Comportamento

Katia Michelle

De posar nua ao ativismo, veja como Preta Gil encara o preconceito

Katia Michelle
26/11/2016 09:00
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Ao posar nua no primeiro disco e ver as reações das pessoas, Preta Gil se deparou com o preconceito de ser "fora dos padrões". Foto: divulgação.

Ela cresceu em um mundo sem preconceito. Não por acaso. É filha de Gilberto Gil, afilhada de Gal Costa e tem um círculo de amigos que não incluem a palavra – e o comportamento – no vocabulário. Por isso, para a cantora Preta Gil foi tão desconcertante encarar o mundo “fora da bolha”. Há 15 anos, desde que lançou o primeiro CD com uma foto dela nua na capa percebeu que “ser negra”, “gorda” e “fora dos padrões” não é a coisa mais fácil do mundo em um país que, mesmo miscigenado, tem histórico de preconceito.
“Eu não sabia que ia lidar com tanta hipocrisia. Para mim foi um susto”. Mas o espanto se transformou em luta, por isso, desde que começou a carreira Preta Gil usa o palco e a sua influência para protestar. Recentemente virou embaixadora da campanha #HeForShe da ONU, Mulheres Brasil ao lado de Lea T,  Sheron Menezzes e Anselmo Vasconcelos contra o preconceito. “A campanha vem em um momento bom porque até então eu fazia tudo sozinha. Eu fazia uma auto campanha no palco, com a minha música”, conta.
Primeiro disco da cantora foi lançado em 2003. Foto: reprodução
Primeiro disco da cantora foi lançado em 2003. Foto: reprodução
Aos 42 anos, mãe de três filhos e avó de uma menina (Sol de Maria) que acaba de completar um ano, Preta Gil esteve em Curitiba para um pocket show gratuito, no Shopping Curitiba, e conversou com exclusividade com o Viver Bem. Acompanhe a entrevista:
Além de desenvolver uma carreira artística, você é uma grande influenciadora no Brasil, levantando bandeiras e campanhas específicas contra o preconceito. Essas duas questões sempre andaram juntas para você?
Eu costumo dizer que essa influência que eu tenho sobre as pessoas é muito natural. Tudo na minha vida e na minha carreira se deu de uma forma muito espontânea. Há 15 anos, quando eu comecei meu trabalho como cantora eu também comecei automaticamente como ativista. Porque na época eu lancei um disco (Prèt-a-Porter, em 2003) e posei nua para capa do DVD e CD. Eu fui tão atacada pela imprensa, pela mídia pela sociedade de um modo geral que eu tive que levantar uma bandeira quase que na marra.
Como foi esse processo?
Eu não sabia que ia lidar com tanto preconceito. Com tanta hipocrisia. Para mim foi um susto.  Então ali eu pensei:  a gente mora num pais abençoado por deus e bonito por natureza. País tropical. Moro no Rio de Janeiro. As mulheres são seminuas. Na praia de Ipanema as mulheres usam biquínis mínimos e as pessoas vão se importar com uma foto minha que não aparecia praticamente nada? Era quase uma silhueta na capa do disco. Mas aí eu fui entender o motivo:  porque eu não sou magra, porque eu não sou branca, porque eu não sou alta, porque eu não sou loira, porque eu não faço parte dos padrões. Se fosse uma cantora magra, bonita (eu me acho linda), mas dentro dos padrões eu acho que talvez tivessem achado incrível. Ninguém ia questionar como foi questionado. Aí eu comecei a entender que ali tinha uma carga histórica muito grande de preconceito, de racismo, de gordofobia que eu nem sabia que existia e aquilo me assustou. Então ao longo desses 15 anos eu venho lutando por mim mesma pelo meu direito de ser quem eu sou. Pelo meu direito de experimentar, de viver. E isso aconteceu naturalmente.Hoje se fala muito de empoderamento, hoje se fala muito em representatividade. Na minha época não tinha essas siglas, esses nomes. Era simplesmente eu querendo ser feliz.
E tem algo que te marcou nessa trajetória de experimentação?
