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 | Henry Milleo/Gazeta
| Foto: Henry Milleo/Gazeta

Na última quinta-feira (13/04), o jornalista João Pedro Schonarth e o servidor público Bruno Banzato foram vítimas de agressões anônimas em Curitiba, capital do Paraná. Juntos há sete anos, o casal construiu uma casa no bairro Água Verde, para onde vão se mudar em breve. No dia 13, porém, circulou pela região um panfleto apócrifo, com imagens genéricas de homossexuais, ironizando o casal e depreciando seu modo de vida. O panfleto ainda trazia estampado o endereço de João Pedro e Bruno como o “endereço da baixaria”. Esse tipo de agressão não é incomum no Brasil, mas a proteção jurídica a gays, lésbicas, transexuais e transgênero ainda é indefinida no país. Como não há legislação penal específica sobre o tema, fica a cargo de cada estado conferir proteção administrativa a essa população, e os tribunais brasileiros estão se transformando em palco de disputas interpretativas sobre como conciliar a proteção contra a homofobia e os limites do direito penal.

Folheto distribuído na rua em que casal homoafetivo construiu uma casa.

Diante dessas dificuldades, diversas comissões da OAB do Paraná estão acompanhando o caso e lançaram, nesta terça-feira (17/04), uma nota de repúdio ao episódio, bem como a um outro caso de homofobia ocorrido em um condomínio no bairro Novo Mundo na quarta-feira (12/04). Esta última vítima preferiu ficar anônima. Segundo Rafael Kirchhoff, presidente da Comissão de Diversidade Sexual e Gênero da OAB-PR, casos assim estão entre os mais subnotificados, porque, em geral, as pessoas preferem não alardear o ocorrido, ainda mais quando ocorrem em seus bairros. Porém, de acordo com Kirchhoff, não existe o crime de “LGBTfobia” no Brasil e essas agressões acabam sendo enquadradas como injúria ou difamação, com base nos artigos 139 ou 140 do Código Penal (CP). Mas como a pena prevista para os crimes pode variar apenas entre três meses e um ano, as ações penais acabam sempre em transação penal ou prestação de serviços à comunidade por parte do agressor. Kirchhoff destaca a importância da atuação da OAB nessas situações. “Hoje, nós vamos conversar com o casal para entender o que eles querem fazer e passar algumas orientações, mas nós não fazemos advocacia individual. Nós acompanhamos as ações do poder público”, afirma.

Thales Coimbra, advogado militante LGBT e mestre em Direito pela USP, também vê poucas possibilidades de tutela penal para o caso. O advogado, que enxerga nos panfletos mais um ato atentatório à privacidade do casal do que à honra, diz que, depois de identificados os agressores, uma ação civil buscando uma indenização por danos morais teria mais possibilidade de sucesso na Justiça. Coimbra aponta que o estado do Paraná não possui uma lei que puna administrativamente a homofobia, como ocorre em São Paulo, onde, em novembro de 2001, foi sancionada a Lei 10.948, que pune “toda manifestação atentatória ou discriminatória praticada contra cidadão homossexual, bissexual ou transgênero”. De acordo com esta lei, um caso como o que ocorreu em Curitiba poderia dar ensejo a uma advertência ou a uma multa entre R$ 25 mil e R$ 75 mil reais para os agressores e quem quer que tenha distribuído os panfletos ou ainda, no caso de pessoas jurídicas, à suspensão ou à cassação licença estadual de funcionamento.

Jovacy Peter Filho, advogado e professor de direito penal da Faculdade de Direito de Vitória (FDV), aponta outra perspectiva para o caso, além da tipificação da conduta como crime de injúria: a configuração do crime de lesão corporal, com base no artigo 129 do Código Penal. O advogado lembra que esse artigo defende não só a integridade corporal das pessoas, mas sua saúde, ainda que não haja contato físico entre agressor e vítima. “O desconforto de uma publicação como esta afeta a própria saúde da pessoa”, avalia. O advogado lembra que já há precedentes na Justiça no sentido de que danos psicológicos podem configurar lesão corporal grave. Em 2012, por exemplo, a Justiça de São Paulo aceitou uma denúncia por lesão corporal contra um homem, em razão de uma campanha de ameaça, exposição e difamação da vítima, sua ex-mulher. O processo segue em segredo de justiça.

