Comportamento

Amanda Milléo

“Minha família e eu decidimos doar nossos corpos para a universidade depois da morte”

Amanda Milléo
02/11/2017 15:40
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(Foto: Arquivo pessoal)

Falar de morte na casa da família Mozzilli nunca foi um tabu. Desde a infância, Miguel, engenheiro de 60 anos, se lembra de conversar com a mãe e os irmãos sobre o assunto e, quando os avós faleceram, com quase 100 anos de idade, foi ele e a mãe, Miris, quem tomaram os primeiros cuidados com os corpos dos parentes, trocando a roupa e dando o último adeus. Sem vontade de “viver” a eternidade no cemitério, Miguel tomou uma decisão impactante para o além-vida: doaria seu corpo para uma instituição de ensino.
O impulso para decidir o destino final do corpo foi repentino, segundo Miguel. “Eu vi uma entrevista com a professora Djanira [Djanira Aparecida da Luz Veronez, chefe de pesquisa e do departamento de Anatomia da UFPR], na qual ela dizia que a universidade tinha uma carência de corpos. O ideal seria receber 40 por ano e eles recebiam apenas dois. Então eu pensei que, depois que vamos embora, o corpo apodrece. Se eu doá-lo para a universidade, eu seria de alguma forma útil para a sociedade.”
Em uma comparação com a própria formação de engenheiro, Miguel reforçou o motivo para ter esse destino final. “Eu já tomei muito choque na vida, sendo engenheiro. Eu acho um absurdo o acadêmico de medicina passar a formação dele vendo o corpo através de um livro ou um boneco. Ele precisa de um intermediário que o ajude a estudar algum órgão, ver, sentir, pesar, passar pela emoção.”
Convencido da ideia, Miguel procurou a mãe, de 81 anos, e o irmão mais novo Marcelo, funcionário federal de 54 anos. Não foi surpresa nenhuma quando ambos embarcaram na decisão do familiar e também optaram pela doação do corpo.
“Lá em casa o pessoal é a favor daquilo que é bom, que ajuda a sociedade. Além do mais, o que eu faria com o meu corpo depois de morto? Falei para a minha mãe e ela, na mesma hora, pegou as coisas e disse: vamos para o cartório”, conta Miguel.
Como faço para doar meu corpo à instituição de ensino?
E esse é o primeiro passo indicado para quem deseja, assim como a família Mozzilli, doar o corpo para uma instituição de ensino no Paraná. O estado é o único no Brasil com um Conselho Estadual de Distribuição de Cadáveres (CEDC), ligado à Secretaria de Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, que orienta em seu site o caminho para a doação.
Munido dos documentos pessoais para fazer uma declaração e duas testemunhas, o doador deverá ir a qualquer cartório da cidade e fazer a declaração chamada de Termo de intenção ou escritura pública, onde deverá constar o desejo de fazer a doação do corpo para fins de estudo ou pesquisa ao CEDC. Um modelo deste termo pode ser encontrado no próprio site da CEDC.
Se preferir que o corpo seja direcionado a uma instituição específica (UFPR, PUCPR, UEL, UEPG, etc.), o doador pode deixar essa informação detalhada no documento. De acordo com a professora doutora Djanira Veronez, não é preciso se preocupar – uma vez ressaltado o desejo de doação a uma instituição de ensino, essa vontade é respeitada, bem como a doação em si.
“O CEDC tem uma lista de universidades que precisam dos corpos e essa lista roda. Então, quando uma instituição receber um corpo, ela vai para o final da fila até chegar a vez novamente de receber a doação. A não ser que a pessoa faça esse detalhamento no documento assinado em cartório, que tem o desejo de ir para alguma universidade específica”, explica a professora.
Feito o documento em cartório, é importante reforçar o desejo da doação do corpo aos familiares. “Na ocorrência do óbito, alguém da família entra em contato com a universidade e a gente acaba providenciando o que é necessário para que venha até aqui”, reforça Veronez.
“Depois que fizemos a doação, eu me sinto como uma enciclopédia de anatomia ambulante, só esperando o momento de o pessoal começar a ‘me ler’. Só espero que demore um pouquinho”, brincou Miguel.
(Foto: Arquivo pessoal)
(Foto: Arquivo pessoal)
Posso velar o corpo do parente que será doado a uma instituição?
Ainda há muitas dúvidas, de acordo com a professora chefe de pesquisa e do departamento de Anatomia da UFPR, Djanira Veronez, com relação à doação dos corpos às instituições de ensino. A primeira delas: posso velar o corpo?
“Pode. O velório não influencia em nada e a família estabelece o número de horas em que o corpo será velado. Às vezes há familiares que vem de longe e não tem problema esperá-los. Isso porque, quando a pessoa vai à óbito, há um serviço funerário que repara o corpo e, depois de velado, ele segue para a universidade”, explica a professora.
Outra dúvida comum é com relação ao tipo de morte que a pessoa teve e, aí sim, há contra-indicações. “Só podem vir para as universidades as mortes de causa natural. Morte violenta, como é o caso de acidentes de trânsito, homicídio ou suicídio, o corpo segue para o Instituto Médico Legal, onde é feita uma verificação, é aberto um processo e a investigação pode ser longa”, reforça.
Pessoas que faleceram devido a doenças, como câncer, podem ser encaminhadas às instituições de ensino, onde contribuem com a formação de futuros médicos, enfermeiros, dentistas e outros profissionais de diferentes maneiras:
“É de grande contribuição para melhor formar os estudantes. O livro ajuda e aprendemos muito com softwares também, mas o cadáver humaniza o aluno. É o primeiro contato com a morte. Ali ele percebe que a vida é finita e faz com que ele reflita, adquira conceitos éticos, morais, fora todo o contexto anatômico, de formação e pesquisa”, diz a professora.
Posso visitar o parente na universidade?
Por uma questão estética, não é indicado – e muitas universidades também não permitem – que o corpo receba visitas de parentes. “Os cadáveres ficam dentro de tanques, na câmara fria e o corpo pode não estar totalmente íntegro. Na atividade de dissecação, é retirada a pele de algumas regiões e isso não é muito agradável de ser visto”, explica Djanira.
Mas, o corpo pertence a família – mesmo que ele tenha sido doado à instituição – e os familiares que desejarem podem pedi-lo de volta. Embora a prática não seja comum, segundo a professora, a informação é sempre reforçada aos parentes.
Também vale lembrar que a pessoa que manifesta o desejo de doar o corpo em vida, ela não recebe absolutamente nada de nenhuma instituição para tomar essa decisão. Trata-se, de acordo com Djanira, de uma doação de fato.
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