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| Foto: Marcelo Andrade/Gazeta do Povo

As crises política e econômica não tiram a força da Constituição Federal brasileira na opinião do advogado Flávio Pansieri. Para ele, o Brasil vive um momento muito importante em que o funcionamento das instituições demonstra a solidez da democracia do país. Presidente do Conselho Fundador da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst), Pansieri conversou com o Justiça & Direito no início desta semana, em que a entidade realiza o XII Simpósio Brasileiro de Direito Constitucional – o evento começou na quinta-feira (26) e vai até sábado (28). Durante a conversa, o advogado fez uma análise sobre o andamento do processo de impeachment. Na opinião dele, houve crime de responsabilidade, mas caberá ao Congresso, em um julgamento político, definir se a presidente Dilma Rousseff deve ou não ser cassada. Pansieri lembrou que o processo ainda não está finalizado e ainda é cedo para aqueles que pretendem comemorar. O jurista também fez uma retrospectiva do constitucionalismo brasileiro e apontou a liberdade, um dos principais assuntos debatidos no evento da ABDConst, como fundamental para a convivência em sociedade e o desenvolvimento da política. Pansieri, que também é conselheiro federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), o foco deve sair do Judiciário e retornar para a política, que deve resolver as grandes questões nacionais.

No atual momento pelo qual o país passa, a Constituição Federal é citada diariamente por especialistas e leigos. Como o senhor avalia o nível de maturidade da nossa sociedade em relação ao texto constitucional?

Quando nós olhamos para os debates que todos os dias observamos, para importância que tomam os ministros do Supremo Tribunal Federal, quando a sociedade conhece todos os ministros do Supremo e suas posições quanto a alguns temas, e todos os dias a Constituição é pauta dos grandes veículos de comunicação, me parece que nós estamos afirmando a existência de um estado constitucional democrático, onde as pessoas acreditam em um pacto social que foi firmado há 28 anos. Esse momento que estamos vivendo na democracia brasileira é um dos mais longos de democracia constitucional.

O mais longo em toda a história da República?

Na primeira Constituição, de 1824, não tínhamos uma democracia. Em 1889, passamos para um regime republicano, constitucional, mas ainda em certa democracia mitigada, onde o que interessava era somente a participação dos poderosos. A primeira Constituição que supostamente representaria os interesses da coletividade já é a Constituição do Estado Novo, em 1934, que por sua vez vem eivada de um sentimento que eclode em, 1937, em numa Constituição nazi-fascista. Getúlio Vargas, que era um grande populista e expressou na Constituição de 1937 o seu sentimento de Estado, alinhando-se na história no lado oposto do que dizia Constituição, ao lutar ao lado dos Aliados e não do Eixo, que supostamente seria o adequado. Depois, em 1946, tivemos a primeira Constituição verdadeiramente democrática, que dura poucos anos, porque Vargas volta com aquele espírito interventor em 1951. Após a morte dele, em 1953, vivemos certo período de estabilidade democrática até 1964. Isso só vem ressuscitar novamente em 1988.

Então, este é o maior e mais importante momento da democracia brasileira. Qualquer afirmação de forma diversa dessa é talvez um desconhecimento histórico. Talvez se represente uma omissão quanto a fatos históricos importantes da nossa república e da nossa democracia. A Constituição representa um grande marco não só para o Brasil, mas para a América Latina. Nenhum outro país na América Latina possui uma estabilidade institucional tão pujante quanto a nossa e sem hipóteses de ruptura nem sequer próxima ao momento em que nós vivemos. Por mais que tenhamos duas vezes entrado em processos de impeachment, mesmo assim, não temos violência, não temos guerra-civil, temos as instituições funcionando, e temos as regras do jogo sendo ditadas pelo Supremo Tribunal Federal.

No que o nosso constitucionalismo se diferencia de outros países da América Latina?

O nosso constitucionalismo não tem nenhuma conexão com um suposto neoconstitucionalismo sul-americano de alguns países, como Venezuela. Mas sim com o constitucionalismo do modelo americano, europeu, onde as instituições fortes determinam a democracia. Isso impede que as maiorias momentâneas imponham às minorias a sua força. A nossa Constituição, nesse momento em que nós vivemos, é o símbolo disso.

Esse talvez seja o momento importante e mais feliz da história da democracia brasileira, onde as instituições funcionam, onde a participação popular tem sido fundamental na tomada de decisão e, mais importante, a liberdade de expressão tem sido um signo desse momento que nós vivemos. A liberdade de manifestação sendo respeitada pelo Estado e pelos entes da sociedade civil.

