Comportamento

Carolina Werneck

A luta por amor que já dura 60 anos, e vale cada segundo

Carolina Werneck
11/06/2018 17:00
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Aimê e Urias estão casados há quase 58 anos. Eles guardam todas as cartas que trocaram enquanto ele estava no Egito, servindo em uma missão de paz da ONU. Foto: Carolina Werneck/Gazeta do Povo

“Apucarana, 16 de janeiro de 1959. Querido Urias, mais uma vez envio através deste simples papel minha mensagem de amor e saudades.” Essas palavras riscaram uma folha do caderno de Aimê Alves há quase 60 anos. Depois, metidas em um envelope, cruzaram o Oceano Atlântico até Rafah, no Egito. Lá, na região que hoje é conhecida como Faixa de Gaza, seu amado Urias Alves esperava ansioso pelas cartas que chegavam de navio.
Os dois se conheceram no início de 1958, quando ele encontrou um bilhete na carteira que ocupava no colégio: “Pode me dizer quem senta nesta carteira?”. A pergunta, escrita à mão, fora deixada lá de propósito por Aimê, que usava a mesma mesinha no contraturno – e que percebera, passando pelo corredor, que “o rapaz mais bonito da cidade” de certa forma dividia com ela aquele móvel de madeira.
Mas Urias era, então, vendedor das lojas Pernambucanas. E Lucidoro, pai de Aimê, já tinha um pretendente para a primogênita. “Ele dizia que o trabalho do Urias não dava futuro para ninguém. Queria que eu casasse com o filho do padeiro”, conta ela, às gargalhadas.
Para afastar a desconfiança do sogro, Alves pediu demissão do cargo de vendedor e embarcou em um navio no Porto de Paranaguá com destino a Porto Said, no Egito. Ele tinha ouvido dizer que o Exército Brasileiro estava recrutando voluntários para servir no Batalhão Suez, que esteve em Gaza, em missão de paz pela Força de Emergência das Nações Unidas (Unef), entre 1957 e 1967. Pensando em juntar dinheiro para o casamento, candidatou-se imediatamente. Era junho de 1958.

O boina azul e a professora

Os “boinas azuis”, como ficaram conhecidos, tinham como tarefa proteger a fronteira entre o Egito e Israel, estado que tinha sido criado há apenas dez anos. A missão dos soldados era impedir que palestinos e israelenses entrassem em conflito.
“Nós patrulhávamos uma faixa de 100 km de extensão por dez quilômetros de largura. Não podíamos deixar ninguém passar de um lado para o outro da fronteira. Até jumentos, quando passavam, a gente tinha que levar de volta para o outro lado. Nosso comando ficava em Rafah, no Egito mesmo, mas nós ficávamos em pleno deserto. Dormíamos em barracas, com toalhas no rosto por causa das tempestades de areia“, explica Urias.
Aimê se lembra de como foi difícil, com apenas 16 anos, ainda terminando o magistério, enfrentar esse capítulo da história do casal. “Eu me senti abandonada, quase sequei de tanto chorar”, conta, rindo ao lembrar que era muito pressionada pelas amigas de Apucarana. “Ele era muito, mas muito bonito. As meninas da cidade diziam que ele não ia mais voltar, que era para eu esquecer.”
A foto em preto e branco mostra o dia do casamento de Urias e Aimê. As duas fotos de cima são das Bodas de Ouro, em 2010. A foto à esquerda é das Bodas de Prata. Foto: Carolina Werneck/Gazeta do Povo
A foto em preto e branco mostra o dia do casamento de Urias e Aimê. As duas fotos de cima são das Bodas de Ouro, em 2010. A foto à esquerda é das Bodas de Prata. Foto: Carolina Werneck/Gazeta do Povo
Enquanto isso, no deserto, Urias só pensava na namorada professora. “Eu era responsável por não deixar faltar diesel no acampamento. A gente aquecia tudo com diesel; então ia e voltava do acampamento ao posto de comando muitas vezes por dia, a pé. Passava muito tempo sozinho e ficava pensando nela, em quantos filhos eu teria, no que faria quando voltasse ao Brasil.”
Aqui no Brasil, ela sofria outras saudades além da saudade dele. “Minha mãe ficou doente e faleceu em pouco tempo, enquanto ele estava lá no Egito. Tinha sempre muita coisa para fazer. Eu precisava terminar o magistério, dar aulas e cuidar da casa e dos irmãos mais novos”, relembra.

