaque: (a) LEP art. 85. “O estabelecimento penal deverá ter lotação compatível com a sua estrutura e finalidade. Parágrafo ún. O CNPCP determinará o limite máximo de capacidade do estabelecimento, atendendo a sua natureza e peculiaridades”; (b) A não implementação da Casa do Albergado; (c) LEP art. 84. “O preso provisório ficará separado do condenado por sentença transitada em julgado”. §1º “O preso primário cumprirá pena em seção distinta da reservada para os reincidentes”; (d) LEP art. 86, § 1º. “A União Federal poderá construir estabelecimento penal em local distante da condenação para receber, mediante decisão judicial, os condenados à pena superior a 15 anos, quando a medida se justifique no interesse da segurança pública ou do próprio condenado” [2].

A Lei de Execução Penal entrou em vigor em 13.02.1985, como foi dito acima. Mas somente em maio de 2006, em Catanduvas (PR), entrou em funcionamento a primeira penitenciária de segurança máxima. Ou seja: 21 anos depois! Seguiram-se as unidades de Campo Grande (21.12.2006); Porto Velho (19.06.2009) e Mossoró (03.07.2009). A quinta, em Brasília, está em Construção. (Continua)

Notas:

[1] A LEP entrou em vigor no dia 13 de fevereiro de 1985.

[2] A Lei nº 10.792/2003, deu ao dispositivo a seguinte redação: A União Federal poderá construir estabelecimento penal em local distante da condenação para recolher os condenados, quando a medida se justifique no interesse da segurança pública ou do próprio condenado”.

* René Ariel Dotti, advogado, professor Titular de Direito Penal pela Universidade Federal do Paraná, ex-Professor de Direito Processual Penal em curso de pós-graduação da mesma instituição, Corredator dos projetos que se converteram na Lei nº 7.209/1984 (reforma da Parte Geral do Código Penal) e Lei nº 7.210/1984 (Lei de Execução Penal); Medalha Mérito Legislativo da Câmara dos Deputados (2007); Medalha Santo Ivo – Patrono dos Advogados, conferida pelo IAB (2011); Comenda do Mérito Judiciário do Estado do Paraná, concedida pelo TJ-PR (2015); Redator do anteprojeto sobre o procedimento do Júri (Lei nº 11.689/2008); Autor do Curso de Direito Penal- Parte Geral, 5. ed., Thompson Flores/Revista dos Tribunais, 2013, Comentários ao Código Penal, vol. 1, tomos 1 e 2, e diversos outros livros e artigos de Direito.
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