Comportamento

Sandrah Guimarães, especial para a Gazeta do Povo

“Recompensar crianças por atitudes corretas não ajuda a desenvolvê-las”, diz pediatra

Sandrah Guimarães, especial para a Gazeta do Povo
23/03/2019 12:00
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Ninguém recebe recompensa por fazer aquilo que é certo. Tem que fazer porque é bom para formação como pessoa e para a convivência em sociedade. Foto: Bigstock

Ser mãe e pai é caminhar por uma estrada desconhecida, na qual nem sempre o percurso é claro e iluminado. Mas, calma, existe um norte que deve ser seguido: o da responsabilidade e do diálogo. Para ajudar no desenvolvimento psíquico e social de uma criança, o papel da família vai além do amor e educação, e inclui estímulos, limites e muita compreensão e paciência.
Conversamos com especialistas para entender os principais pontos a serem trabalhados em cada uma das principais fases de crescimento entre o nascimento e a adolescência.

Gravidez

Tudo começa antes mesmo do nascimento: uma gestação saudável com acompanhamento de pré-natal é a base. Isso porque o primeiro contato do feto com o mundo é através dos sentimentos da mãe: eles já reagem a sentimentos como tristeza, alegria ou ansiedade. A obstetra especialista em Medicina Fetal, Ieda Paula Kaiut ressalta, ainda, que existem estudos em andamento que indicam que a formação da personalidade começa ainda no útero.
Além da questão emocional, existe a ligação físico-química pelo cordão umbilical. Os efeitos da liberação de hormônios, de uma alimentação inadequada, medicamentos, álcool e drogas podem repercutir na formação do feto.

“Uma mãe tabagista, por exemplo, terá a placenta envelhecida antes do tempo e isso pode alterar o DNA da criança, causando uma tendência maior para obesidade, doenças cardíacas, hipertensão e diabetes na vida adulta”, alerta a médica Ieda Kaiut.

A primeira infância

Essa fase vai do zero aos dois anos. O nascimento traz um universo de novidades para os pais. Cada expressão, cada movimento, cada choro. Olhares atentos tentam decifrar os gestos e estabelecer uma comunicação com o neném. Nos primeiros dias o bebê mal controla os movimentos e enxerga pouco, mas a evolução é rápida e os avanços são nítidos a cada semana. Em poucos meses ele já é capaz de responder a estímulos e fazer exigências com choros e gritinhos.
Foi isso que percebeu o analista de controle, Nicolas Alberto Grassi, de 42 anos, e que é pai de Sofia de 7 meses. A esposa, Priscila Grassi, 32 anos, é estagiária de pós-graduação no Ministério Público e não teve direito a licença maternidade. Nicolas pegou uma licença em seu trabalho para cuidar do bebê em casa. “A primeira reação foi perto dos quatro meses, com a interação e risadas. Depois, começamos a perceber o que a deixava mais agitada e o que a acalmava.”
Sofia
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Nos primeiros meses, o tato e o paladar são as conexões principais com o mundo. Dedos, brinquedos e tudo o que encontrarem são levados à boca.  A pediatra Jussara Varassin, membro do Departamento de Pediatria do Desenvolvimento e Saúde Mental da Sociedade Paranaense de Pediatria, explica que os pais devem estar atentos ao que a criança solicita e identificar o que ela quer e precisa. “É hora da mãe e do pai estabelecerem um vínculo verdadeiro com o bebê, sem distrações. Estabelecer um olho no olho, estar o mais perto possível, sentar no chão se for preciso.”
Menos telas, mais experiências
Jussara ressalta uma questão atual na relação pais e bebês: a importância de deixar o celular de lado nos momentos de interação.

“Na primeira infância é essencial um contato verdadeiro sem desvios de atenção com celular. Primeiro os pais se distraem com o smartphone, depois o aparelho passa a ser usado pela criança e, então, ela vai deixar de olhar os pais nos olhos”, enfatiza a pediatra.

Além dos prejuízos no relacionamento, o contato com a tela pelas crianças nessa fase pode causar danos físico no desenvolvimento. Uma pesquisa pioneira do National Institute of Health (NIH), dos Estados Unidos, mostrou que crianças expostas a tablets, celulares e videogames tiveram uma diminuição da parte anatômica do cérebro.
Um afinamento precoce do córtex cerebral – que processa as informações dos cinco sentidos – levaria a uma possível redução da receptividade de informações sensoriais como visão, audição, tato, olfato e paladar.
A pediatra é enfática sobre a necessidade de espaço e vivências reais: “É um período de rápido desenvolvimento cerebral, quando a criança precisa de tempo para brincar, dormir, aprender a lidar com emoções e a construir relacionamentos.” Espaços abertos e externos, em que a criança possa desenvolver sua curiosidade, ajudam nesse processo. “Nessas áreas ela pode conhecer texturas diferentes e viver novas experiências. As imagens virtuais não preenchem essa lacuna.”

