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Pilhas do processo do mensalão no plenário do STF indicam o que foi o julgamento: o mais longo da história do Supremo, com 69 sessões em um ano e sete meses | Carlos Humberto/STF
Pilhas do processo do mensalão no plenário do STF indicam o que foi o julgamento: o mais longo da história do Supremo, com 69 sessões em um ano e sete meses| Foto: Carlos Humberto/STF

Ficará na memória

Superexposição de ministros e punições a políticos marcam a ação

É consenso entre especialistas consultados pela reportagem que o julgamento do mensalão deixa um legado sem precedentes na história do país e do Judiciário brasileiro. Um dos pontos mais citados foi a superexposição do Supremo Tribunal Federal (STF) durante a análise da ação, já que as sessões eram transmitidas ao vivo pela tevê e foram alvo do noticiário diário do país.

"O brasileiro passou a conhecer o Supremo, saber que ele existe, quem está lá e o impacto disso. A cidadania precede o conhecimento dos Poderes, e isso inclui o Judiciário", diz o professor da FGV Direito Rio, Ivar Hartmann. Para o cientista político Rudá Ricci, porém, esse ponto vem acompanhado de um lado negativo. "A exposição mudou a lógica de decisão do Judiciário, pois os ministros acompanhavam a repercussão da opinião pública e mudaram o comportamento", diz. "Mas o Judiciário perdeu a áurea de caixa preta."

Outro ponto elencado como legado do mensalão pela professora de Direito Penal Soraia Mendes, da Universidade Católica de Brasília, é o precedente de punibilidade de crimes contra a administração pública. "Menos de 1% dos presos do país são condenados por crimes como este. E, quando o STF julga um caso emblemático como este, sinaliza para o restante do sistema de justiça de que não deve servir só para prender pobres e pretos", considera.

A conclusão da fase de recursos do mensalão, na quinta-feira, praticamente encerrou o processo – embora alguns advogados de defesa ainda cogitem entrar com pedidos de revisão criminal. O julgamento mais longo da história do Supremo Tribunal Federal (STF) – com um ano e sete meses de discussões, em 69 sessões – resultou em 24 condenados. Entre eles, a cúpula petista encabeçada pelo ex-ministro José Dirceu.

Entre os especialistas em direito e política, é unânime a opinião de que o julgamento da Ação Penal 470 – o nome oficial do processo do mensalão – é um marco histórico, seja pela punição de políticos ou pela superexposição dos ministros do STF. "Costumo dizer que existe o ‘A.M.’ e o ‘D.M.’: o antes e o depois do mensalão", resume a professora de Direto Penal Soraia Mendes, da Universidade Católica de Brasília.

Alguns entendimentos dos ministros do Supremo no caso do mensalão podem, inclusive, abrir precedentes para futuros julgamentos que envolvam os mesmos delitos. Isso porque o STF é a mais alta instância do Judiciário, responsável por interpretar as leis e criar jurisprudência para os tribunais inferiores. Porém, as interpretações foram alvos de divergências entre especialistas. Abaixo, são elencados alguns desses pontos.

Possíveis inovações

Caixa dois e corrupção

Ao condenar integrantes de partidos aliados do governo Lula que receberam dinheiro ilegalmente, o STF abriu a possibilidade de caracterizar como corrupção o caixa 2 eleitoral – delito que os acusados admitiam ter praticado. Isso porque o Supremo entendeu que a corrupção fica caracterizada pelo simples recebimento da verba ou vantagem indevida, não sendo necessário saber ou comprovar qual foi o ato realizado pelo político para justificar o pagamento. "Há uma visão de que isso é uma inovação. Não sei até que ponto, mas é positivo. Mesmo assim, precisaríamos de penas maiores para os crimes relacionados à administração pública. E isso ficou claro com as penas que foram dadas nesse processo", diz o professor Ivar Hartmann, da FGV Direito Rio.