Dificuldades jurídicas

Os três advogados ouvidos pela reportagem apontaram as mesmas dificuldades para a proteção às vítimas desse tipo de agressão. No Brasil, não há crime de “homofobia” ou “LGBTfobia”. Além disso, nem o §3º do artigo 140 do Código Penal, que traz a previsão da injúria qualificada, nem o artigo 20 da Lei 7716/1989, que pune atos de discriminação, trazem a previsão da identidade sexual como fator que merece a proteção legal. Por isso, os tribunais não aplicam esses dispositivos em casos como o que ocorreu em Curitiba. Da mesma forma, como não há previsão expressa de crime de homofobia ou de discriminação em razão da identidade sexual, os advogados ressaltam que os tribunais não aceitam a hipótese de incitação ao crime, com base no artigo 286 do Código Penal, justamente porque não há crime legalmente previsto que possa ser incitado. Essas dificuldades não são gratuitas. Um dos princípios basilares do direito penal liberal é a proibição da analogia que prejudique o réu. Não se pode aplicar uma norma que define um crime, uma sanção ou um agravante a uma situação apenas semelhante à tipificada pela lei. Essa proibição decorre do princípio da reserva legal, segundo o qual apenas a lei em sentido estrito (aprovada pelo Poder Legislativo), pode tipificar crimes.

Atualmente, tramitam duas ações no Supremo Tribunal Federal (STF) tentando suprir essa lacuna: a Ação Direita de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26, ajuizada em 2013 pelo Partido Popular Socialista (PPS), e o Mandado de Injunção (MI) 4733, impetrado pela Associação Brasileira de Lésbicas Gays, Travestis e Transexuais (ABGLT) em 2012. Na visão dos proponentes de ambas as ações, endossadas pela Procuradoria-Geral da República (PGR), os incisos XLI e XLII da Constituição criam um “dever de proteção penal adequada aos direitos fundamentais”. As ações têm basicamente três pedidos, subsidiários entre si: que o STF declare o Congresso Nacional em “mora inconstitucional” pela demora em legislar sobre o assunto; que o STF dê interpretação conforme para “aplicação da Lei 7.716/1989 (Lei de Racismo) para todas as formas de homofobia e transfobia, especialmente (mas não exclusivamente), das ofensas (individuais e coletivas), dos homicídios, das agressões, ameaças e discriminações motivadas pela orientação sexual e/ou identidade de gênero, real ou suposta, da vítima”; e que o STF regule ele próprio os dispositivos constitucionais em questão.

Conheça a lei

Código Penal

Lesão corporal

Art. 129.- Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem:

Pena - detenção, de três meses a um ano.

Injúria

Art. 140 - Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro:

Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.

§ 1º - O juiz pode deixar de aplicar a pena:

I - quando o ofendido, de forma reprovável, provocou diretamente a injúria;

II - no caso de retorsão imediata, que consista em outra injúria.

§ 2º - Se a injúria consiste em violência ou vias de fato, que, por sua natureza ou pelo meio empregado, se considerem aviltantes:

Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa, além da pena correspondente à violência.

§ 3o Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência: (Redação dada pela Lei nº 10.741, de 2003)

Pena - reclusão de um a três anos e multa.

Lei de Racismo

Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. (Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)

Pena: reclusão de um a três anos e multa.(Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)

§ 1º Fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo. (Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)

Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa.(Incluído pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)

§ 2º Se qualquer dos crimes previstos no caput é cometido por intermédio dos meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza: (Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)

Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa.(Incluído pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)

§ 3º No caso do parágrafo anterior, o juiz poderá determinar, ouvido o Ministério Público ou a pedido deste, ainda antes do inquérito policial, sob pena de desobediência: (Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)

I - o recolhimento imediato ou a busca e apreensão dos exemplares do material respectivo;(Incluído pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)

II - a cessação das respectivas transmissões radiofônicas ou televisivas.(Incluído pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)

II - a cessação das respectivas transmissões radiofônicas, televisivas, eletrônicas ou da publicação por qualquer meio; (Redação dada pela Lei nº 12.735, de 2012) (Vigência)

III - a interdição das respectivas mensagens ou páginas de informação na rede mundial de computadores. (Incluído pela Lei nº 12.288, de 2010) (Vigência)

§ 4º Na hipótese do § 2º, constitui efeito da condenação, após o trânsito em julgado da decisão, a destruição do material apreendido.

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