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Shaquille ganhou uma segunda chance graças a uma nova abordagem judicial  que leva  em conta o amadurecimento do cérebro jovem | Laura Morton/NYT
Shaquille ganhou uma segunda chance graças a uma nova abordagem judicial que leva em conta o amadurecimento do cérebro jovem| Foto: Laura Morton/NYT

Em uma tarde nublada no distrito de Bayview, Shaquille, de 21 anos, estava dirigindo o Acura 1991 de sua irmã quando outro carro não respeitou a placa de ‘Pare’ e quase bateu nele.

Os dois veículos pararam, e Shaquille e o outro motorista saíram. “Só queria conversar”, recorda ele.

Mas a conversa virou uma discussão, e a briga só acabou quando Shaquille derrubou o outro motorista com um cruzado de esquerda. Mais tarde naquele dia, foi levado pela polícia e acusado de agressão.

Ele já possuía uma condenação por contravenção — por uma briga em uma lavanderia quando tinha 19 anos. E desta vez acabaria na prisão.

Em vez disso, Shaquille — que falou sob a condição de não revelar o nome completo para que o registro não coloque em risco suas chances de encontrar um emprego — foi parar no Tribunal de Jovens Adultos de San Francisco, que lhe ofereceu uma alternativa.

Esses são jovens em idade de transição. Espera-se que façam algumas escolhas erradas. Todos nós fizemos. É assim que a gente aprende.

Carole McKindley-Alvarez

Por cerca de um ano, ele teria que ir ao tribunal todas as semanas para se reportar ao juiz Bruce E. Chan. Os responsáveis pelos casos do tribunal coordenariam uma ajuda para que encontrasse emprego, moradia e educação. Shaquille precisaria comparecer a sessões semanais de terapia e aulas para aprender a lidar com os estresses da vida.

Em troca, evitaria ser julgado e, caso completasse o programa com sucesso, a acusação pelo crime de agressão seria reduzida a um delito menor. Isso era importante porque um registro de agressão faria com que fosse quase impossível para ele conseguir um emprego.

Cérebro imaturo

“Esses são jovens em idade de transição”, explica Carole McKindley-Alvarez, que supervisiona a gestão desses casos para o tribunal. “Espera-se que façam algumas escolhas erradas. Todos nós fizemos. É assim que a gente aprende.”

Surpreendentemente, essa filosofia legal alternativa não nasceu de preocupações com prisões superlotadas ou cortes sobrecarregadas, mas do estudo da neurociência.

Os pesquisadores há tempos já sabem que o cérebro adolescente está continuamente se reconfigurando, fazendo novas conexões e podando neurônios desnecessários à medida que amadurece. No entanto, apenas recentemente ficou claro que o processo se estende além do início da idade adulta.

Os jovens adultos podem ser considerados responsáveis por determinados crimes e não por outros?

Dentro dessa pesquisa está uma questão legal incômoda: se seus cérebros ainda não estão totalmente maduros, quão responsáveis por seus crimes são os adultos com idades entre 18 e 24 anos?

Eles deveriam ser tratados mais como adolescentes, no sistema juvenil, que comparativamente é mais indulgente, ou com as regras que servem para os mais velhos? Os jovens adultos podem ser considerados responsáveis por determinados crimes e não por outros?

Justiça e biologia

Depois de assistir a uma palestra em Harvard sobre desenvolvimento do cérebro, George Gascón, procurador geral de San Francisco, decidiu enfrentar essas questões. Em 2015, ele e Wendy Still, chefe do setor de liberdade condicional da cidade, estabeleceram o Tribunal de Jovens Adultos, um sistema de justiça híbrido entre o adulto e o juvenil adaptado à biologia e às circunstâncias de 1.824 infratores.

Gascón e seus colegas argumentam que a falta de maturidade pode contribuir para o comportamento criminoso. Sentenças de adultos constituem uma punição cruel e incomum que, segundo eles, minam qualquer possibilidade de reabilitação.

Sentenças de adultos constituem uma punição cruel e incomum que, segundo eles, minam qualquer possibilidade de reabilitação

Treinados por um psicólogo clínico em neurociência moderna, os membros da equipe do tribunal estão tentando aplicar as descobertas científicas para evitar o envolvimento permanente desses jovens com o sistema de justiça criminal.

