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"Nós, como público, temos o poder de fazer a mudança que queremos", diz Alexandra. Foto: Rubens Nemitz Jr/Divulgação.
"Nós, como público, temos o poder de fazer a mudança que queremos", diz Alexandra. Foto: Rubens Nemitz Jr/Divulgação. | Foto: Rubens Nemitz Jr - fotografista.

O exercício de empatia é uma das armas mais poderosas de Alexandra Baldeh Loras em sua luta constante pela igualdade racial. Sempre que tem a oportunidade, a ex-consulesa da França dá um jeito de propor uma dinâmica diferente a quem quer que seja que tenha nascido com pele clara. A experiência dura pouco mais de três minutos. “Imagine um mundo inverso”, começa ela. Sua voz é serena, melodiosa e carregada de um forte sotaque francês. “Onde tudo o que é feito pelos negros é considerado lindo, inteligente, maravilhoso. Onde todas as criações parecem ser intelectualmente superiores”.

“Dentro das escolas e das universidades, praticamente todos os alunos e professores são negros. Quando você abre as revistas, todas as imagens e reportagens têm protagonistas negros”, segue Alexandra. Ela sugere então que o ouvinte visualize ícones da história e da atualidade, de Leonardo da Vinci a Marilyn Monroe, com pele escura. O exercício imagético continua. “Todas as camadas da elite são negras. Quando seus filhos ligam a televisão, todas as princesas e príncipes são negros. Nas lojas de brinquedos, as prateleiras têm Barbies, bonecos e super-heróis negros”.

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A francesa faz uma pausa e baixa o olhar para o chão antes de finalizar a simulação. O longo macacão branco de linho, com corte de alfaiataria, destaca o tom de sua pele conforme Alexandra se movimenta. Ela está em Curitiba — veio para a capital palestrar no terceiro Congresso da Felicidade, realizado no começo deste mês — e fala sobre racismo e igualdade de gênero para duas mil pessoas aglomeradas no pavilhão do Expo Barigui. Nenhuma delas é negra.

“Como seria esse mundo?”, pergunta, encarando a plateia. “Ele com certeza seria absurdo. Chocante. Incômodo. E com muito pouca possibilidade de felicidade…para os brancos”. Um silêncio doloroso toma conta de cada centímetro dos cinco mil metros quadrados do ambiente. A reflexão é apenas uma introdução do que a executiva e comunicadora tem a dizer sobre o racismo e suas consequências para a sociedade ao longo dos próximos quarenta minutos de palestra.

Racismo? No Brasil?

Quando Alexandra saiu de Paris, sua cidade natal, para viver em terras brasileiras há seis anos, encontrou um país tropical bem diferente daquele que estava acostumada a ouvir. “O marketing lá fora era maravilhoso: aqui tinha uma miscigenação incrível e não existia racismo”. Naturalmente, ela esperava ver os 54% de brasileiros negros em todas as camadas da sociedade, da política à educação.

“Achei 1% no poder e menos de 4% na mídia. Nessa, negros sempre no papel da faxineira, da Globeleza, do traficante. Isso parece normal para nós por um motivo. Porque nascemos dentro desse sistema”, aponta. Estar em meio à elite paulista não amenizou em nada a sensação de exclusão constante.

Como consulesa, era parte do protocolo francês que Alexandra sempre recepcionasse as mais de seis mil pessoas que todos os anos passavam por sua residência, fosse para eventos ou questões diplomáticas guiadas por seu marido, o cônsul-geral da França Damien Loras.

Ela perdeu a conta de quantas vezes foi ignorada na entrada da própria casa. “As pessoas passavam reto por mim achando que eu era empregada doméstica”, conta.

Um dos últimos episódios de racismo foi há poucas semanas, quando foi convidada a ministrar uma palestra na Rede Globo. Ao chegar à emissora, Alexandra se sentou na primeira fila, reservada aos palestrantes. Não ficou cinco segundos na cadeira e uma pessoa da organização pediu para que ela se sentasse atrás. “Eu falei: ‘não, eu sei ler. Está escrito reservado’”, relata. A resposta veio de imediato, como um tapa. “Sim, para os palestrantes”.

