Comportamento

Carolina Werneck

Jogo de tabuleiro ajuda profissionais a lidar com a violência contra a mulher

Carolina Werneck
25/11/2018 07:30
Thumbnail

Nomes de mulheres representam cada estado.

Agora, no exato momento em que você começa a ler este texto, uma mulher está sendo agredida no Brasil. E a cada dois segundos acontece de novo. A estimativa é do Relógios da Violência, iniciativa do Instituto Maria da Penha.
O número é tão alto que as políticas de combate a esse tipo de crime não dão conta de exterminá-lo. “A questão da violência contra a mulher é um problema coletivo. A saúde, sozinha, não dá conta; o judiciário não dá conta; a educação não dá conta e a assistência social não dá conta”, desabafa Lucimara Fornari, da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo (USP). Ela é parte de um projeto que desenvolveu o jogo de tabuleiro “Violetas”, criado para discutir o assunto entre profissionais de todas essas áreas que atuam junto a mulheres vítimas.
Resultado de uma parceria entre pesquisadores da USP, coordenados pela professora Rosa Maria Godoy Serpa Fonseca, e da Universidade de Brasília (UNB), coordenados pela professora Maria Raquel Gomes Maia Pires, o jogo está disponível para encomenda.

“A gente pensou em um meio mais delicado para discutir o problema. Esse é um jogo lúdico. A ideia é tirar a pessoa do contexto dela e trazer para o universo do jogo.”

“Violetas” não foi desenvolvido para ser jogado por vítimas, mas apenas pelos profissionais das diversas áreas que, notadamente ou não, têm contato com mulheres que sofrem violência. “O jogo não ensina, ele estimula reflexões. Muitos profissionais relatam que depois do jogo vão buscar conhecimento sobre coisas que trabalharam durante a partida”, explica Lucimara. A atuação dos participantes do jogo em conjunto também é fundamental. Assim como na vida. Para a pesquisadora, quando as muitas áreas atuam juntas no combate à violência de gênero os resultados são mais rápidos e eficazes.

O jogo

O tabuleiro é dividido em cinco áreas, que representam as cinco regiões do Brasil. As cidades são, por sua vez, representadas por nomes de mulheres. O jogo comporta entre quatro e oito participantes, mas não há competição entre eles. Por ser um jogo de estratégia, todos ganham ou todos perdem.
Nomes de mulheres representam cada estado.
Nomes de mulheres representam cada estado.
Os responsáveis por ele notaram, durante a validação, que os jogadores logo percebem essa características e passam a atuar em parceria uns com os outros, discutindo as questões levantadas em vez de tentar responde-las individualmente.
A partida começa com três peças de violência espalhadas pelo tabuleiro. “Isso é porque nós sabemos que a violência é um problema que está na sociedade. É inerente a ela”, afirma Lucimara. Quem escolhe para onde os peões vão se movimentar são os próprios participantes. Eles podem ir todos para a mesma região ao mesmo tempo ou não.
A cada nova casa em que o peão para, os participantes leem uma pergunta. Acertar sua resposta é a condição para ganhar peças que cerquem as outras, da violência. As perguntas são todas baseadas em cenas de filmes e apresentam situações de violência física e psicológica contra a mulher. A cada quatro respostas corretas, o participante libera um token. São quatro deles no total.
Mas há também o elemento surpresa, que são as cartas de sorte e azar. Enquanto as de sorte contribuem para que os jogadores avancem na partida, as de azar são inspiradas em situações reais e atrapalham o progresso.

“Quando falamos de violência há muitas situações que não controlamos. Essas cartas servem justamente para mostrar o quanto é difícil combate-la.”

Lidar com a frustração de não conseguir acabar com a violência contra a mulher também faz parte do jogo. Quando ele termina, ainda que a equipe saia vencedora, nem sempre todas as peças de violência foram eliminadas. Assim como na vida.

Problema naturalizado

Para Lucimara, as políticas brasileiras de combate à violência contra a mulher existem, mas não são suficientes. Implantadas, nem sempre são aplicadas. Muitas vezes são descredibilizadas, abandonadas ou se deterioram com o passar do tempo. Foi o que aconteceu com a Casa da Mulher Brasileira.
Implementada em 2015, a previsão era de que houvesse pelo menos uma em cada capital do país. Atualmente há apenas três em funcionamento, uma delas em Curitiba. “É uma casa em que a mulher entra e encontra todos os serviços no mesmo espaço”, conta a pesquisadora.
A Casa da Mulher Brasileira, em Curitiba, é uma das poucas em funcionamento no país. Foto: Albari Rosa/Gazeta do Povo.
A Casa da Mulher Brasileira, em Curitiba, é uma das poucas em funcionamento no país. Foto: Albari Rosa/Gazeta do Povo.
Quando uma mulher vítima de violência procura ajuda, ela precisa ser acolhida por uma série de serviços. Sem a Casa da Mulher Brasileira, muitas vezes ela fica sendo jogada de um lugar para outro e acaba desistindo de levar o caso adiante. “Às vezes, pior que a desistência, esse tipo de dificuldade acaba resultando em um feminicídio”, diz.

Feminicídio. Este é o nome correto para as mortes de mulheres que são assassinadas pelo simples fato de serem mulheres. “Se elas fossem homens, não estariam mortas. Essa é a diferença para os outros tipos de homicídio”, lembra.

Mesmo a lei Maria da Penha, símbolo máximo da luta contra a violência de gênero, encontra obstáculos em sua aplicação. Lucimara afirma que até hoje, depois de 12 anos de sua aprovação, ainda há juízes que brigam por sua inconstitucionalidade. Além disso, em muitos casos as mulheres que procuram ajuda são atendidas por profissionais que não estão preparados para fazer esse acolhimento, que minimizam e até ridicularizam a questão. “É uma revitimização. É uma forma de violência também.”

Agressões “sutis”

Esse tipo de situação tem causa conhecida. A naturalização das muitas formas de violência. A agressão nem sempre vem em forma de tapa. Muitas vezes é muito mais sutil, corre por outras vias.
É a obrigação de ter um perfil de casal nas redes sociais, de deixar a senha do celular com o companheiro, de só sair acompanhada dele, por exemplo. É o medo de denunciar o abusador porque ele é alguém conhecido, até mesmo alguém que se ama. É o silêncio porque se teme que as reações ao grito de socorro podem ser ainda piores que a agressão inicial. É a crença de que, por ser mulher, algumas situações têm que ser vividas e não há o que fazer quanto a elas.
Por esses e muitos outros motivos, Lucimara não acredita que a violência contra a mulher vá acabar, algum dia. “Mas eu também tenho muita esperança de que em alguns espaços ela pode deixar de existir. Nesse sentido, a educação e o judiciário têm muito potencial para estabelecer medidas, principalmente de prevenção. A construção social atinge mulheres e homens. Desconstruindo esses estereótipos na infância talvez a gente consiga bons resultados na vida adulta.”
LEIA TAMBÉM