Comportamento

Carolina Werneck

Morte e vida de Curitiba no Cemitério São Francisco de Paula, o “Municipal”

Carolina Werneck
29/03/2018 16:00
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Com 164 anos, o "Municipal", como ficou popularmente conhecido, guarda mais da metade da história de Curitiba. Foto : Marco Andre Lima/Agência de Notícias Gazeta do Povo | Gazeta

Quem caminha pelas alamedas do Cemitério São Francisco de Paula, no São Francisco, em Curitiba, pode aprender muito sobre a história da cidade. Fundado em 1854, o “Municipal”, como ficou conhecido, guarda em seu território mais da metade dos 325 anos da capital paranaense.
Foi para aquelas paragens, à época afastada dos limites da cidade, que foi levada Delfina Antoneres Sampaio, 82 anos, “falecida de moléstias internas” e a primeira a ser enterrada ali. Era domingo, dia 30 de setembro de 1855. No mesmo dia foram lhe fazer companhia outras duas mulheres. Mais de 160 anos depois, são mais de 5700 sepulturas que, hoje, estão localizadas no coração histórico de Curitiba – literal e metaforicamente.
A pesquisadora cemiterial da Fundação Cultural de Curitiba, Clarissa Grassi, explica que o cemitério foi construído onde está por questões higienistas. “Aqui em Curitiba as pessoas eram sepultadas na Igreja Matriz, na Igreja do Rosário, na Igreja da Ordem e na São Francisco de Paula, que é onde hoje estão as ruínas”, conta. Com o movimento higienista, a coabitação entre vivos e mortos se torna insustentável. É preciso, então, levar os enterros para fora da cidade. Isso porque, para os higienistas, os miasmas – resultantes da matéria em decomposição – seriam os causadores das epidemias.
Clarissa estuda o Cemitério São Francisco de Paula há 15 anos. Foto: Ana Gabriella Amorim/Gazeta do Povo
Clarissa estuda o Cemitério São Francisco de Paula há 15 anos. Foto: Ana Gabriella Amorim/Gazeta do Povo
Assim, o São Francisco foi a solução encontrada para evitar contaminações. Não sem discussão. “Houve uma resistência muito grande, porque para eles o local de sepultamento estava implicado na salvação da alma”, destaca Clarissa. Em 1875, durante uma missa, o reboco da Igreja Matriz começou a cair, assustando a população. Por isso, em 1876 o lugar começou a ser demolido. Quase dez anos depois, em 1885, foram encontradas ossadas que haviam sido enterradas na igreja. Os corpos, depois de exumados, foram transferidos para o Municipal em abril de 1886. A pesquisadora, no entanto, nunca descobriu onde exatamente essas ossadas estão sepultadas.

Anônimos e famosos

Entre os muros inicialmente levantados por escravos repousam eternamente grandes personalidades curitibanas. Vicente Machado, a família Hauer, o coronel João Gualberto e os fundadores da Mate Leão e dos refrigerantes Cini, por exemplo, são todos habitantes perpétuos do Municipal. Ali também estão inúmeros anônimos que ganharam notoriedade só depois de sua morte. É o caso de Maria Bueno, a desconhecida que, depois de ser assassinada, em 1893, virou milagreira.
Representada muitas vezes com olhos azuis, a “santinha de Curitiba” era, na verdade, parda, como fica claro em seu registro de óbito. Clarissa não perdoa a europeização da moça. “Eu acredito que para os devotos dela isso não faça diferença. Mas gostaria que um dia ela fosse escurecida, que deixasse de ser tão branquinha, porque isso, sim, é um elemento revelador e interessante.”
Recentemente, a pesquisadora descobriu que tem até um príncipe enterrado no São Francisco. Seu nome era Friedrich Franz von Hohenlohe-Waldenburg-Schillingsfürst e ele era membro da família real do antigo Império Austro-húngaro. O príncipe veio para o Brasil junto de sua segunda esposa, a Condessa Emanuela Batthýany von Német-Ujvár, da Hungria. Era o início da década de 1950 quando eles fixaram residência em Curitiba. Por aqui o príncipe ficou conhecido como Franz Hohenlohe, talentoso escultor que dividiu exposições com nomes como Erbo Stenzel e Poty Lazzarotto.
Placas de agradecimento à "santinha de Curitiba", Maria Bueno. Foto: Ana Gabriella Amorim/Gazeta do Povo
Placas de agradecimento à "santinha de Curitiba", Maria Bueno. Foto: Ana Gabriella Amorim/Gazeta do Povo
Clarissa também já perdeu as contas de quantas vezes foi o ponto de partida para que pessoas comuns descobrissem no Municipal parentes até então desconhecidos. Os visitantes fazem as visitas guiadas – que ela promove desde 2011 – e passam a se interessar por pesquisar a história do lugar. “É um viés diferente, porque as pessoas passam a ver [o cemitério] como um testemunho da nossa história. Você abre possibilidades múltiplas pra envolver a comunidade nisso e desmistificar o espaço. Acontece de as pessoas fazerem visitas e depois visitarem outros cemitérios, em outros lugares, e me mandarem fotos”, relata, rindo.

História até os ossos

Faz 15 anos que a relações públicas trocou o trabalho em comunicação pela pesquisa cemiterial. De lá para cá, observou que há uma divisão clara entre as sepulturas. “Tem o centro histórico, o bairro urbanizado – que é uma área que passou por processo de planejamento, arruamento e que reverbera o que acontecia na cidade -, o Batel – que é a parte dos mausoléus, onde estão os ervateiros e políticos mais influentes – e tem a periferia.”
De acordo com as observações feitas por ela, o cemitério reflete muitas das características dos bairros curitibanos. Isso vale inclusive para as relações de vizinhança. Muitas pessoas que eram vizinhas durante a vida têm mausoléus também avizinhados. “Você consegue contar a história da cidade a partir dessas trajetórias. O cemitério dá uma aula da cidade para a gente. Posso fazer referência à cidade em qualquer assunto. Posso falar de gênero, de crime, de ciclo econômico, de genealogia, de etnia, de moda, de arquitetura, de religiosidade.”
Túmulo da família de Ascânio Miró é um dos preferidos da pesquisadora. Foto: Ana Gabriella Amorim/Gazeta do Povo
Túmulo da família de Ascânio Miró é um dos preferidos da pesquisadora. Foto: Ana Gabriella Amorim/Gazeta do Povo
Com tamanha amplitude de assuntos ao alcance dos olhos, não surpreende que a especialista tenha dificuldade em escolher seus túmulos preferidos. “Cada uma tem um atrativo diferente, mas tenho uma predileção pelo da família do [ervateiro] Ascânio Miró”, arrisca. Em seguida, pensa melhor e se lembra de uma construção menos conhecida. “Tem uma só com pedrinhas que eu adoro. Nada de elaborado, ao contrário. São três gavetas, mas tem frisos feitos de pedrinha e está escrito ‘os anjos no céu’.”
Para dividir tantos detalhes que ajudaram a formar a Curitiba que se conhece hoje, nasceram as visitas guiadas ao Municipal. Só em 2017 cerca de 2,2 mil pessoas a acompanharam nesses tours pelo cemitério. Desde o ano passado Clarissa é contratada pela Prefeitura para promover um encontro mensal, normalmente temático. O sucesso é tanto que as inscrições para as três edições noturnas em comemoração ao aniversário de 325 da cidade, por exemplo, esgotaram-se em menos de 24 horas.
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