Nada me marca, as coisas me transformam. Não tem mágoa, não tem nada de ruim. Tudo para mim é um experimento importantíssimo para conhecer o ser humano. A gente acha muitas vezes que as pessoas são iguais a nós, a nossos pais, ao nossos círculos de amigos, mas não é assim. As pessoas são diferentes. Elas pensam diferente da gente. Tem motivos para pensar diferente da gente e nós precisamos saber aonde a gente está pisando, com quem estamos lidando. É muito importante saber as opiniões contrárias até as nossas. E conhecer todas essas opiniões foi muito importante para reconhecer a sociedade que eu vivia. Talvez eu fosse um pouco iludida. Eu era muito protegida pela minha família. Como eu vim de uma família de pai negro e mãe branca eu vivi nessa miscigenação a vida inteira. Para mim era muito natural. Ser quem eu era. Ter o que eu tinha.  E depois eu fui entender que a sociedade não via isso com tanta naturalidade e aí eu botei as minhas manguinhas para fora.
"Nada me marca, as coisas me transformam. Não tem mágoa, não tem nada de ruim. Tudo para mim é um experimento importantíssimo para conhecer o ser humano", diz Preta Gil.
"Nada me marca, as coisas me transformam. Não tem mágoa, não tem nada de ruim. Tudo para mim é um experimento importantíssimo para conhecer o ser humano", diz Preta Gil.
A campanha #HeForShe da ONU, Mulheres Brasil que você faz ao lado de Lea T, Preta Gil, Sheron Menezzes e Anselmo Vasconcelos é uma resposta para isso, já que é uma campanha contra o preconceito em várias áreas?
Sim. E essa campanha veio em um momento muito especial. Porque nesses anos todos eu tive que fazer minha auto campanha. Minhas campanhas solitárias.  Eu praticamente usei meu palco, usei minha música para fazer isso para que as pessoas pudessem se amar. Eu vi muita coisa nesses 15 anos. Tanta história triste de adolescente de meninos e meninas que não se aceitavam e sofriam preconceito dentro de casa, na escola e na sociedade por serem gays, por serem gordos, por serem eles. E isso é uma coisa que tem que acabar. A gente vive um momento de transformação muito grande que passa desde a descoberta do ressurgimento de uma sociedade muito conservadora, mas também passa pelo surgimento de uma força de oposição a isso tudo. Os jovens entendem isso. Entendem que precisam se opor.
Esse é o mundo, com essa mudança, que você que sua neta viva, por exemplo?
Sim. Eu quero que ela encontre um mundo em que as diferenças sejam respeitadas. Isso é o mais importante. Eu quando comecei eu vivia muito no país das maravilhas, achando que o tropicalismo, que a minha família ser daquele jeito tão livre, tão inclusiva, tão diversa, era normal. Aí eu fui entendo que não.
Como sair da bolha?
Foi difícil. Foi muito difícil. Eu não saí da bolha naturalmente. Eu fui arrancada da bolha por uma enxurrada de críticas e julgamentos à minha pessoa que sequer passavam perto da realidade daquilo que eu sentia. Mas isso me motivou. Me motivou, por exemplo, a fazer a capa do disco e também me expor como sou. O país coloca todo mundo na mesma prateleira e não é assim.
Você acabou criando uma relação com a beleza muito forte nos últimos anos, até comercialmente (Preta Gil tem uma linha de esmaltes). Qual é a sua relação com a beleza?
A gente tem a vaidade como uma aliada, mas para isso a gente tem que cuida da nossa cabeça, da nossa cuca, como diria meus pais. É uma relação de dentro para fora. Na sociedade hoje em dia é tudo de fora para dentro. É tudo muito superficial. A roupa pela roupa. A maquiagem pela maquiagem. A moda pela moda. O consumo pelo consumo. Temos que saber como contribuir com isso para mudar…
O Bazar da Preta é uma resposta para esse novo momento de consumo? (O Bazar é realizado no Rio de Janeiro, com venda de roupas do acervo da cantora e doadas por outros artistas. A renda é revertida para instituições de caridade).
Sim. Isso é uma resposta minha, pessoal a um momento de amadurecimento meu. O bazar completa dez anos e foi onde eu comecei a questionar toda essa questão do consumo.
Planos para o futuro?
Estou gravando um disco novo que sai agora em março.  Em dezembro eu lanço um single, uma música para o verão, bem alegre, bem a cara do Brasil . E também estou com os preparativos intensos para o carnaval. O Bloco da Preta vai sair em são Paulo e Salvador. Espero recber um convite para Curitiba também. Já soube que aqui tem uma cena carnavalesca importante, que está engatinhando, mas eu acredito muito na força do povo brasileiro e das culturas e da regionalidade. O Brasil tem sorte de ser um país rico e diverso.