Com relação ao processo de impeachment, que ainda está ocorrendo, já é possível trata-lo como definido?

O processo de impeachment é talvez uma expressão do momento que nós vivemos. A Constituição de 1988 trouxe uma série de prerrogativas ao presidente da República, mas também trouxe limites aos seus atos. Mesmo se a presidente da República tivesse tido 80% dos votos, isso não legitimaria ela a atuar contrariamente à Constituição. Por isso, a Constituição no artigo 85 traz uma série de dispositivos que afirma expressamente o que são crimes de responsabilidade.

Na sua opinião houve crime de responsabilidade?

A minha posição, após estudar os autos apresentados no Congresso Nacional e participar dos debates no âmbito do Conselho Federal da OAB, é que a presidente cometeu crime de responsabilidade. Todavia, cabe ao Congresso decidir se para esse crime é adequado impor a sanção de impeachment ou não. Esse julgamento é meramente político, não necessariamente se reveste das garantias que um julgamento judicial deve se revestir. Creio que voltar à Câmara dos deputados é impossível. O Senado mostrou, por 55 votos, que entende que há indícios de crime de responsabilidade. Mas me parece que é cedo para afirmar que essa decisão está concretizada.

Por que ainda é cedo na sua opinião?

Se imaginarmos em um plano político, faltam apenas dois votos para a presidente da República para que não se confirme o impeachment. Esse quadro ainda não é estável, depende de uma série de fatores, inclusive de dar certo o governo provisório, do então presidente Michel Temer, que sofre uma série de pressões. Não entendo esse processo como um processo findo, é um processo pelo qual o Brasil passa. Essa é uma conta que muitas pessoas não fizeram, se houver 53 votos a favor, mesmo assim não haverá cassação. Quem afirmar que esse processo já se encerrou, está sendo leviano, na medida em que há um devido processo legal a ser garantido e forças políticas atuando. Ainda há muito tempo e muitos debates até o julgamento final. Quem estiver comemorando já, é melhor se conter, porque as coisas podem mudar nesse período.

Situações como a gravação do senador Romero Jucá, que citava o impeachment como alternativa para barrar a Lava Jato, podem colocar em dúvida a credibilidade do processo?

A ausência de credibilidade é condição sine qua non dos últimos governos no Brasil, em especial no governo federal. A presidente da República tinha sido flagrada semanas antes, com o ex-presidente Lula em uma manobra para também fugir da Lava-Jato. A ausência de credibilidade tinha sido uma constante nos sucessivos governos. Talvez até mesmo por uma ausência de uma atuação mais célere do Judiciário. Eu tenho defendido há mais de 10 anos que os julgamentos contra políticos deveriam ter prioridade frente a quaisquer julgamentos. Seja para que sejam inocentados, seja para sejam condenados. Não é possível imaginar que possamos passar tanto tempo a mercê de julgamento do STF, sem saber o que nossos representantes efetivamente fizeram.

Há uma crise de representatividade no Brasil?

As instituições brasileiras não estão com crise de representatividade. A crise de representatividade está nos nossos parlamentares, no Executivo e nos partidos políticos, que não conseguem observar esse quadro, ou não podem. Ao contrário do que todos afirmam, o Congresso Nacional nada mais é do que a representação da sociedade brasileira. Não existem parlamentares corruptos, existe uma sociedade corrupta, que tolera esse tipo de atuação. Quando ouvi as críticas feitas aos parlamentares durante a votação do impeachment, eu não entendi. Pois eles nos representam. O parlamento brasileiro é a cara da sociedade brasileira. Pode não ser a cara que gostaríamos de ver no espelho, mas aquele é o nosso rosto, é a expressão do homem médio brasileiro. Eles não são diferentes de nenhum de nós. Nós, de algum modo, fazemos parte daquele processo quando elegemos aquele time. Assisti aos discursos e, dos dois lados, ouvi excelentes manifestações, corajosas; ouvi outras coisas que eu não gostaria de ter ouvido. Me entristeço por não nos vermos representados no parlamento e não percebermos que, mesmo não querendo, eles nos representam.

Como a advocacia vai se posicionar daqui para frente diante das questões políticas e de grande interesse social?

