Saúde e Bem-Estar

Amanda Milléo

Azia e a queimação no estômago: quando é motivo para endoscopia

Amanda Milléo
01/07/2019 12:00
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Invasiva, a endoscopia traz riscos tanto na sedação quanto durante o procedimento, podendo causar hemorragias, perfurações e infecções. Foto: Bigstock.

A sensação de azia e “queimação” na boca do estômago, sintomas conhecidos da doença do refluxo gastroesofágico, não significa necessariamente uma ida à endoscopia.
Sozinho, o procedimento não diagnostica a doença que, em cerca de 40% dos casos, passa despercebida pelo endoscópio, ou pode resultar em falsos positivos, tornando o exame ineficaz.
Mesmo sabendo disso, gastroenterologistas brasileiros por vezes cedem aos apelos de pacientes, sejam eles de hospitais públicos, conveniados ou particulares. Como é invasiva, a endoscopia também traz riscos tanto na sedação quanto durante o procedimento, podendo causar hemorragias, perfurações e infecções.

“Muitas pessoas têm o costume de solicitar o exame somente porque têm o direito a fazê-lo, ou ainda porque acham ‘bonito’ ter a endoscopia na pasta de exames”, afirma o médico endoscopista e professor de Gastroenterologia Clínica da Univer­­sidade Federal de São Paulo, Stephan Geocze.

Os custos e possíveis riscos do procedimento levaram a American College of Physicians, sediada nos Estados Unidos, a desenvolver as diretrizes clínicas para o uso da endoscopia alta (que verifica esôfago, estômago e duodeno – primeira parte do intestino delgado) no caso da doença do refluxo gastro­­esofágico.

As orientações limitam o uso do procedimento, não bastando ao paciente apresentar a conhecida ‘queimação’, mas ter também outros sintomas, como sangramento, anemia e vômito recorrente.

Ema­grecimento, falta de apetite, dificuldades ao engolir e mudança no padrão da dor também podem levar ao exame. “No Brasil, um indivíduo que há 20 anos tem azia, mas de repente sente o mal-estar mesmo tomando um copo de água, acaba tendo de passar pela endoscopia para descartar outros distúrbios”, diz Carlos Naufel, cirurgião do aparelho digestivo.
Estudo comprova que a obesidade faz reduzir a sensibilidade para o sabor da comida. Foto: Bigstock
Estudo comprova que a obesidade faz reduzir a sensibilidade para o sabor da comida. Foto: Bigstock

Outros distúrbios

Gastrites, úlceras e esofagites deixam sinais claros no revestimento do estômago e esôfago verificados pela endoscopia. Segundo o gastroenterologista Gustavo Andrade de Paulo, esses são os casos em que o procedimento é mais indicado. “A endoscopia não faz diagnóstico do refluxo, mas da esofagite. Se tiver esofagite, pode ter o refluxo. Mas, às vezes, tem o refluxo e não tem a inflamação no esôfago”, explica.

Remédio demais causa efeito rebote

Recorrer corriqueiramente ao omeprazol – o tipo de inibidor de bomba de próton mais comum e livre de receita médica –, de maneira contínua, indiscriminada e sem orientação contra azia, refluxo e queimação pode causar graves problemas ou esconder a doença original.
Quando há úlcera, gastrite ou refluxo gástrico, a principal indicação dos gastroenterologistas é a prescrição desse tipo de remédio. Porém, os especialistas têm percebido que muitos pacientes chegam aos consultórios após o uso rotineiro do medicamento, às vezes de forma equivocada.

“Sem orientação médica, ele pode mascarar uma disflexia funcional, como o mau funcionamento do estômago, gastrite e úlceras”, diz o gastroenterologista Olival Ronald Leitão.

