Moda e beleza

New York Times

Traumas e desemprego ainda atormentam os trabalhadores da indústria têxtil em Bangladesh

New York Times
10/05/2018 19:21
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Mahmudul Hassan Hridoy, no centro, é o presidente de uma associação de sobreviventes do desastre: ele começou a trabalhar no local três dias antes do desabamento. Foto: Clara Vannucci/The New York Times. | NYT

Mahmudul Hassan Hridoy, um rapaz tranquilo e fala mansa de 32 anos, anda com o auxílio de muletas e tem dores de cabeça terríveis. Algumas vezes, durante a noite, puxa os cabelos enquanto dorme. Está solteiro, apesar de já ter sido casado. Sua mulher o deixou quando ele sofreu um acidente e ficou permanentemente prejudicado. Possui uma pequena farmácia e, uma vez por mês, realiza reuniões lá.
Não para viciados em recuperação: para sobreviventes do colapso do complexo Rana Plaza, como ele.
E como Shiuli Begum, uma jovem roliça de 26 anos com voz de garotinha, que hoje vive sobre uma tábua em um barraco com parede de cimento e telhado de metal perto do Rana Plaza. Ela passa os dias assistindo à televisão e cochilando graças às pílulas para dormir das quais agora é dependente. Não sabe ler, não pode mais ter filhos e mal consegue se mover, porque sua coluna foi esmagada. “Para ir ao banheiro é uma provação”, contou ela.
E Shila Begum, de 28 anos, viúva baixinha e corpulenta com uma filha de 14 anos que não vai à escola porque a mãe não tem dinheiro para pagar. Seus rins e sua mão direita foram esmagados. “Não posso trabalhar”, afirmou ela, com um lenço de cabeça fúcsia, laranja e amarelo-limão e calças apertadas por um espartilho médico, com o antebraço em um suporte, ao lado do terreno pantanoso onde o Rana Plaza ficava.
Shila Begum, a survivor of the collapse of the Rana Plaza garment factory who still wears a medical corset and arm brace, at the collapse site in Dhaka, Bangladesh, April 23, 2018. Begum received no compensation for the government or the clothing brands, but did get a bit of assistance from nonprofits. “When I come here, I feel like I don’t want to live anymore,” she said. (Clara Vannucci/The New York Times)
Shila Begum, a survivor of the collapse of the Rana Plaza garment factory who still wears a medical corset and arm brace, at the collapse site in Dhaka, Bangladesh, April 23, 2018. Begum received no compensation for the government or the clothing brands, but did get a bit of assistance from nonprofits. “When I come here, I feel like I don’t want to live anymore,” she said. (Clara Vannucci/The New York Times)

Memórias

Mas, como todos por aqui, ela ainda se lembra.
As pessoas gritavam ‘Socorro‘”, relembra Hridoy, experimentando distraidamente uma coxinha e olhando pela janela suja para o engarrafamento na rua empoeirada ali em frente, a barreira implacável de buzinas quase mais alta que sua voz.
Ele estava recordando o momento em que o sétimo dos oito andares do complexo de fabricação de varejo e vestuário Rana Plaza desmoronou sob seus pés em 24 de abril de 2013. A catástrofe feriu 2.500 pessoas e matou mais de 1.100. Foi o pior acidente da indústria de vestuários da história moderna.
O resgate do desabamento, em 2013. Foto: Andrew Biraj/ Reuters.
O resgate do desabamento, em 2013. Foto: Andrew Biraj/ Reuters.
“-Socorro!-, eles gritavam. Mas ninguém ouvia”, contou Hridoy.
Ele estava trabalhando no Rana Plaza fazia duas semanas. Tinha pedido demissão de seu cargo como professor de uma creche por causa do salário baixo, para se tornar inspetor de qualidade na New Wave Style Ltd. Como era bom de matemática, a gerência garantiu que ele subiria rapidamente na carreira. A promessa de aumento de salário era irresistível: a jovem que namorava há três anos estava grávida. “Por isso fui para o Rana Plaza.” Eles haviam se casado três dias antes do colapso.
Quando abriu os olhos nos escombros, ele percebeu que estava preso sob um pilar de concreto. Na hora que as imagens entraram em foco novamente, viu que estava frente a frente com seu grande amigo Faisal, que trabalhava no segundo andar como operador de máquina de costura.

“Não sei como. Acho que meu andar caiu até o dele”, contou Hridoy.

O crânio de Faisal estava arrebentado, disse ele com um sussurro. “E seu cérebro derramou para fora.” Hridoy começou a chorar. “Não posso esquecer a maneira que sua cabeça explodiu na minha frente”, afirmou enquanto soluçava. “Essas memórias ainda me assombram.” Em 2015 e 2016, dois membros de sua rede de sobreviventes cometeram suicídio enforcando-se em suas casas.