“Esta é na verdade uma oportunidade demográfica. É um grupo de pessoas muito maleáveis e com imensa capacidade para mudanças”, afirma Chan.

O cérebro em desenvolvimento

Durante a maior parte do século passado, cientistas assumiram que os cérebros já estavam totalmente desenvolvidos aos 18 anos. Então, em 1999, o doutor Jay N. Giedd, do Instituto Nacional de Saúde Mental, publicou um estudo na Nature Neuroscience que desafiava essa certeza.

Ele usou exames de ressonância magnética para acompanhar o desenvolvimento de pessoas com idades entre quatro e 22 anos. O estudo pretendia explorar as mudanças estruturais durante a transição da infância para a adolescência, mas Giedd descobriu que as conexões neurais continuavam a ser refinadas bem depois de o jovem fazer 18 anos.

Uma série de decisões da Suprema Corte abolindo a pena de morte para jovens foi parcialmente baseada na ciência que sugere que os cérebros dos adolescentes ainda não estão totalmente desenvolvidos

Durante a década seguinte, outros pesquisadores confirmaram que o cérebro parece passar por uma explosão de crescimento e conectividade depois dos 18 anos, mas poucos especialistas tentaram desvendar mais profundamente essas observações. Em 2012, uma análise abrangente do desenvolvimento do cérebro omitiu dados de jovens de idades entre 18 e 21 anos porque não havia estudos suficientes.

Mas, se os neurocientistas não estavam interessados nas implicações, os estudiosos legais estavam. Uma série de decisões da Suprema Corte – sendo a mais notável a Roper versus Simmons que, em 2005, aboliu a pena de morte para jovens – foi parcialmente baseada na ciência que sugere que os cérebros dos adolescentes ainda não estão totalmente desenvolvidos. Esse processo contínuo, segundo a justificativa dos juízes, diminui a culpabilidade e justifica uma sentença menos severa.

Transição

Laurence Steinberg, psicólogo da Universidade Temple, se propôs a determinar quando exatamente um adolescente se torna um adulto.

Steinberg deu tarefas psicológicas para 935 pessoas com idades de dez a 30 anos para distinguir entre a capacidade cognitiva e a “maturidade psicológica”. Sua equipe relatou que as pessoas a partir de 16 anos executaram tão bem quanto os adultos mais velhos as tarefas cognitivas – como lembrar números de 13 dígitos na ordem correta e de trás para frente.

Jovens de 18 a 24 anos perfazem dez por cento da população, mas são responsáveis por 28% de todas as prisões, número mais alto do que qualquer outro grupo etário

No entanto, a maturidade psicológica – medida pela impulsividade, percepção de risco, busca pela emoção e resistência à influência do grupo – não começou até os 18 anos, ganhando mais ímpeto no início dos 20 anos de idade.

“Parece que essas duas características podem se desenvolver em prazos diferentes”, explica Steinberg.

Vidas desperdiçadas

Em 2011, a Fundação MacArthur organizou um grupo de juristas e cientistas, com Steinberg entre eles, para estudar a justiça criminal e o cérebro dos jovens de maneira mais detalhada. Não era nenhum segredo que a abordagem do sistema criminal de justiça para os jovens não estava funcionando bem.

Jovens entre 18 e 24 anos perfazem dez por cento da população, mas são responsáveis por 28 por cento de todas as prisões (2,1 milhões em 2015), um número mais alto do que em qualquer outro grupo etário.

As taxas de prisão são particularmente elevadas entre os homens pertencentes às minorias: nacionalmente, cerca de metade de todos os homens negros já foram presos quando chegam aos 23 anos.

As condenações nessa idade frequentemente são precursoras de vidas desperdiçadas: 84 por cento dos jovens que saem das prisões voltarão para a cadeia em cinco anos

As condenações nessa idade frequentemente são precursoras de vidas desperdiçadas: 84 por cento dos jovens que saem das prisões voltarão para a cadeia em cinco anos. Depois de condenados, poucos conseguirão encontrar empregos.

