Comportamento

RBS, por Itamar Melo

Como o perdão pode reduzir a pressão arterial e melhorar a sua saúde

RBS, por Itamar Melo
22/05/2019 17:00
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Desculpar as ofensas e deixar para lá os planos de vingança é um remédio poderoso para a saúde da mente e do corpo. Foto: Bigstock

O tempo no Brasil é de divisão, raiva, rancor. E se tentássemos perdão? Pode parecer uma solução simplória, mas nos últimos 30 anos a arte de perdoar se consolidou como um campo e estudo científico de resultados notáveis.

Os pesquisadores da área descobriram que superar o ressentimento, desculpar as ofensas e deixar para lá os planos de vingança é um remédio poderoso para a saúde da mente e do corpo. O perdão foi relacionado a efeitos como melhora da condição cardíaca, reforço das defesas do organismo e redução de depressão e ansiedade.

Isso vale para indivíduos. Será que vale também para toda uma sociedade necessitada de reconciliação, como a brasileira, cindida ao meio por ódios ideológicos, políticos e eleitorais? E como é que se chega lá? A questão foi colocada aos maiores especialistas na ciência do perdão no Brasil e no mundo.
Um dos papas do assunto é o psicólogo Everett L. Worthington, professor emérito da Virginia Commonwealth University (EUA), responsável por conduzir estudos e formular teorias que moldaram a compreensão do tema. Para ele, o que está acontecendo no Brasil não tem nada de singular. O ambiente de divisão nas sociedades, acredita, tornou-se uma epidemia mundial. Worthington entende que o perdão pode ser um bom antídoto:

“Perdoar é uma boa maneira de lidar com situações injustas, ofensivas e dolorosas.”

O psicólogo observa que existem dois tipos de perdão, e que ambos podem ajudar em sociedades com feridas abertas. O primeiro diz respeito a uma decisão deliberada de perdoar, levando a uma mudança prática de atitude em relação ao ofensor (como abrir mão da vingança e tratar o outro como alguém de valor). Essa forma pode ser mais rápida. Outra, em que a mudança ocorre de forma lenta e muitas vezes não se completa, é o perdão emocional, no qual as emoções negativas vão sendo substituídas por positivas, como a empatia, a simpatia, a compaixão e o amor.

O que significa perdoar?

O professor diz: “Perdoar é uma forma de tratar as mágoas interpessoais. A vingança certamente não traz cura alguma. No caso do perdão decisional, resolvemos tratar as pessoas como valiosas. O perdão emocional substitui o ódio, o ressentimento, a raiva e a amargura. Se decidirmos tratar as pessoas de modo diferente e reduzirmos a raiva, seremos mais capazes de manter a civilidade e ao mesmo tempo seguir comprometidos com nossa própria posição”.
Outro pioneiro dos estudos sobre perdão, Robert Enright, da University of Wisconsin- Madison (EUA), aponta como modelo a África do Sul. Após o fim do apartheid, o regime de segregação racial que vigorou de 1948 a 1994,o governo adotou uma estratégia de reconciliação entre os perpetradores brancos e as vítimas negras. Foi criada uma Comissão de Verdade e Reconciliação, diante da qual pessoas que sofreram abusos podiam relatar suas experiências.
Os ofensores poderiam fazer o mesmo e pedir anistia. Embora imperfeições tenham sido apontadas, o modelo de busca da paz é tido como fundamental para a transição da África do Sul para a democracia. O quadro brasileiro é bem diferente, mas a necessidade de perdão é similar. Enright acredita que as escolas são um bom lugar para começar.

“Quando oferecemos educação para o perdão nas escolas, uma consequência é um aumento da cooperação entre os estudantes. Aprender a perdoar ajuda as pessoas a colaborarem umas com as outras de forma mais profunda”, cita.

O desafio é como passar da teoria para a prática. Orientado por Enright no doutorado, Julio Rique Neto, professor da Universidade Federal da Paraíba, tem quebrado a cabeça com essa questão. Encara com preocupação o clima de ódio político que ganhou o país – e que se imiscuiu inclusive em sua vivência pessoal.
Atendimento psicológico online pode beneficiar pessoas com problemas de mobilidade ou algum tipo de fobia. Foto: Bigstock
Atendimento psicológico online pode beneficiar pessoas com problemas de mobilidade ou algum tipo de fobia. Foto: Bigstock
“As pessoas mais razoáveis estão se distanciando. É o meu caso pessoal. Eu vi a mudança nas pessoas que são importantes para mim, com quem tenho um vínculo de intimidade, de amizade e de confiança, e o prejuízo que isso causou em nossa relação. Inicialmente, a raiva foi grande, de querer responsabilizar, culpar o outro. Mas sei que isso significa manter a interação negativa. Há um corte das comunicações. Eu me comunico de maneira breve e pontual com essas pessoas que sei que vivem querendo me atacar. Como trabalho com perdão, com moral, e como tenho posição política, o ataque é diário. É uma notícia aqui, uma acusação acolá. Não vou me expor a isso. Enquanto o outro não parar de me atacar, não vou me colocar como alvo fácil “, desabafa Rique Neto, reconhecendo que a atitude que tomou não soluciona nada.
Se até quem poderia nos ajudar a achar a saída está preso ao labirinto, é sinal de que o problema é sério mesmo. O professor da Paraíba não oculta essa realidade. Ele avalia que o Brasil caiu em um estágio primitivo, de selvageria, caracterizado por sentimentos negativos primais: a raiva, o nojo e o medo.