Quadrilha e lavagem de dinheiro

Na apreciação dos recursos do mensalão, o STF mudou o entendimento da primeira fase do julgamento sobre os crimes de formação de quadrilha e lavagem de dinheiro, o que acabou beneficiando dez réus. No caso da lavagem, a maioria dos ministros considerou que os mecanismos utilizados para esconder o recebimento de propina são típicos de quem pratica corrupção e que isso não caracteriza um novo crime – a lavagem de dinheiro. Essa interpretação beneficiou, por exemplo, o ex-presidente da Câmara João Paulo Cunha (PT-SP, foto), absolvido na última quinta-feira do crime de lavagem. Para inocentar os condenados por quadrilha, o Supremo também mudou a interpretação da primeira etapa do julgamento. Entendeu que a quadrilha não se materializa apenas quando acusados cometem delitos juntos; é preciso que estejam associados de forma contínua e prolongada para praticar crimes. Esse entendimento beneficiou, dentre outros, o ex-ministro José Dirceu, o ex-tesoureiro do PT Delúbio Soares e o ex-presidente do partido José Genoino. Para parte dos especialistas, as novas interpretações podem tornar mais difícil condenações desses dois crimes na Justiça. Mas essa análise não é unânime; alguns juristas consideram que o caso do mensalão é muito específico e não vai abrir precedentes nessas situações. Há ainda juristas que acreditam que é a rigidez da primeira fase que pode servir de modelo para decisões de tribunais inferiores.

Embargos infringentes

São recursos previstos no regimento do Supremo para os réus que tenham sido condenados com pelo menos quatro votos pela absolvição. Os infringentes, porém, não estão previstos na lei que regula a atuação do STF. Na ação do mensalão, os ministros decidiram aceitar os embargos infringentes – o que levou à reanálise das provas de alguns acusados e a posterior absolvição deles nos crimes de formação de quadrilha e lavagem de dinheiro. A aceitação dos embargos também prorrogou o tempo de julgamento do mensalão. "Houve um detrimento do tempo em relação à ampla defesa e ao contraditório, mas já havia precedentes sobre a aceitação dos embargos. Não foi algo específico desse julgamento", diz o advogado e cientista político Marcelo Navarro. "É inadmissível que o mesmo órgão julgue uma ação duas vezes", contrapõe o professor Ivar Hartmann, da FGV Direito Rio. "E isso é mais problemático quando se trata do mesmo órgão com uma nova composição, pois abre espaço para toda sorte de acusações sobre os ministros."

Domínio do fato

A teoria prega que uma pessoa de alto cargo em uma instituição pode contribuir para um crime – ainda que não tenha participado diretamente – pela posição de influência que ocupa. Desse modo, é possível incriminar um réu que não tenha deixado provas concretas, mas ainda assim tenha participação central nos fatos. De maneira incomum, a ferramenta foi usada pelo STF para condenar José Dirceu (foto), embora não houvesse nos autos "prova documental" da sua participação no esquema. Os especialistas divergem sobre essa teoria. "A tese existe e pode ser usada em alguns casos. Mas, no caso do mensalão em específico, há divergências porque as pessoas envolvidas nos crimes não tinham conhecimento de onde aquilo poderia chegar", opina o advogado e cientista político Marcelo Navarro. Já o professor de Direito Ivar Hartmann, da FGV Rio, discorda desse posicionamento. "Fez-se muita tempestade em copo d’água sobre essa questão, mas o Supremo não inovou. Essa teoria está prevista no Código Penal e já é aplicada. Veio da lei e não do Judiciário."

Perda de mandato

Durante o julgamento, os ministros do STF decidiram manter a definição sobre a perda dos mandatos dos deputados condenados. A corte entendeu que à Câmara cabe apenas decretar a vacância do cargo depois que o Supremo determinar a perda do mandato. O entendimento é alvo de divergências entre especialistas. "A decisão de perda de mandato não deveria caber ao Supremo; isso precisa ser votado pelo Congresso", diz o professor Ivar Hartmann, da FGV Direito Rio. Porém, para o advogado e cientista político Marcelo Navarro, decisões como essa não são políticas, por isso devem ficar a cargo do Supremo.

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