Um tribunal com informações sobre pesquisas biológicas poderia diminuir esses números, espera Gascón, mesmo que a maioria desses criminosos ainda precise enfrentar barreiras econômicas e raciais consideráveis.

“A ciência sozinha não é capaz de resolver esse problema, mas pode ajudar a tornar o sistema de justiça mais equilibrado”, afirma ele.

Carro sem freios

Novas pesquisas financiadas pela iniciativa da Fundação MacArthur sugerem os desafios de desenvolvimento dos jovens adultos.

Em fevereiro de 2016, Alexandra O. Cohen, estudante de graduação de Neurociências da Faculdade de Medicina Weill Cornell, e outros pesquisadores como Steinberg publicaram um dos primeiros artigos produzidos pela iniciativa na Psychological Science, ligando a atividade do cérebro ao comportamento dos jovens em situações de estresse.

Eles deram a 110 pessoas com idades entre 13 e 25 anos tarefas simples para serem completadas sob uma dessas três condições: a promessa de uma recompensa de US$100, a ameaça de um barulho alto ou nenhum dos dois. Dados coletados por varredura cerebral durante a tarefa mostraram que os centros emocionais do cérebro estavam trabalhando muito. Mas havia menos atividade em áreas como o córtex dorsolateral pré-frontal, que contribui para o autocontrole.

O cérebro dos adolescentes é parecido com um carro correndo sem freios

Para Cohen os dados significam que os jovens são tão capazes de se conter quanto os adultos, a não ser quando há uma ameaça.

Os resultados obtidos pela equipe reforçam descobertas anteriores de que o cérebro não amadurece de uma vez. O sistema neural que governa o pensamento lógico, ou “cognição fria”, atinge os níveis adultos de maturidade muito antes do que os que lidam com o pensamento no calor dos acontecimentos.

O cérebro dos adolescentes foi comparado a um carro correndo sem freios. Em jovens adultos, por outro lado, “existem freios, mas é como se eles talvez não funcionassem em uma estrada acidentada”, compara Cohen.

Nível de maturidade

Em um estudo publicado em fevereiro na Developmental Cognitive Neuroscience, Cohen e seus colaboradores usaram o teste de controle de impulso para prever a “idade emocional do cérebro” dos participantes. Depois, avaliaram a preferência de cada um por assumir riscos.

Pessoas com uma “idade emocional do cérebro” mais jovem, independentemente da idade cronológica, tendiam a preferir um comportamento mais arriscado. Mas essa tendência variava mais entre os jovens adultos.

Se você escolher uma pessoa qualquer de 18 a 21 anos, não poderá saber o nível de maturidade que ela vai ter

Laurence Steinberg psicólogo da Universidade Temple

“Se você escolher uma pessoa qualquer de 18 a 21 anos, não poderá saber o nível de maturidade que ela vai ter”, avisa Steinberg, coautor do estudo. “Esse período é o de maior variação. Então, por que a lei estabelece uma idade de corte justo aí?”

Hoje, alguns estados estão considerando que devem mexer nessa idade, julgando qualquer pessoa com menos de 21 anos como juvenil. A experiência de San Francisco em colocar adultos jovens em uma categoria separada, nem juvenil, nem adulto, “é uma maneira de abordagem mais esperta e mais consistente com a ciência”, afirma Steinberg.

A Sessão no Tribunal

Em uma terça-feira recente, membros da equipe do Tribunal de Jovens Adultos se amontoaram em uma pequena sala sem janela para rever os casos. Chan pegou seu lugar na cabeceira da mesa de madeira; o promotor e o defensor público, adversários em uma corte comum, sentaram-se tão perto que podiam ler os arquivos um do outro.

Junto a três responsáveis pelos casos e dois oficiais de liberdade condicional, discutiram como um réu pagaria pelas roupas que teria que usar em uma entrevista de emprego, como outro poderia chegar em casa depois de deixar o tribunal. Chan decidiu emitir um mandado para um jovem que havia faltado aos compromissos do tribunal.