É complicado falar de perdão nesse contexto. Há um conflito que envolve todos os grupos, e ninguém consegue sair dele. Cada um põe a culpa no outro e se acha vítima, fica um jogo de culpa, de medo e de raiva onde você vai perdendo o controle racional.

A importância das iniciativas individuais

Para Rique Neto, fica muito difícil perdoar se as ofensas não estão no passado, mas continuam a ocorrer todos os dias e a nos assaltar sempre que acessamos as redes sociais. Ele acredita que o processo de diálogo e perdão tem de começar por cima, pelos líderes políticos e de instituições, que, segundo ele, estão transmitindo o modelo baseado na raiva, no medo e no nojo.
“O caminho é pelo diálogo, mas precisa haver alguém que lidere isso, alguém que diga não à raiva, o que está faltando. O pensamento radical tem de diminuir. O caminho deve ser um encontro em direção ao centro, a um fator comum. Uma cultura é influenciada por quem está no comando.
O problema é que o Brasil hoje está no caos, e o perdão não vai funcionar no caos. Estamos vivendo o oposto do perdão. Abriram-se portas que deveriam ter continuado fechadas”,  prega o psicólogo, que recomenda um esforço de autocontrole nos posicionamentos e comportamentos, além de uma tentativa de debater com civilidade e objetividade.
O psicólogo Loren Toussaint, do Luther College (EUA),acredita que essas iniciativas individuais, na base da sociedade, podem ser cruciais e influenciar todo o corpo social. Ele também sugere o envolvimento da mídia, das escolas e do governo na promoção do perdão:

“Quando o ressentimento e a inquietação política prevalecem em uma sociedade, o perdão é da maior importância. As comunidades e organizações são compostas de indivíduos, e esses indivíduos precisam adotar o perdão para que os grandes grupos sociais se tornem mais tolerantes”.

A virtude moral de suprimir a raiva

Em 1989, a revista científica Journal of Adolescence publicou o primeiro estudo empírico a ter como tema o perdão concedido por um indivíduo a outro. Passados exatos 30 anos, o campo se expandiu (principalmente nos Estados Unidos, onde há uma série de profissionais e clínicas especializados), gerou inúmeras publicações e trouxe revelações importantes para a saúde humana.
Close up of couple holding hands reconciled after quarrel, happy and relaxed about saved marriage. Husband and wife making peace avoiding break up. Concept of preserved relationship, family support
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Principal autor daquele estudo pioneiro, o psicólogo Robert Enright ofereceu uma explicação sobre como esse ramo da psicologia consegue ajudar a superar o rancor e a seguir em frente.

O primeiro passo, diz ele, consiste em compreender com clareza o que o perdão é (uma virtude moral na qual a pessoa tratada injustamente tenta ser boa em relação a quem cometeu a injustiça) e o que o perdão não é (abandonar a busca por justiça e desculpar o comportamento injusto).

“Quando a pessoa entende o que é o perdão, costumamos passar-lhe um tema de casa: tentar não fazer mal a quem a feriu. Depois, pedimos que enxergue o valor inerente do outro, não por causa do que foi feito, mas apesar disso. Quando a pessoa ofendida começa a ver o ofensor através dessa perspectiva mais ampla, então a empatia e a compaixão podem começar a emergir”, explica Enright.
Esse processo ajuda a vítima a lidar com a dor, a perceber quem ela é e a não retaliar. Quando estiver fortalecida, pode até mesmo manifestar alguma atitude positiva em relação ao ofensor, algo simples, como dizer um comentário gentil, retornar um e-mail ou fazer um comentário elogioso a terceiros.
“Em nossos estudos científicos, descobrimos que, à medida que as pessoas seguem esse padrão, elas tendem a diminuir raiva, ansiedade e depressão e a aumentar a autoestima e a esperança no futuro”, acrescenta Enright.
Dito assim, parece muito bonito, mas quem deseja ou tem disposição de perdoar um ato grave de violência, uma traição dolorosa ou alguma injustiça que causou um prejuízo considerável em sua vida? Não é para todo mundo, reconhecem diferentes especialistas ouvidos para esta reportagem. Mas também é verdade que se trata de algo do interesse do ofendido, mais do que do ofensor.

