Comportamento

Felippe Aníbal

Ex-refugiado cego que viveu em Curitiba cria escola para deficientes visuais

Felippe Aníbal
03/01/2018 12:00
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O professor Wilson Madeira: ele voltou ao país natal depois de 15 anos no Brasil. Foto: Marcelo Andrade/Gazeta do Povo. | Gazeta do Povo

Em setembro do ano passado, o angolano Wilson Madeira, de 31 anos, embarcou no avião que o levaria de volta a Angola, depois de ter passado 15 anos no Brasil como refugiado. O rapaz, que perdeu a visão ainda menino, atingido por destroços de uma granada em plena guerra civil, regressava ao país de origem com ganas de realizar o que acredita ser sua “missão”: levar luz a outros cegos.
A luz, neste caso, é metafórica. O que ele fez foi fundar uma escola, por meio da qual pretende mudar a vida de outros deficientes visuais e ajudá-los a conquistar autonomia. Como ele.
Will, como é conhecido, faz parte de um grupo de cegos angolanos que chegou ao Brasil em 1990, por intermédio de uma organização não-governamental. Foi em Curitiba que ele aprendeu informática, AVD (atividade da vida diária), braile, musicografia em braile, além de ter concluído o ensino médio e de ter iniciado cursos superiores – Psicologia, Pedagogia e Processos Gerenciais.
Teve chances que seriam impensáveis em Angola. Mas não foi só a saudade que o fez voltar à terra natal. Foi, principalmente, a vontade de contribuir com a sociedade.
“Pela internet, eu via notícias sobre a realidade dos cegos em Angola e aquilo me deixava muito triste, porque os cegos de Angola não têm as oportunidades que eu tive no Brasil. Não têm acesso à internet, não têm braile, não têm nada”, disse.

“Eu estava muito feliz no Brasil. Tinha emprego, tinha casa, estava bem, mas eu sentia que alguma coisa estava faltando. E o que faltava era que eu não estava cumprindo a minha missão”, completou.

Mãos à obra

Ao retornar, Will se fixou em Sumbé, município litorâneo e capital da província de Kwanza Sul, onde moram sua mãe, uma de suas irmãs e primos. Em poucos meses, se acostumou à rotina da cidade de povo festivo – são cerca de 220 mil habitantes –, mas que ainda sofre com a corrupção de agentes governamentais e outros problemas típicos de países em desenvolvimento, agravados por anos de guerra civil.
Foi em Sumbé que Will conheceu Eduardo Manoel, representante da Associação Nacional dos Cegos de Angola (ANCA), que tinha um propósito parecido. A amizade se tornou parceria, sacramentada com a criação do Centro de Capacitação Assistiva WillEdu, que tem a primeira turma formada por 12 alunos cegos, com idades que variam de 11 a 50 anos.
A estrutura ainda é bem simples, quase improvisada: a escola funciona em uma casa cedida por Eduardo, onde Will dá aulas de informática, braile e música. A instituição dispõe de apenas um notebook e uma máquina de braile, adquiridos “com a ajuda dos amigos angolanos e brasileiros”.
Will pôs a mão nas próprias economias e chegou a emprestar dinheiro da mãe para comprar a caminhonete que busca cada um dos alunos para as aulas.
“Os alunos não pagam nada. Apenas colaboram com um valor simbólico, para ajudar com o combustível. De resto, a estrutura ainda é pequena, mas todos estamos com muita vontade: os alunos com vontade de aprender e eu com vontade de ajudá-los a crescer”, disse o professor.
Em outra via, Will começou a introduzir o futebol de cinco – modalidade para cegos – em Angola. O jovem levou a Sumbé o professor de educação física de Curitiba Paulinho Moreira, especialista na modalidade esportiva para deficientes visuais. Lá, o educador capacitou 14 professores, que já estão aptos a disseminar o esporte de inclusão por toda Angola. “Ele [Moreira] não cobrou nada. Veio, ficou em minha casa e agora temos condições de propagar o futebol de cinco para o resto do país”, resumiu Will.

Pequena revolução

Há um ano, quando Will foi ministrar a primeira aula, seu aluno mais jovem, Eugênio Domingo, pensou que seria impossível ter autonomia. “Como que cego vai aprender informática, mexer no Facebook, ler notícias? O professor está a brincar, não está?”, questionou o menino de 11 anos.  Hoje, não só Domingo, mas todos os alunos já leem em braile, acessam internet e lidam com programas de computador e aplicativos de celular. Aos sábados, se reúnem para jogar futebol. Já se trata de outro modo de vida.

“Aqui não é como no Brasil. Os cegos ficam em casa, sem fazer nada. Estamos mudando isso”, aponta Will. “É escola durante a semana e futebol aos sábados”, sintetiza.

Apesar disso, a escola quer mais. Will almeja conseguir ampliar o centro e ministrar cursos profissionalizantes. O objetivo máximo é consolidar parcerias com a iniciativa privada, por meio das quais os empresários possam apadrinhar os deficientes visuais e dar-lhes oportunidades de trabalho.
“Queremos que todos vejam os cegos como parte da sociedade, como pessoas que podem ser inseridas em tudo e que podem contribuir. Para mim, seria um sonho se os alunos se tornassem autossuficientes, que se tornassem professores, pudessem ganhar um salário e, com seu trabalho, também levar autonomia a outros cegos”, apontou. “Quem quiser ajudar a realizar isso, toda ajuda será bem vinda”, acrescentou.

Cegos de Angola

Will e outros nove cegos angolanos chegaram a Curitiba em 2001, por meio da Fundação Eduardo Santos (Fesa), uma ONG africana. Por dez anos, eles moraram no Instituto Paranaense de Cegos (IPC), onde foram alfabetizados e tiveram aulas para se tornarem independentes. Juntos, eles formaram o conjunto “Cegos de Angola” e chegaram a participar do programa Caldeirão do Huck, da Rede Globo. Em 2011, passaram a viver em duas repúblicas, também em Curitiba. Após a partida de Will, os colegas continuaram na capital paranaense.
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