Comportamento

Carolina Werneck

Para tornar visíveis pessoas invisíveis, jornalista lança projeto “Brasil de Cor”

Carolina Werneck
20/11/2017 11:06
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A ideia do canal surgiu quando o jornalista se deu conta de que os mais de 50% de negros na população brasileira normalmente não têm voz na mídia. Foto: Hugo Harada/Gazeta do Povo | Gazeta do Povo

“Temos que tornar visíveis as pessoas invisíveis, porque elas têm coisas muito interessantes para nos dizer.” Com 30 anos de jornalismo no currículo, é assim que Herivelto Oliveira define seu novo projeto, o canal “Brasil de Cor“. O projeto foi criado para dar voz à comunidade negra que se destaca, mas ainda é pouco reconhecida, mesmo representando mais da metade da população brasileira, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
A ideia é fruto de um incômodo que apareceu por volta de 2011, quando Oliveira ainda trabalhava na RPC, onde foi repórter, editor, apresentador e coordenador de treinamento e do núcleo responsável por cobrir eleições. “Recebi um release do IBGE dizendo que o Brasil tinha mais de 50% de negros. Chama a atenção porque a gente não vê essa proporção nas novelas, na televisão. Os negros que você tem lá normalmente são os mesmos de sempre, os famosos. Você não tem um programa que trate das pessoas negras comuns.”
Anos mais tarde, já fora da televisão, veio o insight de criar ele mesmo um espaço para conversar com essas pessoas que não têm voz nos veículos tradicionais. Para isso, ele contou com a ajuda dos repórteres cinematográficos e donos de uma produtora Vanderlei Moreno e Lincoln Vendramel. A jornalista Katia Fernandes contribui com entrevistas feitas na Inglaterra, onde vive. A marca do “Brasil de Cor” é obra do publicitário Claudio Soares. A edição, por sua vez, tem colaboração de Gustavo Filus.
Cadastrado no Youtube em novembro de 2016, o canal recebeu seus primeiros vídeos em fevereiro deste ano. Desde então, já foram publicados mais de 130 vídeos, resultado de 30 entrevistas. “Eu não queria dar essa conotação de que seria um canal só para negros. Então minha primeira entrevista foi com um branco, o publicitário Marcelo Romaniewicz. Falamos sobre uma campanha da Master Comunicação que mostrava o chamado racismo institucional“, conta Oliveira.
No Youtube, o jornalista Herivelto Oliveira abre espaço para os "invisíveis". Foto: Hugo Harada/Gazeta do Povo
No Youtube, o jornalista Herivelto Oliveira abre espaço para os "invisíveis". Foto: Hugo Harada/Gazeta do Povo
Todas as cores do Brasil
Diversificado, o conteúdo do Brasil de Cor não trata apenas das vivências da população negra no Brasil. “Eu não quero que o canal seja só uma forma de ativismo. São pessoas que têm boas histórias para contar e que possivelmente não são lembradas na hora de fazer uma pauta por culpa nossa [da imprensa] mesmo. É um questionamento que eu não me lembro de ter sido feito na televisão. Nunca ouvi alguém questionar ‘será que não tem um negro que possa falar sobre determinado assunto?’.”
Com um formato similar ao dos talk shows, os vídeos postados por Oliveira têm como bônus a familiaridade de quem passou boa parte da vida em frente às câmeras. São conversas, mais que entrevistas formais, sobre temas que interessam a quem fala e a quem escuta.
Permeando eventualmente esses temas estão as questões relacionadas ao racismo e aos fortes estigmas sociais que os negros ainda carregam. “Se a gente for pensar em termos de escravidão, tudo ainda é muito recente. A minha avó, que nasceu em 1901, era neta de escravos. Ainda é uma ferida que não fechou totalmente, para muitas pessoas”, opina o apresentador. O próprio nome do canal “Brasil de Cor”, é uma alusão a uma situação pela qual ele mesmo passou no início da carreira.
Pautado para fazer uma matéria que envolvia denúncias contra o Hospital Evangélico de Curitiba, o jovem repórter entrevistou o então diretor da instituição. “Eu perguntei ao diretor se ele tinha as informações e ele disse que não. Fiz a matéria, ele ficou bravo e, no dia seguinte, deu uma entrevista para a Tribuna dizendo que ‘um jornalista de cor do canal 12 esteve aqui e disse isso, isso e isso’.”
Dias depois, o mesmo diretor foi à Câmara Municipal prestar esclarecimentos e confundiu outro jornalista, também negro, com Oliveira, partindo para cima dele. “Acontece que o Brasil é um país de cor mesmo. Não só de negros, brancos e amarelos, mas de muitas cores”, ressalta o apresentador.
Tornar visíveis os invisíveis
A escolha dos entrevistados é diversificada, mas não aleatória. O faro de jornalista segue apurado e busca boas histórias, seja de gente comum, seja de gente famosa. A lista de vídeos inclui, por exemplo, o cantor Falcão, da banda O Rappa, entrevistado após um show em Curitiba. Bela Gil também já passou pelas lentes do canal, assim como Saul Trumpet, ícone da música curitibana que faleceu no começo de novembro.
Mas ali também têm vez nomes menos conhecidos. Um dos destaques, na opinião do próprio apresentador, é Hugo Cortes, baiano que encontrou o sucesso como músico e bailarino em Londres. Letícia Costa, Miss Curitiba 2017, falou em sua entrevista sobre beleza e preconceito. “A ideia era manter o canal por seis meses, mas esse prazo já passou. Tenho pautas para todo este ano”, diz Oliveira.
Herivelto foi responsável por uma das últimas entrevistas concedidas pelo músico curitibano Saul Trumpet, que faleceu no começo do mês. Foto: Hugo Harada/Gazeta do Povo
Herivelto foi responsável por uma das últimas entrevistas concedidas pelo músico curitibano Saul Trumpet, que faleceu no começo do mês. Foto: Hugo Harada/Gazeta do Povo
Para ele, o estranhamento causado pela presença dos negros no jornalismo tende a diminuir à medida que essa presença se tornar mais frequente. “É obvio que a gente tem que ver a questão social. Por muito tempo os negros não tinham condição de ocupar cadeiras universitárias. Hoje isso está mudando, mas acho que nós ainda não conseguimos contar dez jornalistas negros de destaque no Brasil, o que é uma vergonha.” Ele diz acreditar, no entanto, que não se trata de um problema apenas do jornalismo, mas de todas as áreas.
Uma entrevista após a outra, ele tenta construir uma base para que cada vez mais negros apareçam como referência. “A gente vai ser um país talvez mais feliz quando sair para jantar, encontrar várias famílias de negros no restaurante e não achar isso estranho. É contra essa estranheza que eu acho que a gente tem que lutar. A gente não elimina esse problema com guerra ou protesto, mas com educação e conscientização.”
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