A pessoa que não perdoa chafurda na raiva. A que consegue perdoar tem condições de retomar o controle da própria vida e seguir adiante.

Não é preciso chegar a nutrir afeição pelo ofensor

Criador de um dos métodos mais conhecidos para ajudar a perdoar, composto de nove etapas, o psicólogo Frederic Luskin, reconhece que o esforço toma tempo, mas compensa – reduz a dor, combate doenças cardíacas e traz autoconfiança, aumenta a produtividade, reforça as relações.
“O perdão funciona para uma ampla variedade de ofensas. A melhor estratégia é reconhecer que é possível superar o passado e que não há necessidade de ser uma vítima. Não dá para apressar. A mágoa sempre vem primeiro, só depois a libertação. A ofensa ainda vai doer, porque não existe atalho. Pode-se perdoar e, ainda assim, ter de se defender do ofensor. Também pode-se perdoar e não se reconciliar “, diz.
As alternativas podem ser mais custosas, observa o professor Julio Rique Neto. Ele dá como exemplo uma pessoa que foi prejudicada no trabalho e tem de conviver diariamente com o colega do qual tem raiva. Ele pode, por exemplo, controlar a ansiedade por meio de algum hobby ou de corridas pela manhã, antes de sair para o serviço. Mas, nesse caso, tem de correr todos os dias para dar vazão à energia da raiva e do ressentimento.
“O que ocorre é que essa prática que tem como objetivo baixar a energia não gera mudança de pensamento”,  argumenta.
É por isso que o perdão pode vir em socorro para mudar o pensamento e superar a raiva e o ressentimento. Rique Neto recomenda que essa busca seja feita com acompanhamento de um terapeuta.

“Quando a pessoa começa a considerar o perdão como uma resposta a essa raiva que precisa ser trabalhada e que está prejudicando seu bem estar, ela deve procurar uma abordagem terapêutica. A ajuda é necessária. Sozinho não se chega lá, porque somos muito presos a nossos sentimentos. A raiva é uma carga primal importante, um sentimento evolutivo que sinaliza estarmos sendo abusados, vitimados ou injustiçados. Mas quando um evento a estimula muito, ela toma conta do pensamento. Precisa alguém de fora, que consegue ver a situação com mais racionalidade.

Como é que alguém identifica que conseguiu? Que perdoou? Fácil: é quando ele esquece a ofensa e, ao relembrá-la, já não sente raiva. Para Everett Worthington, não há necessidade de chegar a nutrir uma afeição pelo ofensor. Se a pessoa parou de querer o mal do outro, parou de planejar vingança, parou de achar que o outro é um ser vil, é suficiente. Isso já é perdão.

Os benefícios do perdão

Saúde cardíaca
“Perdoar, dizem diferentes estudos, tem entre seus efeitos reduzir a pressão arterial, o que pode prevenir problemas do coração. Uma pesquisa de 2011, feita com casais, mostrou que, quando um perdoava o outro, ambos registravam redução da pressão arterial. Outro trabalho, da New York University, feito com pacientes cardíacos, revelou que aqueles com propensão a perdoar tinham menos ansiedade e depressão, além de apresentar menores níveis de colesterol.
Expectativa de vida
Um estudo do Luther College (EUA), publicado em 2011 no Journal of Behavioral Medicine, aponta que pessoas capazes de perdoar incondicionalmente podem viver mais, em comparação com as pessoas que só perdoam quando alguém se desculpa.
Fortalecimento do sistema imunológico
Portadores do vírus HIV que perdoaram alguém registraram um incremento nas células de defesa, segundo um trabalho desenvolvido em 2011 no Duke University Medical Center (EUA), sugerindo que o perdão pode ter efeitos positivos para o sistema imunológico.
Saúde mental e redução do estresse

Uma série de estudos associou a dificuldade de perdoar a emoções como raiva e tristeza e a reações fisiológicas que incluem tensão muscular, suor e aumento da pressão arterial. O perdão tem a capacidade de reduzir esses efeitos negativos, contendo a ansiedade, a depressão e a ira. Até o sono fica melhor. Pesquisas apontam também que a capacidade de perdoar protege contra efeitos negativos do estresse na saúde mental.

Redução do cortisol
Perdoar reduz níveis do hormônio cortisol, o que além de ser bom para controlar o estresse no curto prazo pode trazer benefícios mais duradouros: no longo prazo, altos níveis podem afetar várias funções do organismo, incluindo cérebro, sistema digestivo e sistema cardiovascular.
Em paz consigo mesmo
No caso das pessoas que sentem remorso por algo que fizeram, a reconciliação com a vítima pode ter efeito terapêutico, conforme uma pesquisa publicada no Journal of Positive Psychology. De acordo com o trabalho, obter o perdão ajuda a pessoa a também se autoperdoar.
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