Segunda infância ou idade pré-escolar

Por volta dos dois anos, aquele bebê fofinho e sorridente começa a apresentar sua primeira crise de identidade. A criança já está mais independente: já sabe andar e começa a formular pensamentos e se expressar. É a fase do “é meu” e do “eu quero”.  A fase também é conhecida fase como terrible two (dois anos “terrível”, na tradução literal), na qual as crianças começam a testar seus limites.
A pediatra explica que nessa idade eles já se deram conta de que são indivíduos e irão lutar para conquistar seu espaço. Quando contrariadas, as crianças costumam se expressar por birras, brigas e choros.
Por isso, a família deve estabelecer limites, explicando o porquê de alguma proibição e a consequência das ações, além de mostrar para a criança que não será agindo dessa forma que ela terá suas vontades atendidas.
Cabe aos pais, também, a tarefa de acolher e ajudar os filhos a entender os próprios sentimentos. “É um período de formar a identidade, experimentar e testar os limites da família. Nessa fase, a criança não tolera frustrações e é importante que os pais entendam que dar limites também é dar amor”, reforça.
Birra e punição
A dentista Rafaela e o engenheiro Marcelo Figlarz têm três filhos: Rebecca, 3 anos, Rodrigo, 6 anos, e Roberta, 10 anos. A mais nova passa pela fase que também é chamada da “adolescência do bebê”. A mãe conta que a menina está sempre medindo forças com a família.

“Tenho que ser mais firme e impor regras, principalmente em relação à segurança. Para atravessar a rua tem que dar a mão, não tem opção. Ela também reclama de colocar o cinto no carro, mas não tem jeito, enfrento a birra e sei que não posso ceder.”

Para a mãe, a frustração ajuda a criança a crescer emocionalmente. “Quando ela exagera demais com choro e grito, falamos que não vamos conversar daquele jeito, que é para ela ir para o quarto chorar. Às vezes ela para e, em outras, luta, se joga no chão. É difícil ter paciência, somos humanos, mas tentamos sempre fazer ela entender que esse drama não vai levar a nada. Os pais têm que ensinar para a vida.”
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A pediatra Jussara Varassin aconselha que, se os pais sentirem necessidade de punir a criança, precisam fazê-lo com um castigo proporcional à atitude do filho – e não baseado na vergonha ou raiva que passaram.
“Se a birra é por causa de doce, fica sem o doce, por exemplo.” Em relação a oferecer recompensas, a especialista é enfática: não é uma boa estratégia.

“Isso pode dar uma visão errada do mundo. Ninguém recebe recompensa por fazer aquilo que é certo. Tem que fazer porque é bom para formação como pessoa e para a convivência em sociedade.”

Em relação ao tempo de tela nessa idade, ela reforça que deve ser eventual e por um tempo reduzido – vinte minutos – e sempre com supervisão. Rafaela Figlarz reconhece que controlar esse tempo é muito difícil, mas tem tentado diminuir a exposição dos filhos.

“O uso de celular, vídeo game e TV é controlado. Quando eles acordam, usam o tablet para assistir alguma coisa enquanto tomam café. No almoço, não podem usar porque temos horário. À noite, eles usam mais um pouco e, no fim de semana, é mais liberado, mas sem acesso a redes sociais.”

Fase escolar

Dos 6 aos 10 anos as crianças passam por uma fase de grande aprendizado social e conhecimento de mundo. É quando começa o contato mais formal com leitura, escrita e o conhecimento científico. A escola e os amigos passam a ser lugar muito significativo pela socialização e aprendizado. “Esses canais de descoberta precisam ser incentivados pelos pais”, diz Jussara.
Outra característica dessa fase é que as crianças passam a observar mais e se guiam pelos exemplos práticos da família.

“Eles aprendem mais pelo exemplo do que pela teoria. Então, não adianta mandar o filho comer salada se você só come lasanha e pastel. O mesmo vale para cordialidade e agressividade. Os pais devem orientar as crianças a serem gentis, controlar seus impulsos, compartilhar brinquedos e interagir com os colegas. Mas o exemplo é fundamental.”