O local

O terreno onde ficava o Rana Plaza está cheio de ervas daninhas. Do lado que dá para a rua, um monumento de cimento, encimado por um enorme par de punhos esculpidos segurando uma foice e um martelo, foi erguido em memória das vítimas. Geralmente fica cercado de carros estacionados.
Há muito tempo Bangladesh é um dos lugares mais baratos para produzir roupas, além do Vietnã e da Índia. Mais de 4,4 milhões de pessoas – a maioria mulheres – trabalha em suas três mil fábricas, onde o salário mínimo é US$0,32 por hora, ou US$68 por mês. As marcas se reúnem aqui para produzir US$30 bilhões em “roupas prontas”, ou RMG (sigla de “ready made garments”), o que torna Bangladesh o segundo maior centro de fabricação de roupas do mundo, depois da China.
83% da nossa moeda estrangeira vem do setor de vestuário“, afirmou Siddiqur Rahman, presidente da Associação de Fabricantes e Exportadores de Vestuário de Bangladesh, em uma entrevista em seu amplo escritório com ar condicionado na sede da organização em Daca. “50 milhões de pessoas dependem disso, e nossa economia depende disso.” Ele afirma que o governo gostaria de dobrar a produção nos próximos cinco anos.

Exploração extrema

A indústria de vestuário de Bangladesh, no entanto, também estava cheia de oficinas conhecidas como sweatshops – aquelas com as piores condições entre todas as outras –, e nelas os acidentes industriais são mais comuns. Entre 2006 e 2012, mais de 500 trabalhadores dessa indústria morreram em incêndios nas fábricas de Bangladesh. O motivo mais comum: fiação elétrica defeituosa.
Ninguém fora de Bangladesh havia prestado muita atenção a essas tragédias até novembro de 2012, quando a fábrica da Tazreen Fashions pegou fogo no subúrbio de Ashulia, em Daca. Pelo menos 117 pessoas morreram, várias tão queimadas que não foi possível reconhecê-las, e mais de 200 ficaram feridas.
Organizações não governamentais tentaram recrutar as marcas para assinar um acordo jurídico para melhorar a segurança nas fábricas, mas apenas duas – a PVH e a Tchibo da Alemanha – aderiram. Cinco meses depois, aconteceu a tragédia do Rana Plaza.

Mudanças

Depois de um mês de “cobertura altamente embaraçosa da mídia”, como Scott Nova, diretor-executivo do Consórcio de Direitos do Trabalhador de Washington descreve, em uma espécie de eufemismo, as marcas de moda internacionais de Bangladesh anunciaram a criação de dois acordos de conformidade de cinco anos.
O Acordo sobre Segurança de Incêndios e de Edifícios, que é juridicamente vinculativo, foi assinado por mais de 200 empresas, entre elas a American Eagle, a HeM e a Inditex, controladora da Zara.
A não obrigatória Aliança de Segurança dos Trabalhadores de Bangladesh foi liderada pelo Walmart e assinada por 28 companhias, como a Gap, a Target e a Hudson-s Bay, dona da Saks Fifth Avenue e da Lord e Taylor.
Inspetores independentes e engenheiros identificaram e corrigiram infrações de segurança, como saídas de incêndio trancadas ou não existentes e fiação perigosa. Ao todo, 97 mil perigos foram reparados em 1.600 fábricas. Rahman relatou que 900 fábricas não atenderam aos padrões e foram fechadas pelo governo.
Recentemente, o Centro de Direitos Globais dos Trabalhadores divulgou um estudo do impacto do acordo e confirmou o sucesso: em cinco anos, mais de 97 mil problemas em 1.600 fábricas foram corrigidos, proporcionando um ambiente mais seguro para 2,5 milhões de trabalhadores.

“Não há dúvidas de que o acordo salvou vidas”, afirma Liana Foxvog, diretora de organização e comunicação do Fórum Internacional dos Direitos do Trabalhador, uma organização de direitos humanos de Washington.

Sem surpresas

Os moradores locais não ficaram surpresos quando o Rana Plaza desabou. No dia anterior ao acidente, a parede do terceiro andar se abriu com uma falha, e os trabalhadores fugiram em massa para a rua. Um engenheiro chamado para inspecionar o dano recomendou que o prédio fosse condenado. “A rachadura era tão grande que dava para colocar minha mão dentro dela”, afirma Shila Begum, a mãe solteira, que na época era operadora de máquina de costura na Ither Tex Ltd., então inquilina do quinto andar.
Os gerentes aceitaram a sugestão do engenheiro por pouco tempo: mandaram todos para casa, exigindo que voltassem no dia seguinte. O que os trabalhadores fizeram, com hesitação. “Estava com medo, realmente em pânico”, contou Shila Begum. Mas eles voltaram, afirmou, porque temiam que, se não aparecessem, não seriam pagos no final do mês.
Begum estava costurando calças jeans para uma marca francesa – não se lembra qual – quando o teto de concreto caiu sobre ela, atingindo suas costas e a mão direita. Seu cabelo comprido se prendeu na máquina de costura, contou, e “não podia me soltar porque minha mão estava presa”. Dezesseis horas depois, foi resgatada por vizinhos que se uniram às centenas de profissionais de emergência no local do acidente. “Eles apareceram com barras de ferro e canos e me tiraram dali. Disseram que minhas entranhas estavam espalhadas pelo chão”, contou.
Ela começou a chorar enquanto contava a história. “Eu desmaiei e recuperei os sentidos 27 dias depois”, afirmou. Não recebeu compensação do governo, mas conseguiu um pouco de ajuda financeira das ONGs.
“Nada das marcas. Quando venho aqui, sinto que não quero mais viver”, disse, olhando para o terreno vazio onde ficava o Rana Plaza.
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