Cartas de uma vida

Urias Alves é, hoje, um comerciante aposentado de 83 anos. Aimê, 77, se formou em psicologia e chegou a ser diretora de um colégio. Mas a verdadeira vocação do casal foi administrar por quase meio século a Papelaria Central, uma das mais conhecidas de Londrina, no centro da cidade. Em dezembro de 2018 eles vão comemorar 58 anos de casados.
Em meio aos registros de toda uma vida juntos, eles guardam a coleção de cartas enviadas um ao outro durante os 18 meses que Urias passou longe. A conexão entre Apucarana e Rafah podia ser lenta, mas para eles sempre foi muito sólida. Os dois trocavam cartas em média uma vez por semana. “Era carta que ia, era carta que vinha, temos todas encadernadas até hoje”, conta Aimê, mostrando com orgulho os dois livros que montou – um com as cartas que vinham do Egito para o Brasil e o outro com as que faziam o caminho inverso.
As cartas trocadas há quase 60 anos estão encadernadas em dois volumes. Foto: Carolina Werneck/Gazeta do Povo
As cartas trocadas há quase 60 anos estão encadernadas em dois volumes. Foto: Carolina Werneck/Gazeta do Povo

Palavras de meio século

Um trecho de uma das cartas enviadas então por Aimê demonstra a dificuldade em manter contínuo o fluxo de correspondências. “Meu bem, você creio que ficou umas duas semanas sem receber cartas minhas, pois estive em Bernardino [Bernardino de Campos, interior de São Paulo]. Escrevi para você, de lá. Mas cada vez que eu levava uma carta ao correio, a moça que estava lá dizia: ‘você está gastando dinheiro à toa, pois esta carta creio que não chegará.”
Em letra caprichada, a carta conta que a jovem ainda tentava argumentar com a funcionária do correio. Dizia que não era possível, porque as que ela enviava de Apucarana sempre chegavam ao destino. “Ela respondia simplesmente: ‘lembre-se de que você está em Bernardino de Campos, e não em Apucarana. Se lhe digo que a carta não chegará é porque não vai sair nem daqui’. Eu voltava para casa ‘fervendo’ de raiva.”
As cartas mostram uma Aimê jovem e cheia de saudade, mas prática e independente, como segue sendo até hoje. De riso fácil e olhar carinhoso, acorda todos os dias de madrugada para ir à academia e estar de volta quando o marido levanta. Gosta que a família tome o café junta sempre que possível. Quando fala, é sempre com a voz tranquila. Só não controla mesmo as gargalhadas. Aimê gosta de rir da vida.
Foto: Carolina Werneck/Gazeta do Povo
Foto: Carolina Werneck/Gazeta do Povo
Urias, por sua vez, era mais romântico. As cartas que vinham de Rafah têm frases poéticas e declarações de amor. Uma passagem, escrita no Natal de 1958, descreve as celebrações da data no batalhão. “Querida Aimê, saudades. É com dores de minha interminável saudade que inicio a escrever-lhe esta carta”, começa ele. Relendo-a depois de tanto tempo, na sala da casa dos dois, Aimê ainda se emociona. Pudera. A carta segue segue: “sob um teto de um céu todo estrelado (…) dentro de um deserto imenso. (…) Meu coração aperta, meus olhos choram. Quem, como eu, não choraria agora? Ninguém. Meus olhos vêem beleza, porém o meu coração lembra de alguém distante que, por ele, chora também.”
Essa delicadeza acompanhou Urias ao longo da vida. Os abraços fortes e longos são marca registrada do senhor alto e magro. É esse mesmo carinho que ele aplica quando cuida da horta de onde saem muitos dos vegetais que a família consome. E quando corta muitas bananas por dia e espalha em bandejas para ter sempre perto da janela os sanhaços, sabiás, bem-te-vis e outros passarinhos que vêm se deliciar com o banquete.
Do bilhete deixado por Aimê na carteira do grupo escolar até o casamento foram dois anos e centenas de cartas. A missão de Alves acabou em novembro de 1959. Eles se casaram em 1960. Em 1967, o Batalhão Suez deixou Gaza, que sofreu uma escalada de violência ao longo dos anos e continua sendo um território em disputa até hoje. Em Londrina, por outro lado, em uma casa com um grande jardim, o pacífico e alegre casamento do boina azul e da professora segue o exemplo do conflito que ele ajudou a apaziguar, mas que, quase 60 anos depois, ainda persiste. Ambos parecem não ter fim. “Eu acho que é eterno. Já veio para ser e é para continuar”, sorri Aimê.
Foto: Carolina Werneck/Gazeta do Povo
Foto: Carolina Werneck/Gazeta do Povo

Assista o casal lendo trechos das cartas:

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