Em relação ao conteúdo de aprendizagem, Maria Cristina Montingelli, que é psicóloga, psicopedagoga e coordenadora do Ensino Fundamental no Colégio Sion, em Curitiba, explica que é importante que a família estimule o desenvolvimento da linguagem por meio de leituras diversas, como livros, revistas, gibis, além de contato com expressões artísticas como teatros, museus e exposições.
Outra forma de estimulação é com experiências de cálculo, peso e metragem, que ajudam a dar condições de pensar sobre o mundo. “Alguns exemplos são aprender receitas na cozinha, pensar sobre distâncias de casa para escola, medir a própria altura e peso”, sugere.
Autonomia
A especialista também recomenda que, desde cedo, os filhos participem de tarefas em casa, sempre respeitando o tempo e a possibilidade de cada idade.“Ajudar em casa, além de desenvolver o senso de pertencimento e o espírito colaborativo, tarefas que foram chamadas por Maria Montessori como atividades de vida prática, propiciam um fluxo de atenção auxiliam no desenvolvimento da vontade (motivação interna) e das inteligências.”
Maria Cristina explica que é possível encontrar na internet exemplos de tarefas para cada idade e que isso pode ser usado como norteador, mas não como regra, já que cada criança tem capacidades e limitações diferentes. “Por isso, o adulto deve acompanhar com olhar atento para ajudar a criança a desenvolver autonomia. É preciso refletir sobre a justa medida: nem a proteção exagerada, nem a negligência”, afirma.
Já em relação à realização da tarefa escolar, o conselho da psicopedagoga é de que a família observe se a criança pede auxílio pela dificuldade de conteúdo ou se precisa de apoio emocional. “Quando o dever de casa está muito difícil é importante dividir com a escola. Nunca deve ser um desafio tão grande que a criança se sinta incapaz.”
Pré-adolescência
Começa por volta dos 10 anos e pode durar por até quatro anos. Esse período é marcado por muitas transformações físicas, com a puberdade. Nas meninas ocorre a primeira menstruação, os seios começam a crescer, a cintura afina e os pelos ficam mais densos. Nos meninos, os pelos crescem por todo o corpo e a voz altera.

“É uma fase que eles se despedem dos interesses da infância e começam a construir uma nova identidade. Começam a ficar mais atentos às regras de grupos, se preocupam com beleza e sentem necessidade de estarem dentro dos padrões, o que pode gerar muita insegurança e angústia”, observa Jussara.

O período da adolescência é marcado por muitas trasnformações. Foto: bigstock.
A partir da pré-adolescência, os pais devem respeitar as escolhas dos filhos no modo de se vestir e em seus interesses. “É muito importante também o interesse pelas atividades da escola e manter o contato com os amigos do filho, isso ajuda na aproximação e fica mais fácil identificar o início de algum desvio de conduta e evitar que isso se prolongue pela adolescência”, reforça.
Socialização importante
Um estudo da UFRS feito com 189 famílias de classe média brasileira, com um filho pré-adolescente de 10 a 13 anos, demonstrou a importância da conversa dentro de casa para o amadurecimento emocional dos jovens.

Os filhos de pais que conversam sempre apresentaram um perfil mais adaptável em situações que deveriam provocar raiva ou tristeza, e uma sensação de desconforto menor, medida por respostas cardiovasculares e questionários. Os psicólogos chegaram à conclusão de que a habilidade de controlar emoções é uma consequência da socialização, função exercida fundamentalmente pela convivência familiar.

Adolescência

De acordo com a Organização Mundial de Saúde, a adolescência vai dos 10 aos 20 anos. No Estatuto da Criança e do Adolescente brasileiro, dos 12 aos 18. É um período de desenvolvimento orgânico com a puberdade, muitas modificações no corpo que acompanham mudanças da maneira de pensar.

“Mas, apesar do corpo mais desenvolvido, o adolescente continua com necessidades infantis de dependência, e isso traz insegurança. A aceitação do grupo é muito importante e os pais devem estar atentos para orientar o adolescente sobre a própria autonomia e o direito de dizer não em situações de risco”, diz a pediatra Jussara.

Nessa idade também costumam surgir uma mudança de postura, com atitudes sociais e reinvindicações que podem gerar conflitos. “Os pais precisam criar situações para passar mais tempo de qualidade com os filhos e, dessa forma, tendo mais oportunidades de conversa para entender a visão deles, deixando espaço para que se expressem. Da mesma forma como na primeira infância, é importante manter o vínculo e o olho no olho. Uma postura firme, mas sem ser autoritário, é a mais recomendada.”
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