A advocacia brasileira manteve-se o máximo possível distante dos amores e desamores ideológicos. Ela foi criticada na gestão passada [do Conselho Federal da OAB] inteira por ter silenciado em muitos momentos em favor do governo A ou do governo B. E nessa gestão, certamente terá a mesma postura. A função da advocacia, conforme preconiza a Constituição e o Estatuto da Advocacia, é lutar pelos interesses da coletividade, jamais vinculadas a cores partidárias. Isso é algo muito importante, que deve ficar claro, a Ordem dos Advogados do Brasil esteve ao lado de movimentos distintos ao longo dos últimos anos, apoiou manifestações que fossem a favor da sociedade brasileira. Óbvio que quando ela o faz, um determinado grupo pode ficar chateado e entender que não foi prestigiado. Se fizermos um histórico dos últimos anos, vamos ver que a advocacia tem atuado a salvo dos amores partidários. A Ordem tem ido muito bem em apoiar as causas que são de interesse da coletividade.

A Abdconst está realizando o Simpósio de Direito Constitucional em um momento considerado histórico para o Brasil, enquanto o processo de impeachment está sendo conduzido pelo Congresso Nacional. Qual a influência desse momento no evento?

Esse congresso talvez seja o mais acalorado da história. Por certo, os participantes do evento têm as suas opiniões. Nós conseguimos congregar pessoas dos mais variados segmentos, tanto pessoas mais à esquerda, quanto os que estão mais à direita. Essa pluralidade se encontra no evento. A ideia é fazer um momento de reflexão dos erros e acerto propostos. Nós não vivemos entre o yin e o yang, ou entre o bem e o mal. Vivemos em um Estado constitucional de escolhas. Tanto de um lado quanto do outro, temos escolhas certas e escolhas erradas. Temos que encontrar um meio termo porque o processo democrático depende disso. A Constituição nos trouxe a possibilidade de conviver com a diferença. Essa é a grande virtude de 1988, é não permitir que o Estado continuasse impondo sua vontade e forma de pensar. A sucessão de partidos eleitos, de 1988 para cá, mostra isso: vivemos um grande momento porque acreditamos na democracia acima de tudo. Nós não acreditamos em um Estado Socialista ou em um Estado Liberal, nós acreditamos no estado democrático. O sentimento de alteridade é fundamental nesse momento. Se nós não imaginarmos no outro a nossa realidade, não seremos capazes de conviver com a existência alheia.

Entre os assuntos abordados durante o evento, o que o senhor destacaria?

O tema do congresso em si, que é liberdades. Quando, há um ano e meio, nós pensamos o congresso, sabíamos que esse seria um momento de grande tensão. Não sabíamos, nem imaginávamos o impeachment acontecendo, mas sabíamos que o Brasil estaria enfrentando um momento de turbulências, em razão da inclinação econômica que o Brasil tomava. As grandes rupturas democráticas partem, infelizmente, de rupturas econômicas. Quando a sociedade não tem mais no que se apegar, ela arranja uma bandeira ou um culpado para modificar o que tem que ser mudado. A proposta desde aquela época era discutir as liberdades exatamente por isso. O exercitar das liberdades precisa de um contorno democrático. Os atores do Estado precisam compreender a liberdade de manifestação; e os atores privados – nós que estamos nas ruas – precisamos entender os limites dessa manifestação.

E, na sua opinião, qual a ideia principal que deve ficar do evento?

Talvez hoje nós percebemos, a partir do evento, que o mundo não é tão simples quanto querem nos dizer. O mundo não está dividido entre direita e esquerda, progressistas e conservadores. Você pode ser da esquerda em diversos temas, e ser conservador em outros assuntos. Você pode ser supostamente da direita, e ser um progressista em diversos temas. Mas, no fundo, ambos os lados têm que estar conectados com uma coisas chamada democracia. Se isso não for uma coisa fundamental, nós viveremos o fascismo ou stalinismo. Temos que compreender que o mundo não é o Fla-Flu, a sociedade brasileira não é mais isso. No dia em que fizermos isso, poderemos ter partidos mais fortes. Enquanto não fizermos a autocrítica de quem somos e de que não podemos apoiar certos grupos irrestritamente, continuaremos naquela política rasteira, sectária, com grupos arraigados ao poder.

Você acredita que o caminho está na política, então?

Temos que resgatar a importância do Legislativo brasileiro. Não consigo mais olhar para os noticiários e ver que o grande protagonista é o Judiciário. O Judiciário não foi eleito para dizer quais os sentidos que o Estado deve ter. Precisamos retomar na política como centralidade do sistema. Se não acreditarmos mais nisso, vamos optar por um grande salvador que trará suas bênçãos sobre nós. E isso é o que não imagino possível, é por isso que eu prefiro viver na diferença.

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