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A caixa da Pintkor oferece até 24 opções de giz de cera que captam as variações dos tons de pele, desde o bege claro até o marrom bem escuro. Foto: Koralle
A caixa da Pintkor oferece até 24 opções de giz de cera que captam as variações dos tons de pele, desde o bege claro até o marrom bem escuro. Foto: Koralle| Foto:

Na hora de pintar um desenho, a pequena Liz Alves Laufer, de quatro anos, escolhe as cores que mais se aproximam dos tons de pele presentes em sua família: para a mãe, o lápis marrom; para o pai e a irmã, aquele rosa claro comumente chamado de “cor de pele”. “Meu esposo e minhas filhas têm pele branca, e eu sou parda. Então, a Liz faz essa diferenciação usando as cores que estão disponíveis na caixinha de giz dela”, relata a mãe Flávia Alves, de 38 anos.

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Para ampliar as alternativas de lápis “cor de pele”, uma empresa especializada em produtos de desenho localizada em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, decidiu aumentar as opções de giz que captam as variações dos tons de pele, desde o bege claro até o marrom bem escuro. “Em 2014, nós preparamos um estojo com 12 cores voltadas para o público afro e, no segundo semestre de 2018, aumentamos o número de opções para 24, abrangendo mais tons escuros e também os rosados e amarelados. Uma caixa bem completa”, afirma o empresário Antonio Frantz,  proprietário da Koralle.

O estojo faz parte da linha Pintkor e foi desenvolvido após um pedido dos professores do Curso de Aperfeiçoamento Uniafro, programa de educação para relações étnico-raciais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “Eles nos procuraram em 2014 com a ideia de fazer poucas unidades e nós aceitamos o desafio. Desenvolvemos o primeiro estojo e iniciamos todo o processo de venda, que surpreendeu”, relatou Frantz. Apenas em 2018, a procura pelo produto apresentou crescimento de 100% em relação ao ano anterior.

A doutora em Educação Gladis Kaersher foi uma das idealizadoras que procurou o empreendedor. Segundo ela, a necessidade surgiu durante debates no curso Uniafro, após vários professores relatarem casos de alunos que sofrem constrangimento e até agressões de colegas devido à sua cor. Com isso, os educadores perceberam a necessidade de mudança na maneira de ensinar sobre os tons de pele.

“Na minha infância, a cor conhecida como ‘tom de pele’ sempre foi o rosa pastel. E isso continuou nos meus 30 anos de magistério em que vi as crianças usando esse lápis para a cor da pele. Mas é a cor da pele de quem?”, questionou Gladis, que também é coordenadora do Curso Uniafro.

Para oferecer uma resposta a essa pergunta, os professores do curso decidiram procurar caixas de giz de cera ou lápis de cor que oferecessem diferentes “tons de pele” para serem usados por crianças no momento de colorir desenhos. “Só que não havia nenhum material assim no mercado brasileiro. Então, entramos em contato com inúmeros empreendedores para ver quem aceitaria desenvolver o produto, e somente uma empresa local aceitou o desafio”, relata Gladis.

O produto pretende fazer com que o rosa pastel deixe de ser conhecido como "cor da pele" ao possibilitar outros tons para colorir o rosto em um desenho. Foto: Koralle
O produto pretende fazer com que o rosa pastel deixe de ser conhecido como "cor da pele" ao possibilitar outros tons para colorir o rosto em um desenho. Foto: Koralle

De acordo com ela, a marca preparou vários tons de giz que atendiam à necessidade e foi preciso uma seleção rigorosa para escolher apenas 12 cores disponibilizadas no primeiro estojo da linha Pintkor. “Lembro que nos reunimos em uma cafeteria e ficamos pintando com aqueles tons de giz para ver como eles ficariam no papel. Era o jeito de escolher quais iriam para o primeiro estojo”, recorda a professora.

Inclusão

Nesse dia, a reação da garçonete da cafeteria em que estavam chamou sua atenção. “A mulher ficou nos olhando como uma criança e se aproximou perguntando para que seriam usados aqueles materiais”, lembra. Quando a coordenadora explicou que seria um estojo de colorir usado por crianças nas escolas, os olhos da funcionária se encheram de lágrimas.

“Ela nos disse que aquele giz tinha a cor da sua pele e que ela nunca havia tido a chance de pintar sua cor quando era criança.”

Aquilo lhe mostrou que o novo estojo não apresentava apenas “tons de pele” diferentes do rosa pastel, mas ainda ajudaria crianças a aceitarem sua aparência e perceberem que a cor não deve influenciar seus projetos e sonhos. “E cada vez que esse material chega nas mãos de uma criança ele comove, emociona e faz pensar. Isso é a semente da educação antirracista. Por isso que já ganhou salas de aula de todo o país e chegou a países como Japão, Alemanha e Portugal”, pontua Gladis.

De acordo com a psicóloga Semíramis Maria Vedovatto, do Conselho Regional de Psicologia do Paraná, isso ocorre porque as pessoas negras, indígenas e asiáticas que têm contato com o material se sentem incluídas na sociedade, pois podem se sentir representadas de forma mais fiel ao colorir um desenho. “Isso é muito importante pessoas de todas as raças conseguem ter visibilidade e se sentem representadas”, garante a psicóloga.

Além disso, a produção desse material representa um avanço significativo no debate contra o preconceito, pois faz com que as crianças percebam que há tons de pele diferentes. “Elas veem que não existe somente aquele lápis rosa clarinho para representar o tom de pele, mas que existem diversas cores. Isso faz com que ela perceba a diversidade”, explica.

Exemplo

No entanto, apenas usar o produto não garante mais igualdade racial nas instituições de ensino do país. Para acabar com as diferenças entre negros e brancos, por exemplo, a educadora Gladis Kaersher afirma que os pais devem trazer bons exemplos aos filhos. “Pode dar a eles bonecos negros, ler livros com personagens de cor negra e falar de cientistas e intelectuais com esse tom de pele que se destacaram. E também é importante chamar a atenção das crianças para a beleza da cultura negra”, sugere a coordenadora.

Além disso, os pais devem verificar se a escola e os demais ambientes frequentados pelos filhos são inclusivos. A orientação é seguida por mães como a gerente de marketing Flávia Alves, citada no início desta reportagem. “Minhas filhas têm contato com crianças de tom de pele diferente porque essa é a única maneira de se tornar algo natural para elas. Já vi mães que mostraram um negro ao filho abrindo uma página na internet. Isso não adianta, pois a inclusão deve ser ensinada no dia a dia”, garante Flávia.

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