O uso corrente do medicamento influencia não apenas os órgãos do sistema digestório. “Há estudos que mostram pacientes que adquiriram certa dificuldade de absorção de cálcio, promovendo a descalcificação, piorando a osteoporose, principalmente em mulheres”, diz Júlio Pisani, especialista em endoscopia digestiva.
Quem utiliza o inibidor da bomba de prótons por um período longo (de seis meses a um ano) tem maior risco de sofrer o efeito rebote do medicamento, segundo o gastro­­en­­terologista Odery Ramos Junior. O inibidor bloqueia a produção de ácido, a partir das glândulas produtoras, causando alívio. Quando o medicamento é interrompido, o ácido retorna de forma mais intensa, formando uma hipersecreção causada pela hipertrofia das glândulas que produzem o ácido.

“Isso pode desencadear pequenos pólipos de natureza glandular no estômago, identificados pela endoscopia e associados ao uso crônico do inibidor”, explica Ramos. O efeito rebote causa ainda um círculo vicioso ao paciente, que, ao deixar de tomá-lo, vê ampliarem-se os sintomas, acabando por voltar instintivamente a utilizá-lo, sem tratar o problema original.

Baixa toxicidade

O omeprazol não possui alto grau de toxicidade, desde que administrado com cautela. “É tolerável que pessoas com sintomas leves usem o medicamento, desde que por pouco tempo. Se a dor persistir por mais de 30 dias, deve consultar um médico”, complementa o gastroenterologista Olival Leitão.
Nos pacientes diagnosticados com úlceras, o tratamento com o inibidor leva de seis a oito meses, e pode passar de um ano em alguns casos. “Mas é raro, pois nesses casos também fazemos a erradicação da bactéria H. pylori, causadora do problema”, afirma Leitão.

Quem toma por muito tempo

Em casos específicos, o inibidor da bomba de prótons é recomendado para um período longo, chegando a um ano. “Pacientes com gastrite e úlceras tomam o inibidor para melhorar os sintomas, enquanto a bactéria causadora do desequilíbrio entre o ácido e a proteção do estômago é combatida por antibióticos. O inibidor só é utilizado enquanto for prescrito o antibiótico”, explica Odery Ramos Junior.
Pacientes que utilizam anti-inflamatórios tendem a ter a proteção do estômago reduzida, por este motivo recebem também a prescrição do inibidor para o período de uso.
(Foto: Bigstock)
(Foto: Bigstock)

Sintomas são diferentes

Doença do refluxo gástrico
É a passagem do conteúdo gástrico para o esôfago. Como o conteúdo é ácido, forma uma inflamação no esôfago, conhecida por esofagite. Entre os principais sintomas, a pessoa sente uma queimação na região. O tratamento se dá por orientações nos hábitos de vida, controle do peso, redução no volume das refeições, bem como o aumento da frequência das mesmas, e redução do cigarro, álcool e cafeína. Segundo gastroentero­logistas, geralmente o tratamento clínico traz resultados positivos. Caso contrário, prescreve-se o inibidor.
Cirurgia
Pacientes com inflamações mais graves e com alteração anatômica, como a hérnia de hiato, são indicados para cirurgias. No entanto, são situações isoladas.
Gastrite
Trata-se de uma inflamação do revestimento do estômago, decorrente ou da presença da bactéria H. pylori ou do uso frequente de anti-inflamatórios analgésicos que alteram a barreira protetora do estômago. A bactéria é considerada pelos especialistas a principal causa do distúrbio e primeiro fator a ser combatido, medida conjunta à prescrição do inibidor da bomba de prótons.
Úlcera
Trata-se de uma inflamação mais profunda do revestimento do estômago, decorrente das mesmas causas da gastrite. O tratamento é feito por antibióticos e inibidores para garantir a redução do ácido no período de cicatrização da inflamação