Pessoas com uma “idade emocional do cérebro” mais jovem, independentemente da idade cronológica, tendiam a preferir um comportamento mais arriscado

Poucos minutos antes do julgamento começar, a reunião terminou. O juiz colocou sua toga e cerca de 40 jovens adultos entraram pelas portas duplas dos fundos.

A maioria dos réus havia sido acusada de crimes como roubos e agressões. A corte não aceita casos que envolvem danos corporais graves, armas mortais ou atividade de gangues.

Como Shaquille, foram considerados tanto infratores de alto risco como de grandes necessidades, considerando-se suas origens, que incluíam a pobreza e a falta de moradia. A maioria já havia estado em um tribunal antes.

Um por um, eles se colocaram diante de Chan e o atualizaram sobre seus progressos com empregos, educação e terapia.

O juiz deu livros infantis para uma jovem que estava prestes a “se formar” e recentemente havia tido um filho. Ele mandou um jovem em um macacão laranja, recém-admitido ao programa, de volta para a cadeia.

Pegue um jovem que arrombou um carro, por exemplo. Se eu o incapacitar por um ano, o que ele vai fazer quando sair? Vai ser o mesmo, um pouco mais velho. Mas vai continuar arrombando carros

Bruce E. Chan juiz

Como em fevereiro, 45 por cento dos participantes da primeira corte haviam “se formado”, suas acusações foram retiradas ou reduzidas. A maioria deles está em um plano de “pós-tratamento”, mas não serão acompanhados de perto.

Chan encara o resultado como um sucesso. “É uma visão mais ampla da segurança pública”, afirma o juiz.

“Pegue um jovem que arrombou um carro, por exemplo. Se eu o incapacitar por um ano, o que ele vai fazer quando sair? Vai ser o mesmo, um pouco mais velho. Mas vai continuar arrombando carros”, explica.

Apenas boas intenções?

No entanto, nem todo mundo acredita na abordagem do tribunal.

“A verdade é que o sistema criminal de justiça está repleto de programas bem intencionados que soam como grandes ideias, mas não têm sido tão efetivos quanto se esperava originalmente”, diz Charles Loeffler, professor de Criminologia da Universidade da Pensilvânia.

Até que haja mais evidência que mostre que o programa funciona, diz ele, “minha atitude é de manter uma esperança cética”.

Apesar da falta de dados, cortes de jovens adultos estão ganhando força. No ano passado, o Instituto Nacional de Justiça, um órgão federal, registrou seis tribunais semelhantes no país, em locais tão diversos quanto Idaho, Nebraska e Nova York.

Acho que é provavelmente o primeiro modelo do país que realmente leva em conta a neurociência e faz um treinamento robusto com seus funcionários com base nesses estudos

Brent J. Cohen diretor de administração do Public Service Consulting Group

O Centro pela Inovação da Justiça, uma entidade de caridade britânica, vai iniciar um programa piloto de cinco tribunais de jovens adultos na Inglaterra e no País de Gales. Em fevereiro, os membros da equipe visitaram as cortes de San Francisco e Nova York para aprender mais sobre elas.

O tribunal de San Francisco “é o tipo de modelo que queremos ver”, afirma Brent J. Cohen, antigo conselheiro de políticas sênior do Departamento de Justiça e hoje diretor de administração do Public Service Consulting Group. “Acho que é provavelmente o primeiro modelo do país que realmente leva em conta a neurociência e faz um treinamento robusto com seus funcionários com base nesses estudos.”

“Não valia a pena”

Shaquille deve se formar nos próximos meses. Ele planeja continuar perseguindo sua ambição de se tornar um guarda de segurança licenciado – um sonho que acabaria se tivesse uma ficha criminal.

Apesar de lamentar ter socado o outro motorista de maneira impulsiva, ele diz que as sessões de terapia do tribunal o ajudaram a aprender a administrar as emoções. “Quando a situação fica insuportável, posso avaliar o problema antes de reagir”, diz ele.

Alguns meses atrás, depois de se encontrar com o responsável por seu caso para preencher um pedido de moradia, Shaquille ouviu alguém gritar uma ofensa racial direcionada a ele em uma esquina. Sentiu a raiva crescer, mas dessa vez continuou andando.

“Não valia a pena”, conta.

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