Naquele momento, seu diploma de mestrado em Gestão de Mídias na tradicionalíssima Sciences Po de Paris, suas dezenas de prêmios conquistados no Brasil e no mundo (como o Mulher Internacional do ano pela Think Olga) e sua fluência em cinco idiomas foram reduzidos a nada. Todas as competências da única mulher negra CEO de uma multinacional no país, a Trace TV, foram julgadas por uma única característica: o tom de sua pele.

O monstro é sutil

“Essas são humilhações pelas quais o branco nunca vai passar”, diz Alexandra.

“Não adianta eu falar que são episódios pontuais. É o tempo todo e em tudo. O pior: não é nada direto ou agressivo. É sempre muito sutil”. As sutilezas estão ali, na farmácia da esquina, onde o curativo adesivo é vendido como “transparente”, mas na verdade é cor de rosa; no lápis de colorir rosado conhecido como “cor da pele”; na meia-calça clara chamada de “nude”.

Para a francesa, há um longo caminho pela frente. “É muito difícil para a população negra se sentir incluída nesse mundo. Enquanto não quisermos realmente olhar para isso de uma forma global, estaremos muito longe de reequilibrar as coisas de forma justa”, garante. O problema, segundo ela, vem de muito tempo atrás e está na base dos valores da sociedade. “Elas são tão banalizadas que temos dificuldade de enxergar o monstro no espelho.”

Gotinhas de conscientização em um oceano de racismo

Alexandra durante a palestra no 3º Congresso Internacional de Felicidade.  Foto: Rubens Nemitz Jr/Divulgação.
Alexandra durante a palestra no 3º Congresso Internacional de Felicidade. Foto: Rubens Nemitz Jr/Divulgação. | Rubens Nemitz Jr - fotografista.

Em 2016, Alexandra convidou uma amiga famosa para um ensaio fotográfico inusitado. No editorial de moda, Paola Maria de Orleans e Bragança, a trineta da Princesa Isabel, responsável por assinar a Lei Áurea em 1888, aparecia vestida como uma empregada doméstica ao lado de outras duas serviçais, também brancas e de cabelos loiros. À frente, em poses e trajes aristocráticos, Alexandra posava com outras cinco mulheres negras.

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Quando as fotos foram publicadas na Vogue Brasil, um rebuliço tomou conta de gente de todas as cores. Alexandra não arredou pé. “Se somos todos iguais, por que incomoda tanto ver uma aristocrata branca servindo cinco negras?”, questiona, arqueando as sobrancelhas.

A ferida cutucada logo cicatrizou.

“Através dessa bagunça, conseguimos aumentar em 600% a presença da mulher negra na Vogue”, conta Alexandra.

Da única capa estrelada por uma negra (com Rihanna) em 2014 a outras pouquíssimas vezes ao longo dos dois anos seguintes, a edição brasileira da revista de moda publicou, em 2017, quatro capas com mulheres negras. ”

“São gotinhas de conscientização que aos poucos se transformam em ondas”.

O poder das redes sociais no combate ao racismo

Alexandra acredita que é possível reeducar uma sociedade com a ajuda da tecnologia. “Hoje, com as redes sociais, estamos em uma época em que é possível virar o jogo“, diz. Ela sugere, por exemplo, uma cobrança do público por uma maior representatividade negra nas novelas brasileiras. “A produção cultural das novelas é extremamente poderosa, porque educa de forma lúdica o povo sobre valores”, explica.

“Se cada um de nós nos comprometermos a escrever através do Twitter, do Instagram, do Facebook, do Linkedin para dois roteiristas e dissermos que queremos mais inclusão, pode ser que ignorem na primeira ou na segunda vez. Mas, na terceira, é possível que esse pedido seja aceito”, acredita.

O segredo para a criação de uma nova narrativa da história, segundo ela, não está em tentar mudar o mundo, mas mudar de mundo. “Nós, como público, temos o poder de fazer a mudança que queremos. Mas, antes, precisamos ouvir e refletir sobre como despertar uma consciência humana mais elevada que ainda é tão sofisticada em inferiorizar o outro”.

O primeiro passo para esta transformação começa com um exercício simples, que dura pouco mais de três minutos.  

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