Exames complementares

Nem sempre a doença do refluxo gastroesofágico deixa rastros pelo esôfago, vistos na maioria das vezes pela endoscopia. O pigarro, sintomas de asma, halitose e desgastes nos dentes podem ser manifestações extra esofágicas do refluxo. Os exames que comprovam essas alterações e a intensidade das mesmas são pHmetria e manometria. Já a cápsula capta lesões no intestino delgado. Veja como cada exame é feito:
PHmetria
Durante 24h, um cateter inserido pelo nariz e posicionado na altura do esôfago mede o pH encontrado no canal esofágico do paciente. Quando há refluxo, o pH do esôfago reduz para 4 e o cateter verifica o período que se manteve neste valor e quantas vezes houve a redução. Durante o exame, o paciente mantém a rotina diária normal, inclusive nas refeições, evitando apenas cafeína e bebidas alcoólicas. Sete dias antes e durante o exame, o paciente deve evitar medicamentos para o estômago que interfiram nos resultados. As chances de diagnosticar a doença do refluxo são maiores através deste exame, porém o incômodo que causa faz com que médicos e pacientes optem primeiro pela endoscopia.
Manometria
Entre a endoscopia e a pHmetria, encontra-se a manometria. Nenhum diagnóstico é feito através deste exame, mas sim uma avaliação das medidas internas que guiarão a colocação do cateter para a pHmetria. Com duração de 30 minutos, a manometria verifica também o movimento do esôfago e do esfíncter esofágico inferior, na entrada do estômago. Caso a válvula não tenha força para segurar o conteúdo ácido ou se o esôfago não consegue fazer a comida descer até o estômago, o exame detecta.
Cápsula endoscópica
Do tamanho de um comprimido, a cápsula possui uma câmera acoplada e, ao ser engolida, fotografa o organismo. As fotos ajudam a encontrar as lesões no intestino delgado, espaço que o endoscópio não alcança. É utilizada quando a endoscopia não identificou o distúrbio, mas a cápsula também pode não flagrar as lesões.
Fontes: Márcio Domingos Batista, cirurgião do aparelho digestivo; Luciana Camacho-Lobato, professora de gastroenterologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Gustavo Andrade de Paulo e Pedro Padula, gastroenterologistas.

Como funciona Um dos papéis do estômago é a produção do ácido clorídrico para o primeiro impacto do alimento. Ele também produz um muco que serve de proteção contra o ácido, impedindo a corrosão do órgão. Em caso de úlcera, gastrite ou refluxo ácido, rompe-se o equilíbrio entre o muco e o ácido, prejudicando a parede do estômago e até mesmo o esôfago.

Riscos do exame
Todo e qualquer procedimento invasivo implica em riscos: uma em cada 10 mil endoscopias pode trazer alguma adversidade, de acordo com o gastroenterologista Gustavo Andrade de Paulo. “Metade das complicações está relacionada à sedação e a outra metade a hemorragias, perfurações e infecções. Mas é um exame relativamente seguro se feito em lugar apropriado”, diz ele.
Omeprazol deve ser prescrito para as patologias específicas, mas deve ser ministrado por um tempo limitado. Foto: Bigstock.
Omeprazol deve ser prescrito para as patologias específicas, mas deve ser ministrado por um tempo limitado. Foto: Bigstock.
Medicamento
O fato de tomar ou não o inibidor da bomba de prótons (como o omeprazol) não altera a doença do refluxo gástrico. O medicamento apenas reduz a secreção ácida, que nem sempre é o fator principal do distúrbio. O refluxo também pode ter origem alcalina e ter início no intestino.

Abuso de inibidores O uso do inibidor de bomba de prótons diminui a produção do ácido no estômago, possibilitando que a parede do órgão se regenere, ou que a inflamação diminua e cicatrize. O ácido é importante para a digestão e mesmo tomando o inibidor não há uma inativação dele, sobra um resíduo para o processo. Mas, como o pH (medida de acidez) do estômago fica mais básico do que ácido, aumentam-se as condições para o desenvolvimento e crescimento bacteriano no meio que deveria ser estéril. “Qualquer inibidor de bomba corre o risco de provocar o aumento do pH (mais básico do que ácido). São mecanismos que alteram a fisiologia do estômago”, explica Júlio Pisani.

Após os 30 anos
Queimação e azia podem ser também sintomas de câncer. Quando há indicações, a partir dos 30 anos é importante fazer o procedimento, pois há um risco maior a partir desta idade de desenvolver câncer, que começa com os mesmos sintomas do refluxo.
Não é o coração
Por estar bem próximo do coração, as dores no esôfago podem ser confundidas com dores do coração. Problemas respiratórios como asma, sinusite, laringite podem ser reflexos da doença do refluxo gástrico.
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